Do texto à norma

O papel da doutrina no Estado Democrático de Direito

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6 de janeiro de 2006, 13h54

Em recente julgado do STJ (AgReg em ERESP 279.889-AL), o ministro Humberto Gomes de Barros assim se pronunciou:

Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico – uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja” (grifos meus).

Sobre tal manifestação, Lenio Luiz Streck teceu valiosos apontamentos (STREK, Lenio Luiz. Devemos nos importar, sim, com o que a doutrina dizhttp://www.conjur.com.br/static/text/40803)

O posicionamento do ministro suscita questionamentos sobre qual a finalidade da doutrina e sobre o fato dela ser dispensável ou não.

Ensina o ministro Eros Grau que a interpretação dá-se no momento da aplicação (=decisão), e com os dados do caso concreto (GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1.998. São Paulo: Malheiros Editores, 2.000, p. 316), pois “existe uma equação entre interpretação e aplicação: não estamos, aqui, diante de dois momentos distintos, porém frente a uma só operação”. (op. cit, p. 316).

A decisão judicial ocasiona um “salto” do texto à norma, esclarecido que “há produção do direito tanto na construção dos seus sentidos e princípios quanto na sua positivação, no ordenamento, em textos normativos. E há produção (reprodução) do direito a cada caso concreto” (op. cit , p. 318). Portanto, na esteira do magistério do ministro Eros Grau, “o juiz não é, tão-somente, (…) a boca que pronuncia as palavras da lei. (…) a ele incumbe, sempre que isso se imponha como indispensável à efetividade do direito, integrar o ordenamento jurídico, até o ponto, se necessário, de inová-lo primariamente. O processo de aplicação do direito mediante a tomada de decisões judiciais, todo ele – aliás – é um processo de perene recriação e mesmo de renovação (atualização) do direito.” (op. cit , p. 320).

Em coro com Paula A. Forgioni, o ministro Eros Grau sintetiza que a norma é antropófaga, elucidando que ela se nutre da realidade; “ela é antropófaga socialmente, economicamente e filosoficamente.” (FORGIONI, Paula A. Contratos de Distribuição. São Paulo: RT, 2.005, ps. 10 e 11 – prefácio).

Já se imaginou o Poder Judiciário como destinatário de normas que operariam na qualidade de portentosas e intocáveis equações, as quais seriam “criação oriunda ex abrupto da razão abstracta” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1.993, p. 281), “produto da razão que organiza o mundo, iluminando-o e iluminando-se a si mesma” (op. cit, p. 13), que veiculariam a “programação da verdade” (op.cit, p. 14), que durariam “até à consumação dos séculos” (op. cit, p. 253). Sendo elas suficientes per se, caberia ao Judiciário, neste enfoque, simplesmente digerir tais fórmulas, conforme a subsunção classicamente entendida.

Por outro lado, tem-se como conclusão atual a inexistência dessa razão que chega pronta, acabada, “de bandeja” ou embrulhada em pacotes.

Segundo Habermas, em consonância com sua concepção do agir comunicativo, não se poderia falar em razão criadora de normas antecedente à realidade da interação comunicativa:


“(…) la discusión pública, sin restricciones y sin coacciones, sobre la adecuación y deseabilidad de los principios y normas orientadores de la acción, a la luz de las condiciones socioculturales del progreso de los subsistemas de acción racional con respecto a fines: una comunicación de este tipo a todos los niveles de los procesos políticos, y de los otra vez repolitizados, de formación de la voluntad colectiva, es el único medio en el que es posible algo así como ‘racionalización’” (HABERMAS, Jürgen. Ciencia y técnica como ideología. Madrid: Tecnos, 1.986, p. 107).

Esta razão, pois, é produto da construção humana realizada no âmbito coletivo. Se se trata de construção, que não chega acabada ao Poder Judiciário, este último também dela participa. À luz de Habermas é possível compreender que o Poder Judiciário também consiste em importante espaço para debates de interesses sociais.

Considerando esta dinâmica imanente ao Direito, impende reconhecer que o debate necessário para politizar a sociedade e possibilitar a esfera pública (Habermas), e que é uma nota diferencial do Estado Democrático de Direito, não termina no fenômeno da positivação, ou seja, não se esgota na criação do texto oriundo do Poder Legislativo. O legislador pode muito, entretanto pode muito menos do que ele mesmo concebe.

