Condições subumanas

Defensoria pede transferência dos presos de Araraquara

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8 de julho de 2006, 7h00

A Defensoria Pública de São Paulo pediu nesta sexta-feira (7/7) a transferência de todos os presos do Presídio Dr. Sebastião Martins Siqueira, em Araraquara, interior paulista, para outras unidades penais da Secretaria de Administração Penitenciária.

O defensor público coordenador da Assistência Judiciária ao Preso, Geraldo Carvalho, entrou com representação ao juiz-corregedor da Vara das Execuções e dos Presídios de Araraquara.

Carvalho alega que, conforme noticiado pelos jornais O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo, não há condições mínimas de permanência para os presos no local, “em escandaloso desrespeito aos direitos fundamentais plasmados em tratados internacionais ratificados pelo país, na Constituição Federal e na Lei de Execução Penal”.

Na penitenciária, que está com o portão lacrado, há 1.443 detentos confinados em uma área de 600 metros quadrados a céu aberto. A comida é lançada entre 11 horas e 17 horas, por cima do muro, e os presos liberados têm que ser içados do local. Há muitos doentes sem qualquer tratamento médico.

Leia a íntegra da representação:

EXMO. SR. JUIZ DE DIREITO CORREGEDOR DA VARA DAS EXECUÇÕES E DOS PRESÍDIOS DE ARARAQUARA.

GERALDO SANCHES CARVALHO, Defensor Público Estadual, Coordenador da Assistência Judiciária ao Preso, assessor de Gabinete da Defensoria Pública Geral do Estado de São Paulo, vem respeitosamente à presença de V. Exa. expor e requerer o quanto segue:

1. Conforme amplamente noticiado, a situação da Penitenciária “Dr. Sebastião Martins Siqueira” é dramática e a condição de confinamento dos respectivos presos ultrapassa qualquer limite de razoabilidade e humanidade.

Deveras, segundo informações colhidas junto aos jornais “Folha de São Paulo” e o “O Estado de São Paulo” de 6 e 7 de julho do corrente ano, as condições mínimas de dignidade da pessoa humana encontram-se violadas, em escandaloso desrespeito aos direitos fundamentais plasmados em tratados internacionais ratificados pelo País, na Constituição Federal e na Lei de Execução Penal.

Assim é que na respectiva penitenciária encontram-se recolhidos 1.443 detentos, hoje confinados em uma área de 600 metros quadrados, a céu aberto, tendo sido soldado o portão de acesso à área.

Na data de ontem noticiou-se que um dos presos, com alvará de soltura, teve de ser içado para ser retirado por cima do referido portão. Os demais presos estão impedidos de serem levados a juízo e/ou removidos por qualquer que seja o motivo, independentemente, inclusive, da gravidade de sua situação particular.

É grotesca a situação. Segundo informado, a alimentação dos presos se assemelha àquela empregada na alimentação de animais confinados, sendo “jogada por cima, todos os dias às 11h e às 17h”, de tal sorte que certamente há um comprometimento, no mínimo, da higiene dos alimentos e de seu estado de conservação.

Consideravelmente pior é a questão da higiene pessoal pois, como noticiado, “banheiros há 13, ou 123 aparelhos excretores para cada privada. A saída é defecar em sacos plástico (várias vezes em um mesmo saco), que são empilhados em um canto do local.”

Em conseqüência, “muitos presos estão doentes. Outros estão ficando. Mantidos seminus, dispõem apenas de cobertas finas e são obrigados a dormir uns encostados nos outros. Foi o jeito que deram para contornar a temperatura na casa dos 10°C.”

O atendimento à saúde está sendo feito por apenas um médico, quiçá inabilitado legalmente, como assim descrito:

“Como o médico do CDP se recusou a entrar na prisão, o jeito foi apelar para o prisioneiro mais célebre, o médico Hosmany Ramos, discípulo de Ivo Pitanguy, ex-cirurgião plástico de socialites, condenado em 1981 por homicídio, roubo, tráfico e contrabando. O diretor do local, Roberto Medina, manda descer antibióticos (benzetacil), xaropes, linhas e agulhas de sutura, e Ramos ministra-os aos doentes. Ele dorme duas horas por dia, a cabeça apoiada nos remédios.Na semana passada, Hosmany discutia com companheiros a possibilidade de arrancar o dente podre de um detento, usando prego e um sapato como martelo -a direção da cadeia não lhe forneceu boticão.”

