Atraso no condomínio

Abordagem em reportagem sobre inadimplência não causa dano

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31 de janeiro de 2006, 18h17

Ser abordado em reportagem que trata de inadimplência de condomínio não é motivo para pedir indenização por danos morais. O entendimento é do juiz Clóvis Ricardo de Toledo Júnior, da 19ª Vara Cível do Fórum João Mendes, em São Paulo.

O juiz livrou a Rede Globo de pagar indenização a um grupo de condôminos que teriam sido abordados por repórter da emissora no momento da apuração da notícia. Depois de discutir longamente o conflito entre o direito à intimidade e liberdade de expressão, o juiz entendeu que não houve ofensa aos autores da ação.

Na ação, moradoras do condomínio alvo de reportagem do programa Fantástico alegaram calúnia e ofensa à honra por terem sido abordadas por repórteres que colhiam informações sobre a inadimplência de condomínio.

“Delimitados os direitos (liberdade de imprensa e liberdade de pensamento) e a possibilidade de sua reputação ou relativização (princípio da proporcionalidade), é necessário dizer que não foram verificadas nos autos quaisquer ofensas às autoras, seja no que diz respeito à imagem pessoal ou à boa fama”, afirmou o juiz.

O advogado da emissora, Luiz de Camargo Aranha Neto, do escritório Camargo Aranha Advogados Associados, alegou em defesa da Globo e da jornalista Helena de Gramond que a reportagem mencionava as inovações do Código Civil abordando temas como comportamento social, entre outros. Afirmou que a repórter foi ao local com expressa autorização de vários moradores.

Aranha também sustentou que a reportagem foi feita com isenção, não havendo juízo de valor ou mancha da imagem dos condôminos. Disse, ainda, que não foi mostrada imagem das autoras da ação e menção de seus nomes, e que em nenhum momento a reportagem extrapolou a liberdade de pensamento.

Para o juiz, “a toda e qualquer evidência, não há na inicial, com o devido respeito, a invocação precisa de uma ofensa de índole moral atinente à intimidade, a vida privada, à honra e à imagem das autoras”.

Leia a sentença

PODER JUDICIÁRIO

SÃO PAULO

19ª VARA CÍVEL DO FORO CENTRAL DA CAPITAL

Proc. nº 000.003.015264-0

VISTOS.

TEREZINHA MOREIRA PIRES e outra, já qualificados nos autos, ajuizaram ação com pedido de indenização por danos morais contra TV GLOBO LTDA e outros, também já qualificados nos autos, alegando, em breve síntese, que em 05/11/2002 a presidente da Associação Nacional de Defesa dos Condôminos, Ernestina Luiza dos Santos Raiol, acompanhada de Helena de Gramond, repórter da TV Globo realizaram matéria jornalística alegando que havia condôminos em atraso e que faltava prestação de contas por parte da síndica, reportagem que foi pedida por parte dos condôminos. Afirma que o proprietário da unidade 1 do 14º andar H.C. entrou no condomínio acompanhado da repórter e da presidente da associação, mostrando imagens do saguão, permaneceram no local por um tempo, andando nas áreas comuns do edifício. Afirma que a co-autora Noemia estava com problemas no menisco, em sua casa, quando a repórter bateu em sua porta, sem informar do que se tratava, tendo Noemia aberto a porta apenas parcialmente. Afirma que a repórter agiu de maneira contrária aos bons costumes, exigindo prestação de contas, e mostrando o interior da propriedade. Afirma que Noemia fechou a porta enquanto a repórter tentava forçar a entrada. Afirma que alguns condôminos acabaram comparecendo à Delegacia de Polícia juntamente com a presidente da Anadecon, momento em que a repórter evadiu-se do local. Afirma que a reportagem foi feita sem autorização do condomínio e foi veiculado na edição do Fantástico em 10/11/2002. Afirma que em nenhum momento a presidente da Anadecon solicitou apresentação de documentos do condomínio. Afirma que sofreu constrangimentos de alguns proprietários de unidades. Afirma que a reportagem manchou a honra das autoras. Afirma que está caracterizada a calúnia. Requereu em antecipação dos efeitos da tutela para a realização de nova reportagem esclarecendo os fatos e a condenação das rés ao pagamento de danos morais.