Existem aberturas no Direito que são indomáveis, porque defluem do homem. Cite-se, à guisa de exemplo, a) as aberturas ocasionadas pelo acoplamento do fato na aplicação da norma (Viehweg); b) as aberturas decorrentes das vicissitudes entre o homem e o texto; c) as aberturas presentes no próprio processo de racionalização; d) as aberturas que estão nos valores humanos, os quais se encontram em constante transformação. Não se tratam de questões fechadas ao Poder Judiciário.

Vê-se, assim, que o momento de interpretação/aplicação não pode ficar à cargo da consciência ou da subjetividade do julgador. Em verdade, a sociedade não guarda o menor apreço – e até mesmo interesse – pela consciência do julgador. Ainda persiste a cultura de conceber-se a busca do provimento jurisdicional como uma “consulta ao guru”. Nesse modelo o julgador-guru se equivale a um Deus, cuja sabedoria é inalcançável, e o jurisdicionado compara-se a um súdito, um reles subordinado. Nada mais medieval.

A doutrina, no contexto atual, também possui a função de pensar o aludido “salto” do texto para a norma, servindo de espaço para a politização e implementação da esfera pública. A doutrina é um espaço de interseção das mentes pensantes do Direito e indispensável para a operação de sacar a norma do texto. Pensar nessa operação apenas submetida à consciência do julgador, sem abertura para o debate social, é negar o Estado Democrático de Direito.

Segundo o correto exercício da função jurisdicional, cabe ao julgador, diante de uma opinio juris merecedora de todo respeito, a exemplo dos ensinamentos do inigualável Barbosa Moreira, acolhê-la ou refutá-la deixando ostensivo o porquê. Esta última motivação será novamente apreciada, para a eventual construção de outras considerações por parte da doutrina. Este processo enseja a “perene recriação e mesmo de renovação (atualização) do direito”, para empregar as já citadas palavras do ministro Eros Grau.

Os EUA não prescindem dessa valorização da doutrina. A título de ilustração vale lembrar a evolução da jurisprudência norte-americana em torno da divisão territorial dos mercados nos contratos de distribuição, sob o enfoque do antitrust, mas especificamente sob a interpretação do artigo 1º do Sherman Act. No caso Sylvania [Continental T.V., Inc. v. GTE Sylvania – 433 U.S. 36 (1977)], a Suprema Corte reverteu a sua posição estabelecida no caso Schwinn [United States v. Arnold Schwinn e Co – 388 U.S. 365 (1.967)], nele reconhecendo as críticas do “mundo acadêmico” sobre o seu antigo posicionamento e acolhendo as linhas centrais de argumentação da Escola de Chicago acerca dos acordos verticais (Paula A. Contratos… p. 208-213). Percebe-se claramente a valorização da Suprema Corte das contribuições emanadas dos pólos de produção de conhecimento daquele país. Outro curioso exemplo está no julgamento White Motor Co. v. United States – 372 U.S. 253 (1.963), no qual a Suprema Corte, em apreciação de acordos supostamente prejudiciais à concorrência, dá mostras de suas limitações:


“(…) e esta Corte sabe muito pouco sobre o impacto atual sobre esta restrição (…) para chegar a uma conclusão superficial em torno dos documentos (…) Nós precisamos conhecer mais do que sabemos acerca do atual impacto desses arranjos sobre competição para decidir se eles possuem tal efeito pernicioso na competição (…)” (trecho do que mais importa de voto do Justice Douglas – Paula A. Contratos… p. 210, tradução livre do texto em inglês transcrito na obra citada).

Neste último caso a Suprema Corte admite possuir muito que aprender em torno daquela questão posta sob julgamento, sem contudo incorrer no non liquet, porquanto decidiu, na ausência de elementos mais robustos, pela liberdade de iniciativa. Certamente que o amadurecimento requerido por aquela Corte haveria de ser alcançado com a contribuição da doutrina elaborada pelas valorizadas universidades dos EUA.

Não socorre afirmar que a doutrina é respeitável sem lhe atribuir efetiva valorização. Reconhecer a pertinência de um apontamento específico da doutrina, mas o refutar sem a menor fundamentação, além de erigir um paradoxo, significa adotar a postura de um coronel, de um ditador ou coisa que o valha. Como não encarar o desprezo à doutrina enquanto um cale-se, na compreensão de que qualquer manifestação fora dos centros institucionalizados de poder do país consiste em atrevimento ou perda de tempo?

Note-se que o próprio advogado, quando leva à apreciação do Poder Judiciário considerações que estão entre o texto e a norma, ou em outra dicção, que partem do texto para a construção da norma, muitas vezes veicula observações que sequer foram objeto de análise pela jurisprudência. Nesse caso, o juízo de valor “não me importa o que diz a doutrina” encampa outro, no sentido de não importar o que diz o advogado. Surge, assim, a pergunta: as considerações jurídicas do advogado, mormente aquelas que geralmente estão sob o tópico “dos direitos” na petição inicial, representam trabalho inócuo?

