Saneamento básico

Como renovar os contratos de concessão de água e esgoto

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12 de janeiro de 2006, 15h26

Nos anos setenta, em plena ditadura militar, o Governo Federal criou um plano de saneamento, o Planasa. Isso possibilitou que fossem criadas empresas estaduais de saneamento que se tornaram concessionárias dos serviços de água e esgoto dos municípios.

Um pouco em razão da precariedade dos serviços prestados à época e muito em razão do poder de pressão de que dispunha o Governo, muitos municípios firmaram contrato com os órgãos estaduais criados para este fim. O contrato foi firmado sem licitação prévia em razão de previsão legal de dispensa de licitação vigente na legislação da época, o Decreto-Lei 200/67.

O plano do Governo, então, era não só o de prestar serviços de boa qualidade na área do saneamento, mas, ainda, de fazer com que as regiões em que havia maiores dificuldades na concretização desse escopo fossem ajudadas por aquelas em que os serviços pudessem ser prestados com maior facilidade. Ou seja, a tarifa superestimada num município iria subsidiar a tarifa de outro município. Era a prática do chamado subsídio cruzado.

No Estado de São Paulo foi criada a Sabesp e os municípios paulistas firmaram contrato de concessão de serviço público com ela, pelo prazo de 30 anos.

Os contratos estão agora vencendo e os municípios, mesmo os que estão recebendo bons serviços das empresas estaduais de saneamento, a Sabesp, no caso dos municípios paulistas, estão enfrentando um problema jurídico a respeito da renovação de tal contrato.

Assim, parece pertinente trazer algumas reflexões a respeito do assunto.

Primeiramente, há que se definir o que venha a ser concessão. Na clássica definição de Hely Lopes Meirelles, “contrato de concessão de serviço público, ou, simplesmente, concessão de serviço público, é o que tem por objeto a transferência da execução de um serviço do Poder Público ao particular, que se remunerará dos gastos com o empreendimento, aí incluídos os ganhos normais do negócio, através de tarifa cobrada aos usuários”.

Outra questão a se considerar de início, ainda, é a relativa à competência para prestar os serviços de fornecimento de água e tratamento de esgoto.

Tais serviços, nas constituições anteriores sempre foram considerados como aqueles de “peculiar interesse do município” e como tal, sem dúvida, deveriam ser prestados por este. Pela constituição de 1988, a competência do município está descrita no artigo 30, o qual, pelo inciso V, dispõe que “compete aos Municípios organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”.

O critério de interesse local é relativo. No caso de serviços de fornecimento de água que ultrapassem os limites do município, o poder concedente é o Estado e quando ultrapassem os limites do Estado, é da União.

No caso, entretanto, em que o serviço de fornecimento de água e tratamento de esgoto fica adstrito aos limites de um município, parece evidente que se caracteriza como assunto de “interesse local” e, como tal, submete-se à competência exclusiva desse município.

Com tais considerações preliminares, é tempo de esclarecer que o artigo 175 da Constituição Federal incumbiu ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. E o parágrafo único do citado dispositivo estabeleceu, ainda, que a lei disporia sobre “I -o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; II – os direitos dos usuários; III – política tarifária; IV – a obrigação de manter serviço adequado”.

Para atender as exigências constitucionais, foi promulgada a Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995.

Referida lei trata, entre outras coisas, da obrigação de que os serviços prestados sejam adequados, dos direitos dos usuários, da política tarifária, da licitação, do contrato, dos encargos do poder concedente, dos encargos das concessionárias, da extinção do contrato de concessão. Nesse contexto fica evidenciado que o poder concedente é quem fixa as tarifas, estabelecendo as mesmas nos processos licitatórios, com a previsão de reajuste e de reequilíbrio, na forma da lei. O poder concedente, também, deve zelar pela prestação dos serviços de forma adequada, podendo regulamentá-los, fiscalizá-los e intervir na concessionária, se for o caso, rescindindo o contrato. Trata a lei, ainda, da hipótese de extinção do contrato, pelo seu termo, estabelecendo, finalmente, os procedimentos no caso dos contratos firmados anteriormente à lei.

Assim dispõe o artigo 42 da Lei 8987, de 13 de fevereiro de 1995:

“As concessões de serviço público outorgadas anteriormente à entrada em vigor desta lei consideram-se válidas pelo prazo fixado no contrato ou no ato da outorga, observado o disposto no artigo 43 desta lei.

§ 1º Vencido o prazo da concessão, o poder concedente procederá a sua licitação, nos termos desta Lei.”

Assim, pela legislação brasileira, fica claro que: 1º) A prestação de serviços de fornecimento de água e tratamento de esgoto é de competência municipal, por se tratar de assunto de interesse local, exceto quando a prestação de serviços envolver mais de um município; 2º). Que tais serviços serão prestados diretamente ou por intermédio de concessão ou permissão; 3º). Que os contratos de concessão ou permissão serão firmados mediante prévia licitação e; 4º). Que o poder concedente é quem fixará a política de abastecimento de água e tratamento de esgoto no município, aí se incluindo, entre outras coisas, a expansão da rede, a escolha dos métodos de captação e distribuição de água e tratamento de esgoto e de resíduos sólidos, a fixação das tarifas e a fiscalização da prestação do serviço.