Com a inicial foram juntados os documentos de fls. 17/57.

Foi determinada a emenda da inicial (fl. 58), mas houve provimento ao recurso interposto pelas autoras, no sentido de que não havia irregularidades no prosseguimento do feito (fls. 116/120).

Devidamente citadas (fls. 160) as rés apresentaram contestação.

A Anadecon e Ernestina Luiz do Santos Raiol apresentaram contestação (fls. 168/177), alegando, em síntese, que a inicial é inepta, pois falta causa de pedir. Afirmam que a associação foi convocada para intervir na administração condominial por quatro condôminos, não havendo nenhuma ilicitude na conduta. Afirmam que Ernestina não tem relação com a causa, pois apenas representava a associação. Afirmam que o procedimento criminal foi arquivado. Afirmam que pelo teor de cinco atas das assembléias de condomínio havia descontentamento com o comportamento da síndica e de sua irmã. Havendo inúmeras queixas e questionamentos. Afirmam que a administradora foi notificada da reclamação feita pelos condôminos, tendo a síndica sido destituída do cargo por assembléia extraordinária. Afirmam que a reportagem não mencionou o nome das autoras em nenhum momento, nem o nome do edifício ou do bairro, mas apenas mostraram as dependências do edifício sem qualquer identificação. Não houve caracterização da vontade de difamar e caluniar, não agindo com dolo ou culpa. Afirmam que a reportagem foi regular. Afirmam que as autoras perderam a oportunidade de explicar suas razões à reportagem. Requereram improcedência do pedido e reconhecimento de litigância de má-fé.

Com a contestação foram juntados os documentos de fls. 178/233.

Também devidamente citadas, a ré TV Globo Ltda e Helena de Gramond, também apresentaram contestação (fls. 241/255), alegando em breve síntese, que no caso dos autos aplica-se a Lei nº 5.250/67. Afirmam que Helena de Gramond é parte ilegítima para figurar no pólo passivo da demanda, pois apenas a pessoa física ou jurídica que explora o meio de informação ou divulgação pode responder pelos danos. Afirmam que a reportagem mencionava as inovações do Código Civil abordando temas como comportamento social entre outros. Afirmam que a repórter foi ao local com expressa autorização de vários moradores e, após, alguns condôminos procuraram a Anadecon. Afirmam que a reportagem foi feita com isenção, não havendo juízo de valor ou mancha da imagem das autoras. Afirmam que vários condôminos estavam contestando a inexistência de prestação de contas. Afirmam que não foi mostrada imagem das autoras e menção de seus nomes, não tendo sido identificado o condomínio autor. Afirmam que em nenhum momento extrapolaram a liberdade de pensamento e não houve abuso em tais liberdades. Afirmam que não existiram danos morais, pois da reportagem não redundou descrédito para as autoras no meio social. Afirmam que o pedido de nova reportagem não encontra amparo na legislação. Requereram a improcedência do pedido.

Com a contestação foram juntados os documentos de fls. 256/266.

As autoras manifestaram-se sobre as contestações (fls. 278/287). As partes também especificaram as provas que pretendiam produzir (fls. 275/276 e 291). Foi designada audiência de instrução (fls. 305/306), na qual foram ouvidas as partes e as testemunhas arroladas por elas (fls. 307/318).

Alfim, as partes manifestaram-se em alegações finais (fls. 323/327, 330/332 e 337/356).

É O RELATÓRIO.

FUNDAMENTOS E DECIDO.

Segundo as provas coligidas durante a instrução da causa, bem como com fundamento nos argumentos trazidos pelas partes, os pedidos condenatórios contidos na inicial devem ser julgados improcedentes.

Em um primeiro momento, antes analisar os pressupostos de fato do pedido condenatório, são necessárias algumas considerações sobre a liberdade de expressão do pensamento e sobre a liberdade de imprensa.

