A serviço do Poder

A Justiça trabalha muito, mas não chega ao cidadão

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8 de janeiro de 2006, 6h00

Maria Tereza Sadeck - por SpaccaSpacca" data-GUID="maria_tereza_sadeck.png">Quem mais entende da estrutura do Judiciário brasileiro não é advogado nem juiz. É uma cientista política, Maria Tereza Sadek, que há mais de dez anos dedica seu tempo e sua inteligência ao estudo da Justiça brasileira. É ela a autora da mais recente pesquisa sobre o Poder Judiciário no Brasil, encomendada pela AMB — Associação dos Magistrados Brasileiros. No levantamento, mostra o que o juiz pensa do órgão em que trabalha.

Em entrevista à equioe da Consultor Jurídico, Maria Tereza revela os pressupostos e bastidores das pesquisas. Ela conta que o Poder Judiciário não tem consciência da importância da informação e, por isso, obter dados da instituição é sempre uma tarefa árdua. Já foi pior, ela lembra. Na década de 1990, era quase impossível transpor a barreira burocrática para se entrevistar um juiz. Hoje, a experiência lhe proporcionou acesso mais fácil aos tribunais.

Maria Tereza trabalha com números e estatísticas, mas não deixa por menos o lado humano de suas descobertas. Uma das experiências mais emocionantes que viveu em suas andanças atrás de dados do Judiciário aconteceu no Amapá, a bordo do barco da Justiça Itinerante: “O barco sobe o rio Amazonas e visita cada comunidade ribeirinha: registra crianças, faz casamentos, emite carteira de identidade, dá aposentadoria. É a presença do Estado onde o Estado nunca chegou antes. Uma coisa fantástica”

Através dos números, Maria Tereza acabou traçando o perfil mais completo da Justiça brasileira. E se assusta com o resultado de seus achados: “É um paradoxo. Apesar da alta demanda de Justiça, que entope os tribunais de processos, a população em geral não tem acesso à Justiça”, conclui.

Maria Tereza Sadek é bacharel em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde também fez o mestrado em Ciência Política. Em 1984, concluiu o doutorado na mesma área pela Universidade de São Paulo. Também estudou na Universidade da Califórnia e de Londres. Atualmente, ministra o curso de Ciência Política na USP. Faz questão de destacar que, na sala de aula, jamais aborda as questões da Justiça, que são a matéria de suas pesquisas. Desde 1980, é pesquisadora sênior do Ideps — Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo. Sua próxima pesquisa, sobre os Juizados Especiais, deve ser divulgada em breve.

Participaram da entrevista na Consultor Jurídico os jornalistas Aline Pinheiro, Márcio Chaer, Maria Fernanda Erdelyi, Maurício Cardoso e Rodrigo Haidar.

ConJur — O Judiciário cumpre a sua função de fazer Justiça?

Maria Tereza Sadek — Não há serviço público com tamanha procura como o Judiciário. São milhões de ações. Ao mesmo tempo, a população diz que a Justiça não funciona, que só serve para os ricos. Como pode acontecer essa situação? É um paradoxo. As pessoas não acreditam no Judiciário, mas o movimento é surpreendente. Então, a qual dos lados eu dou crédito? Eu acredito nos dois lados. Para entender, é preciso fazer um diagnóstico correto de quem recorre à Justiça, porque recorre, qual a natureza do pedido. É aí que falta informação.

ConJur — Quem recorre mais ao Judiciário?

Maria Tereza Sadek — Pelos dados do Supremo, é o próprio Poder Público. O Judiciário virou um balcão de reclamação do Poder Público, que deve, sabe que deve, mas não paga. Isso é grave. Temos um órgão público, o Judiciário, para resolver os problemas de outro órgão público. E quem paga o Judiciário é a população. Pela pesquisa do STF, de 2005, o gasto do Judiciário por habitante é alto, a remuneração dos juízes é alta, o número de funcionários é alto. E por que a população diz que não funciona? Porque o índice de congestionamento é muito alto também. A minha hipótese é de que o serviço que o Judiciário presta é para o mal pagador, não é distribuição de justiça.

ConJur — Ou seja, a demanda de Justiça é alta, mas o cidadão não é atendido.

Maria Tereza Sadek — É um paradoxo. De um lado, a demanda é muito alta e deveriam existir mecanismos para desestimular essa demanda. De outro lado, há demanda de menos por parte da população. Existem largos setores da população que não entram no Judiciário e deveriam existir formas de estimular esses setores a buscar a Justiça para defender seus direitos.

ConJur — O formalismo afasta o Judiciário da população?