O que os juristas dos últimos tempos têm demonstrado é que o Direito está em constante construção, não só em virtude da contingência humana que transforma o ambiente, mas igualmente pelo fato de que esta contribui para criar o aludido espaço entre a positivação (o texto) e a norma.

A argumentação de que a doutrina é imprestável, ou não merecedora de atenção, traz nas entrelinhas outra realidade: quem por ela se pauta pressupõe-se conhecedor de tudo, em outras palavras, receptáculo de todos os conhecimentos necessários para o ato de julgamento. Trata-se de arrogância bizantina, além de demonstração de ausência de postura epistemológica e, por conseguinte, desconhecimento das questões mais fundamentais sobre o Direito. Além do mais, revela crença na razão acessível somente pelas mentes iniciadas de poucos privilegiados, o que hodiernamente é impensável, como esclarece o ministro Eros Grau: “(…) já de há muito se tem por superada a concepção de que a razão humana seria capaz de formular preceitos normativos unívocos, nos quais antevistas, em sua integridade, todas as situações da realidade que devem regular.” (op. cit , p. 321).

A crença no axioma “ninguém nos dá lições” é tão equivocada quanto defender que Newton, para tecer suas conclusões, não contou com lições emanadas de várias fontes durante sua vida, inclusive de seus professores mais elementares. Não foram os grandes pensadores, um dia, também doutrinados? Esse processo de aprendizado encontra termo? No âmbito jurídico, esse desvio de pensamento foi esclarecido em admirável síntese do ministro Gilmar Mendes, para quem “no Estado de Direito, não há soberano. Ninguém pode exercer suas atribuições de forma ilimitada, nem mesmo o STF. Temos de criar instrumentos de crítica, auto-regulamentação e controle externo.” (NOGUEIRA, Rui. Visão do mundo. ministro Gilmar Mendes: “Ninguém é soberano” vide site http://conjur.estadao. com.br/static/text/39497,1).

Obviamente existem doutrinas e doutrinas. Existem aquelas que pecam pela ausência de pertinência e de relevância. O que é natural, pois corolário da livre manifestação do pensamento. O STJ freqüentemente afasta-se, sem burla ao ordenamento, do pesado fardo de analisar causas de pedir impertinentes. Todavia, nem por isso cria margem para deixar de pronunciar-se sobre teses relevantes, como se lê no REsp 689778/CE, da relatoria da ministra Eliana Calmon:

“(…)

2. Há que se identificar, entretanto, as teses jurídicas levantadas pelas partes potencialmente influentes, cuja apreciação, em tese, poderia modificar o resultado do julgamento da causa.

(…)

5. Omissões sobre teses relevantes para a solução do litígio suscitadas oportunamente e que não foram examinadas nos embargos declaratórios.” (STJ, REsp. 689778/CE, Rel. ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 10-10-2005, p. 321)

Desprezar a boa doutrina importa desconhecer por completo as conclusões mais recentes em torno do Direito e a excelência dos pólos produtores de conhecimento do nosso país, como é o caso dos respeitáveis estudos originados dos mestrados e doutorados de nossas Faculdades. Reputo que o crivo exigido numa banca avaliadora de mestrado não perde para aquele observado num colegiado de tribunal.

O discurso de repúdio à doutrina não é novo. Entretanto, na atualidade retorna com um acento de “grito dos desesperados”, representando uma reação amedrontada acerca do desenvolvimento do Direito. Ocorre que, desmoronado o mito do jurista onisciente, muitos dos que estão sendo destronados dos seus assentos de soberba preferem negar, via tais atos de desespero, que o Direito pode ser maior do que eles mesmos.

Bibliografia

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1.993;

– FORGIONI, Paula A. Contratos de Distribuição. São Paulo: RT, 2.005;

– GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1.998. São Paulo: Malheiros Editores, 2.000;

– HABERMAS, Jürgen. Ciencia y técnica como ideología. Madrid: Tecnos, 1.986;

– NOGUEIRA, Rui. Visão do mundo. ministro Gilmar Mendes: “Ninguém é soberano” vide site http://conjur.estadao. com.br/static/text/39497;

– STREK, Lenio Luiz. Devemos nos importar, sim, com o que a doutrina diz – http://www.conjur.com.br/static/text/40803.

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