Da mesma forma, após esgotar estas primeiras questões, também deverão ser analisados, em um segundo momento, os conceitos do disposto no art. 5, X, da Constituição Federal (“[…] X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; […]”)


Quanto à liberdade de expressão do pensamento, nas palavras de Konrad Lonrez, ao mencionar o perigo da doutrinação feita pelos demagogos, é “[…] uma das mais importantes características do ser humano […]”. (A demolição do homem – crítica à falsa religião do progresso, ed. Brasiliense, 2ª edição, trad. Horst Wertg, p. 148).

Sem a plena liberdade de manifestação do pensamento, o homem se torna um autônomo, sem independência, facilmente domesticado pelos doutrinadores demagogos, pelos militares violentos ou pelos publicitários sedutores.

A verdade deve sempre imperar no Estado Democrático do Direito.

E a verdade somente poderá imperar onde imperar também a liberdade do pensar. No estado onde não há liberdade a verdade permanece oculta pelos interesses dos poderosos do momento. Trata-se de uma imperiosa necessidade da Democracia.

É preciso, necessário e fundamental que os independentes se manifestem sempre, denunciando o farisaísmo, a omissão, a violência, o erro, a inércia, a ausência, a corrupção, o abuso, a falácia, a podridão, o medo, a impostura, o segredo, procurando mostrar ao povo ou aos interlocutores o conhecimento racional sobre a estrutura e sobre o funcionamento dos acontecimentos relatados e também sobre a sociedade como um todo.

A certeza moral é um perigo. É necessário que as premissas levantadas pelos demagogos sejam questionadas. É necessário que as notícias da imprensa sejam também questionadas, uma vez que a pressa leva ao erro, ou ainda à leviandade de mostrar rapidamente o acerto deste ou daquele Governo em determinado conflito, como facilmente se verifica no caso de invasões criminosas a países por forças poderosas para matar os civis indistintamente sob os mais perigosos argumentos, como já denunciado alhures pelo sábio Noam Chomsky.

A doutrinação que leva à certeza moral é um perigo para as liberdades, é um perigo para a juventude.

Segundo Jacques Ranciére, “Hegel já zombava da noite do Absoluto, onde todas as vacas são cinzentas.” (Folha de São Paulo, Mais!, domingo, 31 de março de 2002).

Não há verdades absolutas, como já pretenderam instalar as ditaduras de direita e de esquerda, e o pensar é livre, uma vez que “nada já existiu antes”, nas palabras de Konrad Lorenz (A demolição do homem – crítica à falsa religião do progresso, ed. Brasiliense, 2ª edição, trad. Horst Wertig, p. 177).

É preciso saber distinguir o certo do errado, ouvir, falar, questionar. E isso é a liberdade.

Albert Camus definiu liberdade da seguinte forma: “Liberdade nada mais é do que uma oportunidade de fazer melhor.”

“A vida é crescimento. A história do homem, da poeira protoplásmica ou do limo ao que quer que a corrida atrás da ‘noosfera’ de Teilhard de Chardin eventualmente alcance, é uma história de desenvolvimento, de melhoria, de atualização de um potencial. Tal desenvolvimento, como Darvin provou, depende do acaso, da oportunidade de selecionar entre alternativas, ou, nas palavras de Camus, ‘a oportunidade de fazer melhor’. A liberdade é, então, a disponibilidade de fazer aquelas seleções que militam em prol do progresso da vida e do desenvolvimento da raça humana. Como disse Archibald McLeish, o poeta-advogado-estadista norte-americano, e um dos fundadores da Unesco: ‘Liberdade é o direito de escolher; o direito de criar para si mesmo as alternativas de escolha.’.” (Desmond Fischer, O direito de comunicar, ed. Brasiliense, São Paulo, 1984, p. 21).

Expressar o pensamento é dar um pouco de si para o debate, para o diálogo, para o crescimento. Esta é uma virtude socrática, do livre discutir tudo o que for cognoscível. É poder dizer a opinião sobre todos os assuntos que digam respeito aos negócios e aos interesses públicos.

