Complexo de vira-lata

É imperioso resgatar a nobreza da advocacia privada

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20 de fevereiro de 2006, 16h59

“Nosso dilema é saber que sociedade queremos. Existem forças que puxam por um ideário normativo igualitário, democrático, moderno, mas, ao mesmo tempo, existem pressões para uma hierarquia brutal.” (Roberto Da Matta”

Estamos formando, em nossas universidades, bacharéis em Direito com complexo de vira-lata de um lado e, de outro, a turma do “você sabe com quem está falando”. Explicaremos. Uma reflexão sobre o que vem se passando nas salas de aulas de nossas universidades pode ser feita sobre várias perspectivas. Preferimos, neste breve espaço, recortar uma singela temática, qual seja, a formação do conhecimento de nossos bacharelandos em Direito para o mercado de trabalho.

É patente e salta aos olhos de qualquer professor, por menos atento que seja, que os nossos alunos, em sua grande maioria, com singelas exceções, já no primeiro período da universidade, manifestam o interesse de seguirem carreira jurídica pública. Em particular, desejam ser juízes, promotores, advogados públicos ou serventuários da Justiça. Sem dúvida alguma, é uma visão deformada do estudo jurídico. porque precipitada. Não se alegue que, por trás destas açodadas opções, está posto exclusivamente o fator econômico. A questão é mais complexa.

Mas, infelizmente, tal constatação não para por aí. O pior é que tanto a universidade quanto os professores alimentam este incontrolável desejo dos bacharelandos, de maneira que o conhecimento jurídico com o objetivo de formar um operador do Direito culto, denso, socialmente comprometido e com uma visão ampla de mundo e do Direito escorre como água de chuva. E por que isto ocorre? Porque os estudantes de Direito, em sua grande maioria, insista-se, não se vêem como bacharéis e futuros advogados. Têm, inclusive, pânico de isto ocorrer.

Todos querem a “segurança” das carreiras públicas. E mais, muitos deles, envergonham-se de afirmar que serão advogados. Têm o chamado complexo de vira-lata tão bem nomeado pelo escritor Nelson Rodrigues citado por Fernando Calazans. Para Nelson Rodrigues, o brasileiro adora imitar e copiar. Tal desejo pode ser percebido até no futebol, onde mesmo sendo pentacampeões do mundo, só nos reconhecemos como tais quando somos legitimados por alguém de fora do país1.

E quais as conseqüências do complexo de vira-lata na formação de nossos estudantes em Direito? Os bacharéis em Direito que logram êxitos nos concursos públicos se “livram” do complexo de vira-lata, mas passam a padecer de outro complexo, corolário do primeiro, o complexo do “Você sabe com quem está falando”, tão bem cunhado pelo antropólogo Roberto Da Matta. Ou seja, jovens operadores do Direito, juízes, promotores, etc., que se transformam em detentores de um poder, muitas das vezes ainda exercido em pleno limiar do século XXI, de forma arrogante e até mesmo autoritária.

Isto ocorre porque os juízes e promotores que hoje se titularizam são frutos de uma universidade que os fortificaram naquele complexo original de vira-lata que foi “superado” pela aprovação no concurso público. E os que não logram êxitos nos concursos públicos? Estes são uns fracassados que se mantêm com a carapuça do complexo de vira-lata e, padecendo deste complexo, inflam cada vez mais o complexo de superioridade dos que foram aprovados nos concursos.

A verdade mais singela é que até mesmo alguns dos professores de Direito na atualidade, quando não são titulares de cargos públicos, se sentem também tocados pelo complexo de vira-lata. É a ditadura do cargo público!

Não há felicidade para a maioria dos estudantes de Direito fora das carreiras jurídicas públicas. É o que se vê nas universidades atuais, infelizmente. Lado outro, os concursos públicos para as carreiras jurídicas tornaram-se almanaques legitimadores do saber jurídico, assim como, para alguns, ser campeão do mundo é condição necessária para se avaliar o êxito de uma carreira profissional de um jogador de futebol.