Maria Tereza Sadek — Quanto a isso, o Brasil fez uma mudança importantíssima quando criou os Juizados Especiais. O objetivo era quebrar o formalismo e oferecer uma Justiça mais rápida. Mas alguns tribunais trataram os juizados como Justiça de segunda classe. É baixíssimo o número de juízes exclusivos dos juizados. Em São Paulo, por exemplo, só tem juiz exclusivo na capital e em mais uma ou duas comarcas. No Amapá, a demanda no juizado é mais do que na Justiça comum. Aliás, tive uma das experiências mais marcantes da minha vida ao acompanhar uma unidade da Justiça itinerante no Amapá.


ConJur — Como foi isso?

Maria Tereza Sadek — É de tirar lágrimas dos olhos. Essa Justiça não está fazendo o que o Judiciário tem de fazer, mas não tem importância. Ela significa a presença do Poder Público em um local em que o Estado nunca chega. O barco sobe o rio Amazonas e vai visitando as comunidades ribeirinhas. Oferece serviços como emissão de carteira de identidade, carteira de trabalho, previdência, dentista, vacina, doa livro para a criança estudar, faz registro de nascimento. Só de falar, fico arrepiada de novo. No barco, vão vários profissionais: policial, oficial de Justiça, juíza, defensor público, promotor de Justiça, membros do Ministério do Trabalho, médico sanitarista e engenheiro. Uma das cenas mais marcantes foi um homem que não sabia quantos anos tinha, mas acreditava que tinha uns 70 anos. Ele conseguiu sua aposentadoria. Era uma pessoa que não existia, porque as pessoas só existem quando têm identidade, quando têm nome e data de nascimento. É o direito civil mais básico. Essa pessoa entrou na Previdência Social, virou gente. Foi uma coisa fantástica.

ConJur — Esse serviço pode ser aplicado em outras regiões do país?

Maria Tereza Sadek — A diversidade do Brasil é muito maior do que os burocratas costumam imaginar. Talvez cada lugar tenha de ter uma solução diferente. Estamos condicionados a associar o Judiciário a São Paulo. O estado, sozinho, representa quase a metade do movimento judicial do Brasil. Então, não dá para imaginar que a solução que serve para São Paulo sirva para o Amapá, para o Acre, Rondônia e Pará, por exemplo. No norte do país, talvez cinco juizados itinerantes e uma Justiça com gerenciamento adequado resolvessem o problema. O mesmo não serve para São Paulo. A solução em São Paulo não é aumentar o número de juízes. Isso pode ajudar um pouco, mas tem de haver outro tipo de mudança.

ConJur — Qual seria o caminho para essa mudança?

Maria Tereza Sadek — Não existe um único caminho. Acho que nós temos de buscar um monte de caminhos. Sou inteiramente a favor da reforma processual. O Tribunal de Justiça paulista, por exemplo, decidiu tentar fazer conciliação em segundo grau. Isto é um caminho. O juiz de primeiro grau também tem de ser valorizado. Com a possibilidade infinita de recursos, as decisões de primeira instância não servem para nada.

ConJur — Mas a qualidade dessas decisões é boa?

Maria Tereza Sadek — Não há como saber. Não existem dados para que a gente possa saber se as decisões foram reformadas ou não. Eu sei que aumenta a probabilidade de recurso quando o grau de reforma é alto. O número de recursos no Rio Grande do Sul é enorme porque há muita reforma.

ConJur — O que a senhora pensa das alternativas extrajudiciais para resolver conflitos, como a arbitragem?

Maria Tereza Sadek — Os meios extrajudiciais deveriam ser pensados com todos os cuidados necessários. É necessário pensar em qual é a natureza da causa, quem são as pessoas que estão buscando a conciliação. Se as duas partes são muitos desiguais entre si, tenho certo temor em relação a esses meios alternativos.

ConJur — Os maiores problemas do Judiciário estão dentro ou fora do Judiciário?

Maria Tereza Sadek — Não sei dizer isso com certeza. Existem problemas internos graves, como a falta de informatização no sentido próprio da palavra. Na maior parte das vezes, os computadores são usados como máquina de escrever. Não existe uma central de informação. Também acho que falta uma atuação mais propositiva das escolas de magistratura. Em muitos instantes, elas são meros trampolins para os postos mais altos e perdem o espírito de espaço de formação. Dos problemas externos, posso destacar a legislação, que permite um número excessivo de recursos, muitos apenas protelatórios. Existe também um problema de verba, mas essa é uma questão sobre a qual eu precisaria raciocinar mais. Todas as instituições públicas do país podem dizer que falta recurso, mas o principal é discutir quais são as prioridades. É mais importante ter um bom prédio ou funcionários com melhor formação? Os conciliadores dos juizados, que são importantes, não têm curso de formação específico. Quando os juizados são bons, a imagem da Justiça melhora. Tanto é que quem já foi aos juizados fala bem da Justiça. É raríssimo encontrar quem foi para a Justiça comum e fale bem desse jeito.