Rui Barbosa definiu a liberdade de pensamento da seguinte forma: “De todas as liberdades, a do pensamento é a maior e a mais alta. Dela decorrem todas as demais. Sem ela todas as demais deixam mutilada a personalidade humana, asfixiada a sociedade, entregue à corrupção o governo do Estado.” – grifei – (Teoria política, seleção, coordenação e prefácio de Homero Pires, W.W, Jackson Inc. Editores, volume XXXVI, p. 257/258).

A Constituição da República, no art. 5º, inciso IV, garante que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.

Da mesma forma, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) estabelece nos arts. XVIII e XIX que “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isoloda ou coletivamente, em público ou particular” e “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras” (Instrumentos Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, série documentos nº 14).

Liberdade de expressão é, nas palavras de Nicholas Capaldi, na introdução do livro Da liberdade de expressão. Uma antologia de Stuart Mill a Marcuse, a “[…] liberdade de explorar, de descobrir, coordenar e divulgar aquilo que conhecemos, pensamos ou sentimos.”

Já segundo John Stuart Mill “Ninguém pode ser grande pensador sem reconhecer que, como tal, o primeiro dever é o de seguir sua inteligência a quaisquer conclusões que possa levar. A verdade lucra mais com os erros de alguém que, com o devido estudo e preparo, pensa por si mesmo, do que com as opiniões verdadeiras dos que só apóiam porque não são auto-suficientes para pensar. Não é só, ou principalmente, para formar grandes pensadores que se requer a liberdade de pensamento. Pelo contrário, ele é tanto, e mais indispensável ainda, para habilitar a média dos seres humanos a atingirem a estatura mental de que são capazes. Houve, e poderá haver ainda, grandes pensadores individuais numa atmosfera geral de escravidão mental. Nunca existiu, porém, nem existirá jamais, em tal atmosfera, um povo intelectualmente ativo.” – grifei – (Nicholas Capaldi, Da liberdade de expressão. Uma antologia de Stuart Mill a Marcuse, trad. Gastão Jacinto Gomes, Fundação Getúlio Vargas, 1974, p. 20).

Por outro lado, no tocante à liberdade de imprensa, novamente é necessário o socorro a Rui Barbosa, o grande campeão das liberdades, para defini-la. Afirma Rui: “Há cento e oitenta anos que, na primeira fase da revolução francesa, na sua fase de luz e justiça, antes que os erros e paixões começassem a ensangüentá-la, um homem de autoridade superior entre seus contemporâneos, Pétion, ‘o virtuoso’, como eles lhe chamavam, exprimia-se assim: ‘Um dos maiores benefícios da liberdade de imprensa é acoroçoar os cidadãos a vigiarem sem cessar os homens que ocupam cargos públicos, alumiarem-lhes o procedimento, desvendarem-lhes as intrigas, advertirem a sociedade dos perigos, que corre. Cria a liberdade de imprensa atalaias desveladas, que às vezes dão rebates falsos, mas às vezes os dão proveitosos; e mais vale estar de sobreaviso para a defesa, quando nos não acometem, que ficar desapercebido, convencida uma pessoa de que um funcionário público é culpado, e trai convencida uma pessoa de que um funcionário público é culpado, e trai a confiança do povo; pode ter recebido confidências de um subalterno desinteressado; podem ocorrer, enfim, um sem conto de indícios, que obrigue a consciência de um homem escrupuloso a se declarar. Terá salvado a pátria. Entretanto, pela lei que se vos propõe, será levado a juízo, e declarado caluniador. Quê! Hei-de eu aguardar que o inimigo tenha entrado em França, para dizer que a França se acha ameaçada? Para denunciar uma conjuração, hei-de esperar que ela estoure?” – grifei – (Teoria política, seleção, coordenação e prefácio de Homero Pires, W.W, Jackson Inc. Editores, volume XXXVI, p. 258/259).

Como se vê, tanto a liberdade de pensamento quanto a liberdade de imprensa são portos seguros onde poderá repousar a democracia.


