ICMS: imposto desconhecido

A cada norma editada, o Brasil cria novas fronteiras fiscais

Autor

  • Clóvis Panzarini

    é economista ex-coordenador tributário da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo e sócio-diretor da CP Consultores Associado.

13 de janeiro de 2006, 19h46

O Brasil se tornou um dos pioneiros no uso de tributação indireta sobre valor agregado, quando, em 1965, por meio da Emenda Constitucional 18, que entrou em vigor em janeiro de 1967, instituiu a reforma no sistema de impostos. À época, essa reforma foi verdadeiramente revolucionária ao substituir ineficientes impostos cumulativos por outros do tipo valor agregado, como o IPI e o ICM, este depois transformado em ICMS. Até então, apenas a Costa do Marfim utilizava esse tipo de tributação, pois mesmo a França, muitas vezes considerada o berço do Imposto sobre Valor Agregado — o IVA — só o implantou a partir de 1968.

Os impostos sobre valor agregado, a despeito de sua complexidade, se bem geridos atendem a princípios que devem ser perseguidos por qualquer sistema tributário, como o da equidade, da neutralidade e da eficiência. Ao permitir a desoneração em toda a cadeia produtiva, quando assim se deseja, o IVA é um eficiente instrumento de política tributária. O mecanismo de devolução, ao elo seguinte da cadeia produtiva, da totalidade do imposto pago pelo remetente da mercadoria evita a indesejada cumulatividade ou o efeito-cascata e possibilita uma perfeita calibragem da carga tributária.

Entretanto, a lógica do IVA tem sutilezas que muitas vezes passam despercebidas por aqueles que têm a responsabilidade de administrá-lo, tanto no Poder Executivo quanto no Legislativo e no Judiciário. Não são raras as normas tributárias mal elaboradas pelo Poder Legislativo, mal interpretadas pelo fisco e mal decididas pelas cortes de Justiça. Um exemplo de norma equivocada é encontrado na própria Constituição Federal, que, ao dispor sobre o ICMS, determina, em seu artigo 155, inciso II, alínea b, que “a isenção e não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação, acarretarão a anulação do crédito relativo às operações anteriores”.

Essa pérola, de ranço fiscalista, vem da Constituição Federal de 1967, que dispunha o mesmo sobre o ICM. Ora, se a calibragem da carga tributária pode ser feita com precisão cirúrgica via definição da alíquota de saída, o administrador tributário não necessita desse instrumento de estorno de crédito, que introduz uma semi-cumulatividade e faz com que a carga tributária seja errática. Ao exigir o estorno, nem o próprio fisco fica sabendo qual é a efetiva carga tributária final. É muito mais eficiente definir a carga tributária que se deseja através da alíquota sobre a saída da mercadoria do que tributar, via estorno de crédito, os seus insumos, cujo peso nos custos de produção não é o mesmo para todas as empresas ou setores de atividade.

De fato, a carga tributária do ICMS é definida pela alíquota incidente sobre a última operação (para o consumidor final ou exportação), pois toda a tributação intermediária significa mera antecipação do imposto e não tem qualquer influência sobre a carga final. É um jogo de soma zero: o que é pago por um é devolvido, via creditamento, ao elo da frente. Quando se obriga a anulação de imposto pago anteriormente, a carga fica indefinida e uma redução de alíquota, com a obrigatoriedade de estorno dos créditos, pode até resultar em um aumento de carga tributária.

Imagine-se o exemplo da concessão de isenção com estorno de créditos a um produto tributado a 7% e cujos insumos sejam tributados a 18%, sendo o valor agregado na última operação igual a 100%. Nesse caso, com aritmética elementar se demonstra que a isenção com a obrigatoriedade de estorno, ao invés de resultar em benefício, aumenta de 7% para 9% a carga tributária, pois as perdas dos créditos pelas entradas superam os ganhos decorrentes do não-débito pelas saídas.

Assim, qualquer redução de alíquota com estorno de créditos torna errática a carga tributária final de cada contribuinte ou setor, pois passa a depender do índice de valor agregado de cada um, podendo até mesmo elevá-la ao invés de diminuí-la, como no bizarro exemplo acima, que não é ficção. Recentemente, algumas mercadorias tributadas a 7% tiveram a alíquota do ICMS reduzida para zero, com a obrigatoriedade de estorno dos créditos. O resultado foi algo parecido com o exemplo acima.

Outro efeito colateral indesejado desse mecanismo de tributação via estorno de crédito é o viés contra a economia do Estado que o aplica. Quando se estorna o crédito do imposto pago anteriormente, este se transforma em custo e então quanto menor for o crédito a ser estornado, menor será a carga tributária final. Como as alíquotas interestaduais (7% e 12%) são, como regra, menores do que as internas (18%), os produtores de insumos dos demais Estados, tributados a 12%, passam a ser mais competitivos que os do próprio Estado, tributados a 18%. Cria-se uma tarifa alfandegária às avessas.

De outro lado, um estado pode dar diferimento no lançamento do ICMS incidente sobre seus insumos e obrigar o estorno de crédito dos insumos adquiridos em outros estados. Nesse caso, cria-se uma tarifa alfandegária sobre mercadorias produzidas nos estados vizinhos. Também isso tem ocorrido com freqüência.

Não é demais lembrar que recentemente o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, decidiu ser constitucional a obrigatoriedade do estorno de crédito de ICMS relativo às entradas quando as saídas de mercadoria gozam de redução de base de cálculo, devendo o estorno ser proporcional à redução concedida.

Enquanto a União Européia, desde janeiro de 1993, aboliu as suas fronteiras fiscais, no Brasil, a cada norma editada, cria-se novas fronteiras fiscais intestinas. Como se pode perceber, apesar dos 38 anos de experiência, o Brasil ainda tem muito a aprender para administrar com eficiência os impostos sobre valor agregado.

(artigo publicado pelo jornal Valor Econômico no dia 13 de janeiro de 2005)

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