A Justiça e a fazenda

O Imposto Sobre Serviços virou uma guerra suja

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30 de janeiro de 2006, 6h00

O município de São Paulo resolveu obrigar empresas sediadas em outros locais e que prestam serviços a clientes aqui estabelecidos a fazer um cadastro, onde se exigem informações e documentos diversos, inclusive fotos de sua sede. Quem não se cadastrar, ficará sujeito a ter o ISS retido pelo seu cliente e recolhido aos cofres paulistanos, independente do que esteja pagando lá onde está a sua sede.

Agora, vários municípios do estado, que podem perder arrecadação por causa disso, já ameaçam adotar legislação semelhante, para reter o imposto devido ao fisco paulistano, quando empresas aqui sediadas possuírem clientes nesses outros municípios.

Ou seja: a guerra fiscal do ISS, que todos dizem que precisa acabar, está se acirrando, tornando-se mais feroz, mais grave, mais suja. Virou um “pega pra capar”, como se diz no Nordeste, uma “briga de foice”.

O ISS é regulado a nível nacional pela Lei Complementar 116/2003, por expressa determinação do artigo 156 da Constituição Federal. E a LC diz, no seu artigo 3º, que o imposto é devido no local do estabelecimento ou do domicílio do prestador, ou seja, onde está a sede da empresa que prestou os serviços. As únicas exceções são as expressamente mencionadas nos incisos I a XXII do mesmo artigo.

Apesar da clareza do texto complementar, entrou em vigor a Lei paulistana 14.042, criando novas exceções, como se uma lei aprovada pelos nossos sábios e doutos vereadores tivesse o mesmo valor jurídico que a lei de caráter nacional, prevista na Carta Magna.

A “justificação” para essa subversão da norma constitucional, para essa audaciosa negativa de vigência de uma lei nacional, seria a existência de empresas que estariam fraudando a arrecadação, com a simulação de estabelecimento nas cidades que resolveram cobrar menos pelo ISS.

Esse entendimento ignora o princípio da presunção de inocência, fixado não apenas na Constituição Federal, mas também na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Se algum funcionário público entende que há empresas que estejam a simular sua sede, tem ele o dever legal de ofertar a denúncia à autoridade competente para que seja instaurado o inquérito policial que a lei diz ser obrigatório. Mas não tem o direito de exigir que alguém prove sua inocência, pois não se deve provar o que a Carta Magna manda presumir.

Para os nossos sábios e doutos vereadores e principalmente para os servidores públicos municipais (especialmente os nomeados sem concurso), a Constituição e a Declaração Universal que o Brasil assinou valem menos que a lei e o decreto municipais. Valem menos até que a Portaria do Secretário de Finanças.

A ignorância dos nossos sábios e doutos vereadores em questões de direito e legislação não nos surpreende. Menos ainda a falta de bom senso de executivos fazendários e a magnífica arrogância de certas pessoas que, por estarem sempre ocupando “cargos de confiança” em governos aos quais servem, imaginam que podemos confiar na sua ilimitada capacidade de entender de tudo.

Tanto pensam que entendem de tudo, que aceitam cargos os mais diversos, como se a carteirinha de filiação partidária fosse o mesmo que um título de doutor em todas as ciências, mestre em todas as artes, técnico em todas as especialidades.

Mas ao completarmos um mês de efetiva vigência dessa lei municipal que vale mais que a Carta Magna e a lei complementar juntas, o que está nos surpreendendo é o posicionamento de alguns magistrados (ao que parece a maioria) que resolveram encarnar a figura do juiz “fazendeiro” mencionado por Rui na Oração aos Moços, aquele que tem “a doença de achar sempre razão ao estado, ao governo, à fazenda…”.

Ao negar liminares em Mandados de Segurança impetrados por contribuintes que fizeram provas muito consistentes de que de fato possuem sede em outros municípios, alguns juizes “fazendeiros” disseram que não viram a “fumaça do bom direito” ou não vislumbraram o “perigo da demora”.