Como já mencionado, após esta introdução sobre a necessidade imperiosa da existência da liberdade de imprensa e da liberdade de pensamento na democracia, é preciso mencionar, contudo, que nenhum direito é absoluto, tendo em vista o princípio da relatividade ou proporcionalidade dos direitos e garantias fundamentais.

No uso do direito e da liberdade de expressão do pensamento e da opinião, não se pode, a toda e qualquer evidência, denegrir a imagem, a vida privada, a honra e a boa fama das pessoas.

A reputação das pessoas deve estar protegida de toda ofensa feita sob o manto da liberdade de expressão.

O artigo 19 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos dispõe que: “1. Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões. 2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha. 3. O exercício do direito previsto no parágrafo 2º do presente artigo implicará deveres e certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para : a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde, ou a moral públicas” – grifei – (Fábio Konder Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, editora Saraiva, São Paulo, 1999, p. 282).

Percebe-se, pois, que os direitos fundamentais não se excluem. Devem, ao contrário, e necessariamente, conviver no sistema jurídico, uma vez que não são absolutos, mas relativos, comportando, em determinadas situações, em derrogação pontual.

Quando há dois ou mais direitos fundamentais igualmente dignos de proteção jurídica a incidência de um deles exclui a dos demais, havendo assim chamada colisão de direitos.

De um lado, o direito à intimidade da pessoa, sua vida privada, honra, boa fama, imagem, e, de outro, o direito à expressão do pensamento desembaraçado de toda e qualquer censura prévia ou posterior.

J. J. Gomes Canotilho diz que há colisão de direitos quando “[…] o exercício de um direito fundamental por parte de seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular.” (Direito Constitucional e teoria da constituição, Editor Livraria Almedina, 2ª edição, 1998, p. 1137).

Assim, superando as doutrinas sobre o direito natural, que negavam a possibilidade efetiva de conflito entre as normas jurídicas, posto que o direito se caracterizava por ser absoluto, universal e imutável, os exegetas do direito positivo, principalmente na sua última fase, com FRANÇOIS GÉNY, criaram a possibilidade de que determinados direitos pudessem, em determinadas circunstâncias, se sobreporem a outros, mediante a preponderância dos mais importantes conforme um critério social, estabelecendo um equilíbrio entre eles (conforme menciona Eduardo Novoa Monreal, Derecho a la vida privada Y libertad de información, un conflicto de derechos, Siglo Veintiuno Editores, 5ª edición, México, diciembre de 1977).

Vigora, pois, nos dias que correm a convivência das liberdades públicas.

Assim, dentre os direitos qualificados como fundamentais, um será prevalente, de acordo com a situação jurídica e fática posta em Juízo (J.J. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e teoria da constituição, Editor Livraria Almedina, 2ª edição, 1998, p. 1141).

Delimitados os direitos (liberdade de imprensa e liberdade de pensamento) e a possibilidade de sua reputação ou relativização (princípio da proporcionalidade), é necessário dizer que não foram verificadas nos autos quaisquer ofensas às autoras, seja no que diz respeito à imagem pessoal ou à boa fama.

Tais conceitos estão restritos, de forma concorrente, à compreensão exata do que a pessoa é para si e para os demais cidadãos conviventes em sociedade.

O mais ilimitado dos conceitos e que deve ser mais observado é o de vida privada.

Adverte Eduardo Novoa Monreal que os conceitos não são precisos. Muito ao contrário, são fluidos, multiformes e variados.

Contudo, algumas situações devem ser entendidas como pertencentes à vida priva, isto é, o conceito menos limitado dentre os enumerados no artigo 5º, X, da Constituição, ou seja, os aspectos da vida amorosa, religiosa, sexual, à saúde, à vida passada, à vida profissional (in Derecho a la vida privada y libertad de información, un conflicto de derechos, Siglo Veintiuno Editores, 5ª edición, México, diciembre de 1977, p. 45/46).

