Direitos em choque

Justiça do Rio julga fronteiras da liberdade de expressão

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25 de fevereiro de 2006, 7h00

O maior desafio da Justiça é ser justa sem cair em maniqueísmo. A tarefa de interpretar a lei é grande e se torna ainda mais árdua quando a discussão coloca em choque dois direitos constitucionais: a liberdade de expressão e a dignidade das pessoas.

A Justiça fluminense terá de avaliar em breve qual direito deve prevalecer. No final de janeiro, o Judiciário recebeu uma denúncia criminal contra os editores que republicaram uma obra do final do século XIX, o livro Protocolos dos Sábios de Sião. A obra apócrifa relata um suposto plano dos judeus para dominar o mundo. Para o Ministério Público do Rio de Janeiro, o livro é anti-semita e seus editores, Adalmir Caparros Faga e Almir Caparros Faga, donos da Editora Centauro, devem responder pelo crime de racismo. Afinal, para o MP, a obra agride a dignidade dos judeus, direito garantido pela Constituição. Contudo, a mesma Constituição também garante o direito à liberdade de expressão.

A polêmica que hoje está nas mãos da juíza Mônica Tolledo de Oliveira, da 28ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, já foi discutida de instância em instância até chegar ao Supremo Tribunal Federal, em meados de 2003. Na ocasião, a discussão sobre a colisão entre o direito de se expressar e a preservação da dignidade foi considerada pelo ministro Marco Aurélio como uma das mais importantes, “se não a mais importante”, apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal desde que ele entrou na Corte, em 1990.

Na época, o caso envolvia o gaúcho Siegfried Ellwanger Castan, dono da Editora Revisão e autor de livros onde ele reinterpreta o holocausto e defende que o grande causador da tragédia foi o povo judeu. Castan foi condenado por racismo e acusado por entidades israelitas e defensores dos direitos humanos de desafiar a Justiça e continuar a vender seus polêmicos livros.

Dessa vez, a questão é um pouco mais complicada. Não se trata de censurar obras inéditas, mas de tentar coibir a divulgação de livros históricos. A denúncia do MP do Rio de Janeiro também incluiu o livro de Adolf Hitler, Minha Luta, onde ele desenhou sua teoria da superioridade da raça ariana. A juíza Mônica Tolledo de Oliveira recusou a denúncia sobre o livro de Hitler por entender que, quando a obra tem autor conhecido, é este o responsável criminal pelos escritos.

A responsabilidade criminal dos editores é outro ponto polêmico da denúncia. Para um advogado especialista em direito de imprensa ouvido pela Consultor Jurídico, a responsabilidade pelo livro deve obedecer à regra estabelecida pela Lei de Imprensa, ou seja, tem de ser sucessiva. Se o autor não pode responder, quem responde é o responsável pela publicação. Outro advogado, também ouvido pela ConJur, entende que a responsabilidade criminal não deve se estender ao editor quando se trata de livros.

No entanto, ambos concordam num ponto: quando se trata de obras históricas, muito mais do que a liberdade de expressão, está em jogo também o direito da população de conhecer a história da humanidade. E não há como negar que o nazismo e, mais abrangentemente, o racismo, pertencem à história humana.

Na denúncia do MP, o promotor Pedro Rubim Borges Fortes defende que o livro Protocolos dos Sábios de Sião “pode ser definido como um panfleto discriminatório contra as pessoas de origem judaica”. Além disso, Fortes afirma que a obra incita a discriminação e o preconceito contra os judeus.

Em sua defesa, os editores Adalmir e Almir Faga

recorrem à garantia constitucional da liberdade de expressão. Além disso, lembram que, se quem tem o que dizer tem direito a falar, quem quiser também tem direito de ouvir. Em nota enviada à Consultor Jurídico, os irmãos definem o embate jurídico travado. “Se é certo que a Constituição repulsa o racismo e a discriminação, não é menos certo que ela assegura igualmente ao cidadão o direito à livre expressão de pensamento”. Está aí a batata quente lançada na mão do Judiciário.

Limites da liberdade

Em 2003, depois de nove meses de julgamento, o STF entendeu que, no caso do editor Sigfried Castan (que também publicou o Protocolos dos Sábios de Sião), havia sim o crime de racismo. Por sete votos a três, o plenário do Supremo manteve a condenação de quase dois anos de reclusão imposta pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ao editor.

Um dos votos vencidos, o ministro Carlos Ayres Britto defendeu o direito à liberdade de expressão. Para o ministro, não há como coibir a liberdade de expressão para evitar um eventual abuso. “O abuso e o agravo são questões que somente a posteriori se colocam.” Além disso, enfatizou: defender uma ideologia não é crime.

Na Áustria, o historiador britânico David Irving foi condenado a três anos de prisão por negar o holocausto. Vale lembrar, que há dispositivo legal naquele pois que considera crime negar o holocausto. Por essas bandas de cá, a discussão promete ser, mais uma vez, acalorada, principalmente por se tratar de uma obra secular.

A questão ainda está na primeira instância, sem pedido de liminar, uma vez que os exemplares do Protocolos dos Sábios de Sião já foram apreendidos a pedido do Ministério Público de São Paulo. Mas, se chegar ao Supremo (e deve chegar), o debate deve ser extenso, assim como aconteceu em 2003.

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