ConJur — Qual é a situação das escolas de magistratura hoje? Elas estão cumprindo seu papel?

Maria Tereza Sadek — Não estão. A escolas deveriam ter um papel fundamental de treinamento de juiz e deveriam ser encarregadas da promoção dos juízes. Não deveriam ter um caráter extra-curricular. O problema não é falta de escolas de magistratura, que existem em todos os estados, mas sim o que elas fazem.


ConJur — A imprensa dá importância para pesquisas como as que a senhora faz?

Maria Tereza Sadek — Mais ou menos. Essa última foi divulgada quando começou a ser discutido se a posição do STF em relação ao caso do deputado cassado José Dirceu estava certa ou não. Usaram a pesquisa para mostrar que os juizes avaliam negativamente o Supremo.

ConJur — Os juízes apóiam o sistema de escolha dos ministros do STF?

Maria Tereza Sadek — A grande maioria discorda totalmente do sistema. A forma mais apoiada, segundo a pesquisa, é a de escolha entre os membros da magistratura. Os juízes também defendem que os ministros do Supremo têm de ter um mandato. Acredito que a maioria tem pavor do risco de ministro fazer carreira política, ficar no tribunal perpetuamente, o que seria muito conservador.

ConJur — Como está a Justiça brasileira em relação aos outros países da América do Sul?

Maria Tereza Sadek — O nosso grau de independência e de autonomia é maior do que o de vários outros países. Eu duvido que no Brasil poderia acontecer aquilo que aconteceu recentemente na Argentina, de mudarem a composição do Supremo. No Equador, na Bolívia e na Venezuela, por exemplo, existe uma força política perniciosa em cima do Judiciário. Desse ponto de vista, a nossa Justiça é muito mais institucionalizada, mais autônoma e independente.

ConJur — A senhora acha que o Judiciário se intromete no Legislativo, por exemplo no caso de José Dirceu?

Maria Tereza Sadek — A nossa Constituição deu muita margem para atuação do Judiciário porque constitucionalizou tudo. Não há como dizer que uma questão não poderia estar no Judiciário. Na medida em que está tudo constitucionalizado, tudo vai parar na Justiça. Cabe aos ministros do Supremo se resguardar e dizer “não, nessa briga eu não entro”. Essa discussão é muito relevante e deveria ser levada a sério. Deve ser discutido até que ponto o Judiciário deve ser um eco para questões eminentemente políticas. Mas que o texto constitucional permite, ele permite.

ConJur — Isso é ruim para o Judiciário?

Maria Tereza Sadek — Pode gerar situações de crise. No caso do Dirceu, por exemplo, o Supremo ficou dividido, se expôs muito. Isso é ruim tanto para a imagem do Judiciário quanto para a vida institucional brasileira.

ConJur — Quais são as perspectivas para a Justiça brasileira?

Maria Tereza Sadek — Quando eu comparo lá no inicio dos anos 90 e hoje, vejo que agora há maior consciência da importância do tema. Esse debate que nós estamos tendo agora jamais teria acontecido no inicio dos anos 90. Era uma área vista como pouco importante. Em 1993, era muito difícil entrevistar um juiz. Nesse ponto, muita coisa mudou. Hoje, há uma abertura maior. Os próprios juízes falam que a Justiça não vai bem, que precisa mudar. Por isso, acho que tenho motivos para dizer “olha, acho que as coisas estão mudando”. O tema Justiça hoje mobiliza mais gente. Antigamente, só os operadores do Direito que se sentiam legítimos para falar sobre isso. Atualmente, tem muito mais gente preocupada com a Justiça e os próprios dirigentes dos tribunais percebem que alguma coisa deve ser feita.

ConJur — O que provocou essa mudança?

Maria Tereza Sadek — Houve a redemocratização do país. Além disso, a Justiça começou a estar muito presente. Antigamente, ouvir falar de juiz era raríssimo. Hoje, em todo momento, os jornais mostram decisões de juízes. O ensino também mudou. Existem pesquisadores e cursos sobre o sistema de Justiça. A aprovação da Reforma do Judiciário também ampliou o debate. O Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público estão tomando decisões importantíssimas. É importante que tenham interlocutores no governo, para aumentar o grau de transparência, e eu acho que isso está acontecendo. Talvez tenhamos que nos conscientizar mais do que nunca que vai ser árduo o caminho até nós termos uma boa Justiça e que, para este caminho, é necessária a colaboração de vários setores. Enfim, eu estou otimista. Não comparo a Justiça de hoje com a Justiça dos meus sonhos, mas quando comparo com aquela que conheci há 10 anos, só posso ficar otimista.

