Crise de paradigmas

Devemos nos importar, sim, com o que a doutrina diz

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5 de janeiro de 2006, 13h02

Desde antes da Constituição de 1988, venho escrevendo sobre a crise de paradigmas que assola o Direito. Passados quase dezoito anos, a crise está longe de ser debelada. Com efeito, a crise possui uma dupla face: de um lado, uma crise de modelo de Direito (preparado para o enfrentamento de conflitos interindividuais, o Direito não tem condições de enfrentar/atender as demandas de uma sociedade repleta de conflitos supraindividuais); de outro, a crise dos paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência, o que significa dizer, sem medo de errar, que ainda estamos reféns do esquema sujeito-objeto.

Fundamentalmente, essa crise de dupla face, que já examinei amiúde nos meus Hermenêutica Jurídica e(m) Crise (6ª edição, Livraria do Advogado) e Jurisdição Constitucional e Hermenêutica (3ª tiragem, Forense), sustenta o modo exegético-positivista de fazer e interpretar o Direito. Explicando melhor: se, de um lado, parte considerável do Direito ainda sustenta posturas objetivistas (em que a objetividade do texto sobrepõe-se ao intérprete, ou seja, a lei “vale tudo”); de outro, há um conjunto de posições doutrinária-jurisprudenciais assentados no subjetivismo, segundo o qual o intérprete (sujeito) sobrepõe-se ao texto, ou seja, “a lei é só a ponta do iceberg; o que vale são os valores ‘escondidos’ debaixo do iceberg” (sic).

Com sustentação em Kelsen e Hart (para falar apenas destes), passando pelos realistas norte-americanos e escandinavos, construiu-se, com o passar dos anos, uma resistência ao novo paradigma de Direito e de Estado que exsurgiu com o segundo pós-guerra. O novo constitucionalismo — que exige uma nova teoria das fontes, uma nova teoria da norma e um novo modo de compreender o Direito — ainda não aconteceu. Veja-se, nesse sentido, que

(a) continuamos a pensar que a lei é a única fonte, bastando, v.g., ver o que fizemos com o mandado de injunção, “exigindo” uma “lei regulamentadora”, ignorando que a própria Constituição é a nova fonte;

(b) continuamos a acreditar no mundo ficcional das regras, ignorando que a (velha) teoria da norma necessita recepcionar a era dos princípios, que, fundamentalmente, introduzem no Direito a realidade escamoteada historicamente pelo mundo das regras do positivismo;

(c) não nos damos conta de que o esquema sujeito-objeto, sustentador do modo dedutivo-subsuntivo de interpretar, sucumbiu em face do giro lingüístico-ontológico (em especial, a hermenêutica, sem olvidar a importância das teorias discursivas);

(d) porque atrelados ao esquema sujeito-objeto, não conseguimos compreender a relação entre texto e norma, isto é, do objetivismo simplificador partimos em direção aos diversos axiologismos. Como conseqüência, estabeleceu-se um “ceticismo hermenêutico”, cujo resultado é a arbitrariedade interpretativa.

Este é o estado da arte do modus interpretativo que ainda domina o imaginário jurídico prevalente em parcela considerável da doutrina e da jurisprudência praticada em terrae brasilis. Trata-se, fundamentalmente, de um problema paradigmático, bem representado por aquilo que venho denominando de “baixa constitucionalidade” e “crise de dupla face”, caudatárias de uma espécie de acoplamento do “Trilema de Münschausen” ao mundo jurídico brasileiro. Talvez por isto não cause estranheza à comunidade jurídica recentíssima decisão de um juiz federal que, em resposta aos embargos de declaração em que o advogado questionava o fato de a sentença não ter se manifestado sobre a “obrigação de controle difuso da constitucionalidade” levantada como questão prejudicial, rejeitou os embargos, sob o argumento de que “ao cumprir seu dever constitucional de fundamentar as decisões, o juiz não é obrigado a analisar ponto por ponto todas as alegações deduzidas” (grifei). O problema é que o ponto principal questionado pelo advogado era, exatamente, a inconstitucionalidade de um ato normativo!