No caso dos contratos celebrados com a Sabesp, não há como se chegar a outra conclusão que não a de que, vencido por seu termo o contrato, deve a nova concessão ser firmada mediante licitação, sendo ilegal qualquer prorrogação de prazo, sob pena de se caracterizar a inobservância do princípio de isonomia. Na explicação de Marçal Justen Filho (Teoria Geral das Concessões de Serviço Público, editora Dialética, 1ª edição, página 269: “não há fundamento jurídico para que se assegure a um sujeito, por ter vencido licitação para outorga por prazo determinado, manter a delegação por prazo superior a ele.”

Importante lembrar que a Sabesp é empresa de economia mista e como tal se afigura como pessoa de direito privado, igualando-se a qualquer outra empresa do gênero. Importante lembrar, também, que a Sabesp, pelas circunstâncias nas quais seus contratos foram firmados, não se submete a qualquer fiscalização do poder concedente, sendo suas tarifas fixadas por decreto do Governador, mantendo o critério dos subsídios cruzados, pelos quais uns municípios são beneficiados e outros são prejudicados. Isso foge, totalmente, do interesse do município concedente.

Assim, quer me parecer que aos municípios que têm seus contratos com a Sabesp ou com as outras empresas estaduais, não resta outra alternativa senão a de retomar os serviços, inclusive ocupando as instalações, assegurando ao concessionário a indenização por bens não amortizados, na forma do que dispõe o artigo 36 da Lei de Concessões.

Não se trata, pois, de negociar com as concessionárias uma tarifa menor ou uma gestão compartilhada ou de considerar a conveniência da renovação contratual em virtude de bons serviços que estejam sendo prestados. Trata-se de uma questão de estrita legalidade a necessidade de se contratar mediante licitação, sob pena de se caracterizar grave procedimento ilegal, sujeito a responsabilidade civil e criminal. Igual como seria manter uma empresa de ônibus concessionária dos serviços públicos de transporte municipal, depois do contrato de concessão haver vencido. Por sua vez, qualquer empresa interessada em assumir a concessão dos serviços e sendo preterida pela renovação ilegal do contrato, poderia, em tese, fazer valer seus direito de concorrer numa licitação, por intermédio de mandado de segurança.

É certo que o concessionário, ao final do contrato, tem direito de receber uma indenização pelos investimentos não amortizados, conforme já se mencionou. Um alerta, porém. As dificuldades para fixação dos valores de indenização são enormes em razão do tempo transcorrido e dos subsídios cruzados. É razoável supor que sua fixação acabe sendo objeto de disputa judicial, cuja demora, cerca de 10 anos, não pode servir de desculpa para se prorrogar a concessão, sob pena de se dar guarida a uma situação irregular e ilegal.

Além disso, eventual prorrogação do prazo da concessão, se esta fosse possível, implicaria no ajuste vigorar por prazo indeterminado, o que é explicitamente vedado pelo § 3º, da Lei 8.666/93, a Lei de Licitações, subsidiária da Lei de Concessões.

Até porque, no caso do Estado de São Paulo, a Constituição estadual trata do assunto, indenização da Sabesp, de modo a não deixar qualquer dúvida a respeito do assunto. Veja o que consagra nas disposições finais:

Artigo 293 – Os Municípios atendidos pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo poderão criar e organizar seus serviços autônomos de água e esgoto.

Parágrafo único – A indenização devida à Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo será ressarcida após levantamento de auditoria conjunta entre a Secretaria da Fazenda do Estado e o Município, no prazo de até vinte e cinco anos.

Ora, se a indenização poderá ser paga em 25 anos e nem é a concessionária quem irá levantar os valores, mas a Secretaria da Fazenda e o município, não existe motivo de torná-la empecilho para a imediata retomada dos serviços e, conseqüentemente, a outorga de nova concessão mediante licitação, da qual poderá participar com êxito a própria Sabesp.

Cabe, finalmente, esclarecer que existe uma maneira de se manter a Sabesp ou outra empresa estadual similar, contratada para a prestação dos serviços nos municípios. É o caso da formação de consórcio entre o município e o estado ou mesmo mediante a assinatura de um convênio entre as duas pessoas de direito público, estabelecendo a gestão compartilhada dos serviços e a contratação da Sabesp, por ser essa integrante da Administração Estadual, sem necessidade de concorrência. Neste caso, ocorreria uma concessão imprópria, ou concessão convênio. Mas seria preciso que lei estadual e municipal autorizassem o ajuste, fixando as condições do mesmo.

Mas isso já seria assunto de um novo artigo.

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