Papel da Corte

O Supremo Tribunal Federal e a sua atuação política

Autor

  • João Antonio Wiegerinck

    é advogado mestrando pela PUC-SP em Direito Constitucional e coordenador no Complexo Jurídico Damásio de Jesus. É também professor de Direito Constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie (pós-graduação).

24 de janeiro de 2006, 6h00

O assunto divide o entendimento de juristas, magistrados, procuradores, promotores, advogados e leigos. Adotada como premissa maior a obrigação do magistrado em decidir questões levadas ao seu conhecimento e revestidas dos necessários requisitos, não pode o Judiciário se furtar à conclusão dos casos sob sua tutela.

O que se discute é o caráter e o conteúdo das decisões proferidas pelo órgão guardião da nossa Constituição em seus aspectos formais e materiais, conforme preceitua o “caput” do artigo 102 da Lei Maior.

Deve exercer sua função típica mor proferindo decisões de cunho jurídico-científico, ou seja, a aplicação do Direito, ou deve se pautar por decisões políticas, atreladas às necessidades e interesses do Estado e seu atual governo? Incluem-se, em vista da tripartição, no conceito de governo, os demais poderes — Executivo e Legislativo.

Ainda que árdua a tarefa que nos propusemos, qual seja, buscar uma resposta à questão, não nos furtaremos, até porque o debate científico é sempre produtivo. Assim, cabe, inicialmente, observar, de forma célere, como exercem suas competências os três Poderes, a fim de evidenciar as forças existentes no exercício das suas funções, como previa Montesquieu em sua obra O Espírito das Leis, findo em 1724 e publicado em 1748, quando abordava o limite naturalmente delimitado pelo simples agir de cada setor especializado do Estado.

Legislativo e Executivo, como podemos observar em todos os modelos constitucionalistas que adotam a tripartição, exercem suas funções de maneira mais conexa, mais interligada do que o Poder Judiciário em relação a qualquer deles. A fiscalização parcial entre estes dois poderes é intensa, e não nos faltam exemplos positivados na Carta Magna.

A eventual conversão da Medida Provisória em lei ordinária, a criação de novos cargos em sua hierarquia, a vigência além do decreto de Estado de Defesa, Sítio ou Intervenção Federal são exemplos de atos cujo objeto mediato se dá por iniciativa do Poder Executivo, mas dependem da aquiescência do Poder Legislativo para sua consumação ou manutenção.

Em equilíbrio, verificamos que as atribuições específicas do Congresso Nacional, como ensina o artigo 48 da Constituição Federal, a análise final e promulgação dos projetos de lei, complementar e ordinária, entre outros exemplos, dependem da aprovação do Poder Executivo.

O Poder Judiciário precisa ser provocado por um dos demais poderes para que possa atuar efetivamente nos dados supra assinalados. De certo que, amplo senso, a estruturação demonstrada leva ao cunho do pensamento expresso entre o povo, de que “o Judiciário é nossa última esperança contra a corrupção dos demais poderes.”

Entretanto, quando verificamos que o Supremo Tribunal Federal tem sua formação por indicação do chefe do Executivo, sendo o indicado final sabatinado pelo Senado Federal, a tal esperança perde considerável força. As pesquisas mostram que a sabatina a que é sujeito o indicado não se faz consistente com a comprovação no notável saber jurídico que dispense titulação ou atividade técnica comprovada.

De plano, é justo ressaltar que, ainda sendo este um sistema de escolha sujeito à suspeição, contamos com alguns ministros cuja capacidade jurídico-científica se faz inconteste. Não se dobram a interesses escusos ou grupos de pressão.

Tais magistrados demonstram vocação para o exercício do cargo, sem se deixar contaminar por pressões ou interesses alheios ao Direito e à Justiça, equilibrando com coerência a aplicação da norma positivada e a interpretação axiológica na construção de suas decisões. Estas, a nosso ver, são decisões técnico-jurídicas.