Bem recentemente, o país assistiu perplexo a tentativa de se convocar uma Assembléia Constituinte, que colocaria o Direito constitucional brasileiro abaixo do que provavelmente se estuda no Burundi. E no parlamento chegou a ser lavrado parecer na requentada PEC 157, na qual se decretava que “o poder constituinte é uma ficção” (sic). Na verdade, a “baixa constitucionalidade” cria dimensões que transcendem o “mundo jurídico”. Dia destes – lá pelo mês de setembro – o humorista e apresentador de TV, Jô Soares, fazia blague da Constituição do Brasil, comparando-a em tamanho com a dos Estados Unidos. Uma jornalista presente explicou a discrepância nas dimensões das respectivas Cartas: a dos Estados Unidos era sintética, porque fora fruto do sistema germânico (sic); a do Brasil era “grande”, porque inspirada no sistema romano… (sic)! E os estudantes de Direito presentes aplaudiram a “explicação”.

A dimensão da crise — que, insisto, é paradigmática — faz com que não cause maiores perplexidades (na comunidade jurídica) uma denúncia criminal por porte ilegal de arma feita contra um cidadão que tentou suicídio em sua própria casa, desgostoso que estava com o iminente abandono de sua esposa amada (e o juiz o condenou a 1 ano e 2 meses de prisão). Em São Paulo, enquanto uma mulher respondia presa a processo criminal por furtar sabonetes (ou algo desse tipo), Maluf e seu filho foram liberados, não havendo, ao que se saiba, nenhum clamor “jurídico-popular”, nem no primeiro e nem no segundo casos. Do mesmo modo, parece que perdemos nossa capacidade de indignação quando nos quedamos silentes com o drama da anciã com câncer terminal, recolhida à prisão em São Paulo, e que sequer recebe o benefício da prisão domiciliar.

A crise de paradigmas de dupla face esconde facilmente a “realidade” representada pelas idiossincrasias constantes na legislação penal brasileira, na qual “adulterar chassi de automóvel” tem pena maior que “sonegação de tributos”, e “furto de botijão de gás” realizado por duas pessoas tem pena (bem) maior do que “fazer caixa dois”. E, se alguém sonega tributos, tem a seu favor um longo Refis; já na hipótese do ladrão de botijões, mesmo que ele devolva o material subtraído, não terá a seu favor os benefícios concedidos aos sonegadores.

A crise paradigmática conseguiu esconder muito bem (não esqueçamos que o discurso ideológico tem eficácia na medida em que não é percebido) o fato de que, com o advento da Lei 10.259/01, os crimes de abuso de autoridade, maus tratos em crianças, sonegação de tributos, fraude em licitações, foram transformados em “soft crimes”, isto é, crimes de “menor potencial ofensivo” (sic).

Finalmente, talvez por tudo isto não cause maiores perplexidades no sistema – a não ser pela internet – a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (AgReg em ERESP n° 279.889-AL), na qual o Ministro Humberto Gomes de Barros assim se pronunciou:

“Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são Ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico — uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja” (grifei).


Para aqueles que pensam que o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é, o voto de Sua Excelência é um prato cheio. Só que não é bem assim, ou, melhor dizendo, não pode ser assim (ou, melhor, ainda bem que não pode ser assim!). Com efeito, o Direito é algo bem mais complexo do que o produto da consciência-de-si-do-pensamento-pensante, que caracteriza a (ultrapassada) filosofia da consciência, como se o sujeito assujeitasse o objeto. Na verdade, o ato interpretativo não é produto nem da objetividade plenipotenciária do texto e tampouco de uma atitude solipsista do intérprete: o paradigma do Estado Democrático de Direito está assentado na intersubjetividade.