Segundo o jornal “O Estado de São Paulo”, gravíssima é a situação de presos portadores do HIV, pois tais detentos “teriam contraído tuberculose. Não há espaço para que todos se deitem ao mesmo tempo para dormir. Há fila para ir ao banheiro e os alimentos são lavados em um tanque – os presos temem ser envenenados por agentes que desmentem a denúncia.”

A tudo soma-se que há quase dois meses os familiares dos presos não têm nenhum contato com eles, inteirando-se do inferno em que vivem através da mídia.

2. A obrigação de o Estado manter condições mínimas de alojamento de condenados é inequívoca e decorre de diversas normas, nacionais e internacionais, que dispõe, com clareza, a esse respeito, a começar pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, cujo artigo 10° (1), determina que: “Todos os indivíduos privados na sua liberdade devem ser tratados com humanidade e com respeito da dignidade inerente à pessoa humana.”

De forma análoga, a Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José) determina que “Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.”

Vale lembrar que ambos os tratados internacionais referidos foram devidamente ratificados pela República Federativa do Brasil, gerando direitos públicos subjetivos aos cidadãos brasileiros e gerando obrigações estatais correspondentes, nos termos do parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal.

Dispondo no mesmo diapasão, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XLIX, assegura aos presos o respeito à dignidade física e moral.

Dúvida não resta, portanto, de que é do Estado o dever de manter condições minimamente aceitáveis de encarceramento, obrigação essa que não vem sendo cumprida na penitenciária objeto da presente representação. Ao contrário, a situação de encarceramento vem gerando a dramática piora nas condições de sobrevivência dos presos, chegando-se ao paradoxo de que o ente público não só não cumpre seu mister de criar condições dignas de encarceramento, mas culmina por violar os mais elementares direitos da pessoa presa, como a de ser alimentada e provida de cuidados elementares de saúde.

Por derradeiro, não há uma afirmação pública categórica, ou no mínimo alentadora, de que tal situação será revertida de forma imediata. Pelo contrário, o que se assiste é uma notória passividade como se o fato de os presos estares nessa condição fosse algo natural, decorrente das rebeliões ocorridas e que assim ficará por prazo indefinido.

Ora, se é certo que o presídio sofreu danos decorrentes de uma rebelião, também é certo que ao Estado incumbe, incondicionalmente, a preservação da dignidade mínima dos presos, em razão de normas jurídicas a que está inexoravelmente jungido.

Ainda que fosse para argumentar, mesmo que se pretendesse reformar o estabelecimento penal imediatamente, tal medida somente seria possível com a remoção dos presos, sem o que se torna inviável o ingresso de pessoal e material de construção necessário aos trabalhos.

O que não se pode admitir é que sejam simplesmente soldadas as portas da penitenciária, isolando-se os presos do meio exterior, como se isso bastasse para resolver o “problema”, como se inexistissem noras jurídicas que obrigam o Estado a tomar medidas efetivas de proteção da dignidade dos encarcerados.

Este fato nos remete a situações medievais em que presos eram trancafiados em enxovias, barbárie essa descabida numa sociedade minimamente civilizada, balizada por um arcabouço jurídico interno e internacional, ora violado, como a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações Unidas.

Tratando-se de obrigações internacionais assumidas pelo País, caso a situação não seja imediatamente equacionada, certamente sobrevirão representações a organismos internacionais, acarretando não só a instauração de procedimentos de apuração perante as Comissões de Direitos Humanos da ONU e da OEA, como significará mais um constrangimento para a já desgastada imagem nacional no exterior.

A análise da capacidade e lotação das unidades prisionais da Secretaria de Administração Penitenciária dá conta de que os presos da Penitenciária de Araraquara podem ser removidos imediatamente e absorvidos pelo próprio sistema. Haverá, naturalmente, superlotação nas unidades que houverem de recebê-los, mas este fato, também preocupante, certamente é muito menos grave do que o dantesco quadro de inequívoco desrespeito aos direitos humanos identificado no odioso aprisionamento aqui versado.

3. Diante do exposto, é a presente para requerer determine V. Exa. a imediata remoção de todos os presos da Penitenciária “Dr. Sebastião Martins Siqueira” para outras unidades penais da Secretaria de Administração Penitenciária, sob pena de desobediência e responsabilidade objetiva do Estado pelos danos já causados à integridade física e moral dos que se encontram ali recolhidos, fixando multa diária de cento e quarenta e quatro mil e trezentos reais por dia de descumprimento, à razão de cem reais per capita.

Nestes termos,

pede deferimento.

São Paulo, 7 de julho de 2006

GERALDO SANCHES CARVALHO

Defensor Público-Assessor

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