Ora, se alguém prova, com documentos irrefutáveis, que tem sede em outro município, a negativa da liminar contraria o entendimento já consagrado de forma unânime pelo Superior Tribunal de Justiça no RE 73.086-SP, segundo o qual “A fiscalização municipal deve restringir-se à sua área de competência e jurisdição.”

Se o contribuinte que tem sede em outro município e junta na inicial Alvará de Licença e Funcionamento e também prova com documentos que tem clientes em São Paulo, nenhum juiz terá dificuldade para enxergar a “fumaça do bom direito”.

A não ser, é claro, que seja um juiz “fazendeiro” e que não queira ver a “fumaça” que se espalha sempre que os direitos das pessoas estejam sendo queimados na fogueira das arbitrariedades tributárias, quando o fisco queima a Constituição e põe fogo na Lei Complementar.

Também é muito difícil que não se vislumbre o “perigo da demora” quando o impetrante demonstra, de forma inequívoca, com documentos, que tem clientes estabelecidos em São Paulo e que se sujeitam a uma lei que os obriga a fazer retenção de um tributo que não é de sua responsabilidade.

Claro que se a sentença for favorável ao impetrante depois da retenção, ele terá grande dificuldade para receber de volta o tributo que foi indevidamente retido.

Os juizes sabem, mais do que outras pessoas, que o poder público é o maior caloteiro deste país e que quando embolsa dinheiro que não lhe pertence, tudo fará para não devolvê-lo mais. Ou ninguém mais se lembra dos empréstimos compulsórios, dos precatórios que se eternizam, das restituições de impostos que os administradores fazendários retardam sempre?

Portanto, ignorar o “perigo da demora” é imperdoável para um juiz. Basta que façamos uma singela leitura dos diários oficiais da Justiça para verificarmos a enorme quantidade de processos de cidadãos que, lesados pelos governos desonestos e caloteiros que se sucedem neste país, procuram no Judiciário a reparação dos danos que sofreram.

Também já não resiste à mais ligeira análise fática a surrada argumentação que alguns usam, segundo a qual “os atos administrativos presumem-se legítimos”.

Na já citada Oração aos Moços, há mais de 80 anos, Rui Barbosa nos ensinava que se tivéssemos que usar alguma presunção, ela teria de ser contrária. Ou seja, os atos administrativos, tendo em vista os abusos, as ilicitudes e a falta de escrúpulos de muitos governantes, deveriam ser presumidamente desonestos e sem valor.

Já estamos carecas de saber que decisão judicial deve ser obedecida. Também sabemos que contra a decisão, cabe recurso. Mas já está ficando difícil acreditar na Justiça brasileira, cada vez mais distante do povo e próxima dos holofotes; cada vez mais preocupada em falar do que fazer; cada vez mais um instrumento a serviço da vaidade de seus dirigentes.

Tanto assim que há em nossos tribunais funcionários encarregados de procurar “pêlo em ovo” para impedir que recursos tenham andamento. São autenticações inúteis, cópias em demasia, taxas em cascata, enfim, uma série de “armadilhas” cujo único objetivo é impedir que haja Justiça!

Dos nossos três poderes, só o Judiciário não se submete ao voto do povo. Talvez isso explique porque, aparentemente, muitos juizes nos ignorem.

E, justamente porque não se sujeitam à eleição, os juizes são imparciais e merecem total independência. Não precisam pedir nosso voto e por isso são mais confiáveis.

Seria muito perigoso para todos nós se algum dia não pudermos mais confiar em nossos juizes. Eles são a nossa esperança e a nossa certeza de que os nossos direitos serão respeitados. Afinal, podemos perder tudo, menos a esperança de Justiça. Sem ela, nada mais teremos a perder. E como Confúcio já disse, o homem mais perigoso é o que nada tem a perder.

Por isso é que são perigosas essas idéias de reduzir recursos. Dizem que estão preocupados com a celeridade da Justiça. Já é tempo de nos preocuparmos com os celerados do fisco…

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