Neste sentido, os apologistas dos almanaques entendem ser o jogador Viola (campeão mundial pelo Brasil em 1994) superior a Zico que não foi campeão mundial pelo Brasil. Resumindo: estamos formando profissionais do Direito que não sabem julgar o seu valor e precisam necessariamente ter o seu saber legitimado pela chancela do Estado. Muitos nem sequer advogam, até mesmo por vergonha de serem cunhados de vira-lata.

Viver na condição de servidor do Estado é uma panacéia que liberta o bacharel em Direito do pavor que ele sente de ter que se apoiar sobre si próprio em todas as circunstâncias de sua existência, caso mantenha-se na advocacia privada. Assim como o homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda2 só se reconhece em uma relação afetiva com o outro, o operador do Direito estatal só se realiza nos braços do Estado.

Nada de mal nisto, se tal desejo fosse a verdade de todos os bacharéis que buscam as carreiras públicas. Entretanto, o que vemos são jovens alunos de Direito que são tragados literalmente pelo desejo da maioria, pelo medo da incerteza e do complexo de vira-lata, e acabam por não imaginar outra perspectiva de vida. Por isso, é imperioso o resgate da nobreza da advocacia privada, a começar pela mudança da visão jurídica implementada em nossas universidades.

Lembremos, também, que esta questão do emprego público como modus vivendi no Brasil vem de longe. Veio da burocracia portuguesa que nos inventou formais, estatizantes, oficializados e legalistas. Como ensina Roberto Da Matta:

“Não é à toa que todo mundo aspira a um ‘emprego público’, sinônimo, muitas vezes, de estupenda remuneração e de nenhum trabalho. Também não é ao acaso que usamos a expressão ‘legal’ para tudo. Entre nós, até fazer amor pode ser ‘legal’!”3

E tem mais. O complexo de vira-lata se aprofunda se levarmos em conta que, ao valorizarmos em demasia as carreiras jurídicas públicas, estamos fortalecendo o Estado e o poder, em detrimento do indivíduo, este sim, defendido por advogados que saem das universidades revestidos do complexo de vira-lata, com raras exceções, diga-se de passagem. Ao formarmos bacharéis, futuros advogados, que se sentem acanhados em afirmar que exercerão a advocacia privada, estamos fortalecendo ainda mais uma hierarquia social ditada pelo estatal e pelo vertical, e não por relações sociais de índole igualitária.

É por isto que ainda hoje existe o “sabe com quem está falando” nos meios jurídicos brasileiro e fora dele, porque formamos operadores do Direito complexados e amantes do poder hierárquico que ainda predomina na relação entre o Estado e o cidadão. Só um operador do Direito admirador da igualdade entre os membros da Justiça (juiz, promotor e advogado) poderá fortalecer e dar eficácia ao que propõe o artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”.

Se continuarmos admitindo que o saber jurídico universitário seja fortalecedor destes complexos ora comentados e, por conseguinte, mantenedor de uma visão de sociedade, onde tudo está definido em termos de uma hierarquia estatal (o Estado como agente legitimador), como é que conseguiremos ampliar o pacto democrático? Ser ou não ser igualitário (ou aristocrata no Estado): essa é a questão. Precisamos superar a idéia ainda presente em nossa sociedade da hierarquia como valor social e ideológico.

Não podemos conviver com uma Constituição que apregoa princípios igualitários. Mas, ao mesmo tempo, formarmos operadores do Direito desejosos de práticas sociais hierárquicas. Este dilema está vivo entre nós, como sempre lembra Roberto Da Matta, e é preciso superá-lo para podermos avançar.

Notas de rodapé

1 – Fernando Calazans. Estranho defeito. Rio de Janeiro, O Globo, 25/12/2005, p. 31

2 – Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2004, p. p. 148/149.

3 – Torre de Babel. Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 86.

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