Por infelicidade de carregarmos em nós, como espécie, deficiências como ganância, inveja, rancor e tantas outras inerentes ao nascimento, ou resultado de educação falha, nem todos os ministros do Supremo Tribunal Federal decidem com transparência as questões a eles entregues. São estas as decisões efetivamente eivadas de má-fé em favor próprio ou de outrem a quem está o magistrado em conluio. Não consideramos estas decisões técnico-jurídicas, nem tampouco políticas. São decisões imorais e inconstitucionais, ditas jurídicas por força do órgão que as emana.

Por amor à ciência, à hermenêutica e à característica humana sublime de interpretar, entendemos que política significa o exercício do poder pelo governo e suas instituições. Se demagogos nascidos na democracia grega se aproveitaram da força dos discursos como instrumentos vantajosos para si mesmos, conforme nos ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho, na 1ª edição de sua obra Aspectos do Direito Constitucional Contemporâneo, 2003, Editora Saraiva, este fato não pode contaminar o termo científico. Assim, o cidadão comum pode atribuir “político” ou “política” como adjetivos depreciativos associados a algo desonesto. Porém, o estudo acadêmico exige abordagem lógica, analítica, metodológica.

Estudo dirigido ao significado da palavra “política” e seu emprego no curso do tempo em diferentes localidades e situações, considerando pensadores como Aristóteles, Platão, Maquiavelli, Hobbes, Locke e Rousseau, nos leva ao conceito sumário de que política se refere ao que envolva relações de poder ou à organização e administração de grupos. O incremento das funções conferidas aos governos, sob a forma do Estado, resultou na ampliação do campo das atividades políticas, abrangendo questões administrativas e organizacionais, rumos econômicos e serviços sociais.

Ato político, então, é todo aquele que envolve o exercício do poder instituído ao Estado, pouco importando, neste momento, para tal conceito, como se deu a instituição do poder, a forma do Estado ou o sistema de governo.

A decisão política, portanto, configura-se em uma terceira espécie de decisão, sob as luzes do presente estudo. Em foco imparcial, a decisão política é proferida pelo Poder Judiciário com respeito aos limites normativos, em regra utilizando-se a interpretação extensiva. Entretanto, não apenas estes elementos técnicos compõem tal decisão. Em verdade, o elemento caracterizador da decisão política é a observância, pelos ministros do STF, das possibilidades de adimplemento do Estado frente às necessidades dos administrados, ponderando, desta forma, sobre os reflexos práticos da decisão e os efeitos sentidos nos alicerces dos demais poderes.

Ao proferir determinação de cunho político, o Judiciário intenta a eficácia e a efetividade da mesma na concretização do Texto Maior, ainda que tal conduta possa não ser apontada como puramente técnico-jurídica, pois estão presentes características de governo e administração no bojo do decisório.

Note-se que o foco acima não tem caráter crítico. Entretanto, como cientistas do Direito, em estudo apartado, repugnamos decisões que fogem da esfera judicial e não pretendemos acalentar o desconforto por meio da imparcialidade. A decisão política conforme sublinhada acima, subsiste, basicamente, em sua maioria, nos países em desenvolvimento, Estados cujos valores axiológicos encontram-se adolescentes, Estados cujos representantes eleitos para o Legislativo ou o Executivo não precisam de um preparo mínimo para ocupar o cargo — basta decorar o desenho do próprio nome ou assinatura, passando-o para o papel.

A conseqüência imediata do quadro de desqualificação técnica e intelectual de boa parte dos representantes eleitos é a impossibilidade de o Supremo Tribunal Federal proferir decisões puramente técnico-jurídicas, porque os cofres públicos simplesmente entrariam em colapso financeiro frente às devidas indenizações a todos aqueles que foram prejudicados pelas incompetências advindas do despreparo técnico ou moral de boa parte dos governantes mencionados.