Nada obstante, não basta esta enumeração do que pode ser conhecido como aspecto da vida privada. Tais aspectos para merecerem proteção da lei e da Constituição devem ter certas características. Dentre estas características estão: (a) a existência de fatos ou de manifestações que normalmente estejam subtraídos do conhecimento de outras pessoas estranhas ao círculo familiar; (b) que os fatos provoquem nos titulares uma turbação moral em razão de ter sido afetado em seu pudor ou recato; (c) e, por fim, que o sujeito não queira que outras pessoas tomem conhecimento destes fatos (Eduardo Novoa Monreal, obra citada, p. 49).

Somente agora, após elucidar a extensão de ambos os direitos conflitantes, é que é possível ir aos fatos propriamente ditos, pois como é dito há séculos ex facto oritur jus.

A toda e qualquer evidência, não há na inicial, com o devido respeito, a invocação precisa de uma ofensa de índole moral atinente à intimidade, a vida privada, à honra e à imagem das autoras.

Naturalmente que as autoras foram procuradas em casa, mas isso decorre da natureza dos fatos noticiados, ou seja, problemas condominiais.

Alguém duvida que os condomínios são um manancial quase que inesgotável de litígios desnecessários?

É fato incontestado que a reportagem entrou no condomínio a pedido de alguns moradores. E não é necessária a realização de uma assembléia para garantir esta entrada, bastando o convite de um dos condôminos.

Terezinha Moreira Pires (fls. 307/312), por sua vez, em nenhum momento informa quais foram especificamente as ofensas sofridas, de forma certa e determinada.

O mesmo no tocante à co-autora Noemia Moreira Pires (fls. 309/310).

Também Josefa Ferreira de Jesus (fls. 315/316), que assistiu à reportagem, informou que apenas viu o prédio filmado, tão-somente.

Este é o conteúdo verificado nos demais depoimentos.

O que existiu de fato é o problema pretérito, ou seja, as dificuldades de relacionamento pessoal e profissional entre os moradores e a Sindica, e a reportagem apenas acabou por evidenciar que isso realmente existia.

Segundo H.C. (fls. 317/318) havia dificuldades para a apreciação das contas do condomínio, que não eram mostradas.

Também alguém tem alguma dúvida de que o síndico deve prestar contas de sua administração?

Portanto, como se vê, não houve qualquer ofensa de índole moral à vida amorosa, religiosa, sexual, à saúde, à vida passada, e à vida profissional das autoras, e não foram decorrência de fatos ou de manifestações que normalmente estejam subtraídos do conhecimento de outras pessoas estranhas ao círculo familiar, que os fatos provoquem nos titulares uma turbação moral em razão de ter sido afetado em seu pudor ou recato, e que o sujeito não queira que outras pessoas tomem conhecimento destes fatos.

Os problemas já existiam antes, não foram criados pela reportagem e não eram problemas que diziam respeito apenas à esfera personalíssima das autoras.

Muito ao contrário, eram fatos que diziam respeito a uma coletividade de pessoas (condomínio) e também fatos do interesse público (ou seja, referentes às inúmeras dificuldades e problemas decorrentes dos condomínios, que são um manancial quase inesgotável de ações judiciais e até mesmo problemas policiais).

Diante do exposto e considerando o mais que dos autos consta, JULGO IMPROCEDENTES os pedidos de natureza condenatória contidos na inicial, extinguindo o processo com julgamento do mérito, com fundamento no artigo 269, I, do Código de Processo Civil.

Condeno as autoras ao pagamento das custas, despesas processuais e nos honorários advocatícios, que fixo em R$ 3.000,00 (três mil reais), para cada um dos réus, tendo como base a equidade, nos termos do art. 20, § 3º, letras “a”, “b” e “c”, e § 4º, do Código de Processo Civil, tendo em vista a necessidade de ressarcimento das despesas que os réus tiveram com os honorários advocatícios.

P.R.I.C.

São Paulo, 11 de janeiro de 2006.

CLÓVIS RICARDO DE TOLEDO JÚNIOR

Juiz de Direito

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