ConJur — Quem é o juiz brasileiro de hoje?

Maria Tereza Sadek — O juiz é uma pessoa do sexo masculino, de cor branca, formado em universidade pública. Tem idade média de 44 anos. É casado e tem filhos. Diferentemente da idéia que se faz hoje, a maioria não vem de classe média alta. Seus pais e mães têm escolaridade inferior à sua. Apenas 38% são filhos de pais com nível universitário e 40% dos juízes têm pais que terminaram apenas o ensino fundamental. Quando falamos das mães, esse número é ainda mais alto: 50% só têm formação até o ensino fundamental. Não é fantástico?


ConJur — O juiz de hoje é o mesmo de antigamente?

Maria Tereza Sadek — Não. Houve uma mudança. No início do século XX, juiz vinha de classe alta. O bacharel em Direito era a elite dirigente do país. A maior parte dos senadores e deputados era formada em Direito. Hoje, houve uma democratização no recrutamento para a magistratura.

ConJur — A que se deve essa mudança?

Maria Tereza Sadek — Em primeiro lugar, houve uma grande mobilidade social na sociedade brasileira. Em segundo lugar, aumentou muito o quadro de magistrados.

ConJur — A mentalidade dos juízes mudou?

Maria Tereza Sadek — Sim. No início do século XX, os juízes compunham um corpo muito homogêneo. Pelo menos aqueles que não pensavam igual não tinham coragem de explicitar a divergência. Hoje, a magistratura é muito heterogênea. Existem grupos com concepções distintas. Em termos práticos, basta ver a discussão sobre o nepotismo. Quem está na magistratura há mais tempo é tendencialmente mais favorável à prática do que os jovens.

ConJur — O perfil do juiz de hoje é o mesmo do promotor do Ministério Público e do delegado?

Maria Tereza Sadek — A pesquisa que eu fiz, no começo da década de 1990, mostrava que o perfil do integrante do Judiciário e do Ministério Público diferia um pouco, mas não muito. Em termos de valorização, o mais valorizado é o juiz e, depois, o promotor. O delegado fica muito atrás. Essa ordem vale até quando falamos da faculdade que cada um fez. Juízes e promotores se formaram em faculdades que são melhores avaliadas. Já o delegado se formou em instituições menos valorizadas.

ConJur — Quais são as dificuldades de fazer uma pesquisa do porte da que a senhora fez para a Associação dos Magistrados do Brasil?

Maria Tereza Sadek — Faltam estatísticas confiáveis e minimamente padronizadas sobre a Justiça. Falta também acesso ao Judiciário, para a população e para o pesquisador. O Judiciário brasileiro não tem a cultura da importância da informação. Então, cada vez que eu preciso de uma informação é dificílimo. O setor de comunicação dos tribunais, em geral, é muito fraco. Por causa dessa falta de estatísticas, fica difícil diagnosticar o problema. Uma das coisas que mais me impressiona é quando eu entro no site do Supremo Tribunal Federal e vou para o banco de dados. Lá, tem sessões onde está escrito “sem informação”. Como pode uma instituição da grandeza do Judiciário constar “sem informação”? O pior ainda é que não há uma instância para dizer: “Não, não pode ficar sem informação, eu quero essa informação”.

ConJur — Falta ao Judiciário a noção de serviço público?

Maria Tereza Sadek — Claro. Esse é o ponto fundamental. O Judiciário no Brasil é Poder e é serviço público. E ele tem agido mal como Poder e como serviço público.

ConJur — Quais são as conseqüências dessa falta de informação?

Maria Tereza Sadek — Como não existem dados, cada um pode falar o que quer que se torna verdade. Por exemplo, a tão falada insegurança jurídica no país não existe porque 86,5% dos juízes dizem que respeitam a lei. A extensa maioria age de acordo com as súmulas também. É muito difícil encontrar um juiz que decide contrariando as súmulas.

ConJur — E as causas da falta de informação?

Maria Tereza Sadek — Não posso apontar uma única causa, mas acredito que alguns fatores levaram a isso. Em primeiro lugar, durante um longo tempo, o Judiciário não foi visto como importante. Do ponto de vista do Poder, as outras instituições sempre foram muito mais importantes. Em segundo lugar, o Judiciário levou ao extremo o princípio de que cada unidade é uma unidade e não deve se comunicar com as outras. É o mal-efeito do federalismo, ou seja, cada tribunal é um tribunal, cada Justiça é uma Justiça. Não existe nenhum mecanismo de controle.

ConJur — E as corregedorias?

Maria Tereza Sadek — A corregedoria serve para controlar a primeira instância. Ela não controla a segunda instância.

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