A democracia é desejável, mas como tudo, tem o seu custo. Decisões técnicas advindas de um Poder Judiciário que efetivamente tenham como chamar os representantes eleitos e suas instituições a responderem imediatamente pelos erros, ou abuso de poder, ou desvio de função, estão guardadas para nações com solvência administrativa interna, ou seja, cofres abastecidos para suportar os custos de se aprumar a conduta do país — até porque todo Estado e seus representantes cometem erros. A responsabilidade está em corrigi-los e ressarcir os prejudicados.

Os exemplos são diversos para ilustrar o que se materializa como decisão política, ao nosso modesto ver. Tomemos a Lei 9.868/99, em seu artigo 27, o qual transcreve o artigo 282,4 da Constituição Portuguesa:

“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”

Interessante atentar para o conceito de segurança jurídica, não resta dúvida, pois vinculado está ao devido processo legal, quando utilizado de forma técnica. Quando não o é, enfrentamos decisão estranha à Justiça. O que salta aos olhos é o caráter de “excepcional interesse social”. Para atender a este requisito, está o Supremo Tribunal Federal autorizado a mesclar elementos de governo em suas decisões e, nos casos de impossibilidade do erário, auxiliar o Poder Executivo a governar e administrar o orçamento público.

Não resta outra explicação à exceção criada pela lei que não a de impedir os indivíduos prejudicados por eventual inconstitucionalidade de norma, em ver ressarcido prejuízos causados pela mesma. Afinal, decisão declaratória de direito deve retroagir até a data do fato que causou o dano, a fim de repará-lo ab initio.

Percebendo a impossibilidade do Estado em cumprir com a obrigação de indenizar ou restituir prejuízo por ele caudado aos administrados, vez ou outra o Supremo Tribunal Federal profere decisão de cunho econômico e administrativo em termos de finanças, ou acata determinadas normas produzidas pelo Congresso Nacional e suas Casas, deixando de considerá-las inconstitucionais, mormente quando permitem esta conduta por parte dos magistrados.

Outro bom exemplo pode vir da tributação dos inativos, quanto a sua tese geral. Se um indivíduo contribuiu por décadas para ter direito à percepção de um valor mínimo com o qual pudesse ao menos garantir sua dignidade, qual seria a lógica a explicar ser este valor, decorrente do trabalho do próprio indivíduo e do respectivo recolhimento aos cofres públicos, tributado em favor do erário? Nada justifica tal decisão na esfera jurídica, e muito menos na esfera moral. Não há necessidade de ser jurista para perceber a incongruência do ato e sua manutenção jurídica.

Como pergunta a professora Maria Garcia àqueles que têm o privilégio de freqüentar suas aulas no mestrado ou doutorado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e usufruir do seu imensurável conhecimento: “O que deseja o Direito?”. Por certo, no exemplo acima, deseja garantir que seja dado a cada um o que lhe foi assegurado em norma, como contrapartida. No entanto, o Estado, alegando falta de recursos, agiu contra o Direito, e o guardião da Constituição não cumpriu papel técnico-jurídico, senão um papel político.

Enfim, entre decisões técnico-jurídicas, decisões ilícitas e decisões políticas, nos deparamos com as variações de conduta apontadas por Kant, quando cinde o ser do dever-ser, afirmando que o primeiro é incognoscível, instável e, portanto, imprevisível. Nem mesmo as premissas positivistas usadas por Kelsen a fim de estabelecer uma ordem comum a todos são capazes de evitar os desvios de função ou ainda garantir que o desejável seja sempre cumprido.

O Poder Judiciário, mais especificamente o Supremo Tribunal Federal, tem a árdua missão de fazer cumprir a norma, observar os valores que orientam a sociedade tanto acima do tempo e do espaço quanto na efetivação das suas decisões e, concorrente e concomitantemente, não se tornar o agente que conduza o país à falta de governabilidade, até que o Estado possa arcar com os prejuízos causados à comunidade.

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    é advogado, mestrando pela PUC-SP em Direito Constitucional e coordenador no Complexo Jurídico Damásio de Jesus. É também professor de Direito Constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie (pós-graduação).

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