Repetindo: o Direito não é aquilo que o intérprete quer que ele seja. Portanto, o Direito não é aquilo que o Ministro Humberto Barros diz que é (lembremos, aqui, a assertiva de Herbert Hart, em seu Concept of Law, acerca das regras do jogo de criquet, para usar, aqui, um autor positivista contra o próprio decisionismo positivista propagandeado pelo Ministro no voto em questão). A doutrina deve doutrinar, sim. Esse é o seu papel. Aliás, não fosse assim, o que faríamos com as quase mil faculdades de Direito, os milhares de professores e os milhares de livros produzidos anualmente? E mais: não fosse assim, o que faríamos com o parlamento, que aprova as leis? Se os juízes (do STJ) podem — como sustenta o Ministro Barros — “dizer o que querem” sobre o sentido das leis, para que necessitamos de leis? Para que a intermediação da lei?

Ora, é preciso ter presente que a afirmação do caráter hermenêutico do Direito e a centralidade que assume a jurisdição nesta quadra da história, na medida em que o legislativo (a lei) não pode antever todas as hipóteses de aplicação, não significa uma queda na irracionalidade e nem uma delegação em favor de decisionismos.

Talvez o grande problema esteja no fato de que a crise de paradigmas de dupla face continua a sustentar — e possibilitar que se multipliquem — os discursos positivistas, que apostam na discricionariedade do intérprete (veja-se, por todos, o decisionismo kelseniano e a contundente crítica feita por Dworkin a Hart). Não é difícil encontrar, mesmo na doutrina, autores sustentando ser facultado “ao intérprete estimular as interpretações possíveis, de acordo com sua vontade e o seu conhecimento” (sic) e que “dentre as diversas opções colocadas ao seu dispor, o exegeta escolhe aquela que lhe afigurar com a mais satisfatória“ (sic), podendo valer-se, para tanto, “dos recursos que estiverem ao seu dispor” (sic). Ou, ainda, que “interpretar a lei é retirar da norma tudo o que ela contém” (sic), como se o processo hermenêutico fosse uma “lipoaspiração epistemológica”.

Fundamentalmente, é preciso compreender que esses modelos subsuntivos e as tentativas de repristinar axiologismos e/ou realismos jurídicos (tardios) não têm qualquer sustentação na filosofia, invadida que foi pela linguagem no século XX (linguistic turn, para dizer o menos!). Há limites no processo interpretativo. Na verdade, há muitos limites. E isto é assim. Afinal, no nosso cotidiano também não podemos sair por ai dizendo qualquer coisa sobre qualquer coisa. As coisas têm nome; não que esse nome provenha de uma essência; mas também não advém do cogito solitário do intérprete. Tudo isto o paradigma lingüístico-filosófico que revolucionou o século XX já nos deixou muito claro. A filosofia é bem mais complicada do que o Fantástico, da Rede Globo, tenta mostrar, quando, por exemplo, quer ensinar Platão no interior de uma caverna (sic), em Tubarão, ou Heráclito na boléia de um caminhão, em Uberlândia. Tudo em drops televisivos de nove minutos!

Numa palavra: o processo hermenêutico não autoriza atribuições arbitrárias ou segundo a vontade e o conhecimento do intérprete. Aliás, este é um ponto fundamental da luta pela superação do postivismo-normativista: o constitucionalismo – compreendido paradigmaticamente – coloca freios à discricionariedade própria do positivismo-normativista. Mais do que isto, trata-se de uma questão de democracia. Como bem alerta Marcelo Cattoni, “o Direito sob o Estado democrático de Direito não é indiferente às razões pelas quais um juiz ou um tribunal toma suas decisões. O Direito, sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, cobra reflexão acerca dos paradigmas que informam e conformam a própria jurisdição constitucional” (Jurisdição e Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 51).

Portanto, discordando democraticamente do senhor ministro, quero dizer que devemos nos importar, sim, (e muito) com o que a doutrina diz. Afinal, está no próprio nome: assim como a Constituição constitui, a doutrina doutrina.

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