Feto anencefálico

Aborto de anencéfalo: Ministério da Justiça dá parecer a favor

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14 de fevereiro de 2006, 17h53

O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão de assessoramento do Ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, aprovou por unanimidade, na reunião da segunda-feira (13/2), parecer favorável ao Projeto de Lei 4.403, da deputada Jandira Feghali que defende a legalização do aborto no caso de fetos anencefálicos.

Agora o parecer será encaminhado aos congressistas. O projeto de Lei está na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. No Supremo Tribunal Federal tramita uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental relativa ao tema

O PL pretende acrescentar mais um inciso ao artigo 128 do Código Penal que diz que não é passível de punição o médico que pratica aborto em caso de risco de morte da gestante ou em caso de estupro. A idéia é de que não seja considerado crime o aborto de feto anencefálico.

De acordo com o parecer os dois casos em que o Código penal brasileiro autoriza o aborto “há plena viabilidade do feto” que é abortado por se contrapor com outros valores. No caso do estupro, é levado em consideração o valor ético e humanitário em que “o direito penal solidariza-se com a mulher vítima de estupro e não exige dela que carregue em seu ventre o resultado de tão grande violência física e psíquica”. No caso de gravidez de extremo risco para a vida da mãe “o direito penal também se coloca ao lado da mulher e não exige dela que sacrifique sua vida em favor da vida que traz em potencial dentro de si, ”explica o parecer.

O Conselho então se manifesta que seria incompreensível a grande discussão que se instalou diante do tema da anencefalia, já que também estariam presentes os direitos humanitários que preservam a saúde psíquica e física da gestante, já que o feto não tem a possibilidade de viver fora do útero.

Cabe ao CNPCP emitir parecer sobre os projetos de lei relacionados à área penal encaminhados ao gabinete do ministro da Justiça.

O tema de legalidade do aborto de feto anencefálico passou a ganhar espaço na mídia a partir de meados de 2004, quando o Ministro Marco Aurélio deferiu liminar na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental ajuizada no Supremo Tribunal Federal pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. Mas a decisão monocrática foi, depois, cassada por maioria de votos em acatamento à proposta do ministro Eros Grau.

Leia a íntegra do parecer:

PROTOCOLO 08001.002110/2005-21

ESPÉCIE: PROJETO DE LEI

PROCEDÊNCIA: SUPAR – ART POLÍTICA

ASSUNTO: PARECER TÉCNICO

PARECER

O projeto de lei nº 4403, de autoria da Deputada JANDIRA FEGHALI, acrescenta ao artigo 128 do Código Penal o inciso III, que prevê, ao lado das duas pré-existentes, uma nova hipótese de exclusão de antijuridicidade do crime de aborto. O inciso proposto tem a seguinte redação:

Art. 128- Não se pune o aborto praticado por médico

III- Houver evidência clínica embasada por técnica de diagnóstico complementar de que o nascituro apresenta grave e incurável anomalia que implique na impossibilidade de vida extra uterina.”

Foi apresentada emenda, de autoria do Deputado Rafael Guerra, restringindo a autorização legal à hipótese de anencefalia. A redação do inciso vem agora nos seguintes termos:

Art. 128- Não se pune o aborto praticado por médico

“III- quando há evidência clínica embasada em técnica de diagnóstico complementar de que o nascituro apresenta anencefalia e o aborto é precedido de consentimento da gestante.”

O tema aqui discutido passou a ganhar espaço na mídia a partir de meados de 2004, quando o Ministro Marco Aurélio deferiu liminar na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental ajuizada perante o STF pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), sendo que a decisão monocrática foi, depois, cassada por maioria de votos em acatamento à proposta do ministro Eros Grau.

Objeto da argüição, ainda “sub judice”, é o conjunto de normas do Código Penal que estabelecem a punição do aborto. De acordo com a autora, uma interpretação conforme a Constituição do disposto nos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, inspirada sobretudo pelo princípio da dignidade da pessoa humana e pelo respeito aos direitos fundamentais à liberdade e à saúde da gestante (CF, arts. 1º, IV, 5º, II, 6º, ‘caput’ e 196), excluiria a possibilidade de ser considerado crime o aborto do feto anencefálico.

No bojo da ação em andamento, questões de natureza diversa são debatidas, de forma e de fundo. Ou seja, as controvérsias envolvem tanto a pertinência da via processual eleita como a controvertida análise do mérito. O voto proferido pela Ministra Ellen Gracie trouxe novo ângulo de análise ao entender que não caberia ao Poder Judiciário criar nova causa de exclusão de ilicitude, por ser esta atividade típica do legislativo. Abordou assim a questão:


“3. O que vem ao crivo do Tribunal nesta ação? Uma norma velha de 65 anos que, ao momento da promulgação da Constituição Federal de 1988, foi recepcionada, como todo o Código Penal. Essa disposição de lei comina com pena privativa de liberdade quem promova o abortamento. Criadas foram duas exceções em que tal prática não será penalizada. O que a ação pretende é fazer inserir, nesse dispositivo, por criação jurisprudencial, uma terceira causa exculpante. Ou seja, que, além do abortamento sentimental (gravidez fruto de violência) e do abortamento terapêutico (risco para a vida da mãe), também seja isento de penalidade o abortamento de feto diagnosticado como anencefálico. É, sem dúvida, atuação legislativa que se pretende do Tribunal.

(…)

Entendo, Senhor Presidente, que a sociedade brasileira precisa encarar com seriedade e consciência um problema de saúde pública que atinge principalmente as mulheres das classes menos favorecidas. E deve fazê-lo por meio de seus legítimos representantes perante o Congresso Nacional, não, ao contrário, por via oblíqua e em foro impróprio, mediante mecanismos artificiosos que, inobstante o brilho com que deduzidos os argumentos na inicial e na sustentação oral pelo eminente Professor Luiz Roberto Barroso, acarretaria uma ruptura de princípios basilares, como o da separação de poderes e a repartição estrita de competências entre eles. Parece-me profundamente antidemocrático pretender obter, por essa via tão tortuosa da ADPF, manifestação a respeito de um tema que, por ser controverso na sociedade brasileira, ainda não logrou apreciação conclusiva do Congresso Nacional, ainda que registradas tantas iniciativas legislativas em ambas as Casas. Não há o Supremo Tribunal Federal de servir como “atalho fácil” para a obtenção de resultado – a legalização da prática do abortamento – que os representantes eleitos do povo brasileiro ainda não se dispuseram a enfrentar.”

Na mesma linha de raciocínio, a justificativa apresentada pela Deputada Jandira Feghali e o voto do Relator dizem que o assunto está a exigir previsão legal, não só pela repercussão do tema na mídia mas, sobretudo, em razão da disparidade das decisões judiciais proferidas. As mulheres que buscam junto ao Poder Judiciário autorização para a prática do aborto no caso de comprovada anencefalia estão hoje diante de verdadeira roleta. Não há vetor para a decisão em cada caso concreto além do sistema de crenças do julgador.

Os argumentos contrários à proposta em análise fundam-se, basicamente, em uma matriz de pensamento ou crença comum: enquanto há vida, a vida merece proteção. Mas a proteção – neste contexto invocada – não é a proteção jurídica, sujeita a um sistema de valores que comporta relativização; ao contrário, é uma proteção de fundo religioso que vê a vida como valor absoluto e não admite contextualização. Há também aqueles que enxergam na proposta uma estratégia de grupos pró-aborto para fazer inserir no ordenamento jurídico brasileiro a legalização paulatina de qualquer forma de aborto.

Assim, reagem e resistem à possibilidade do abortamento em caso de anencefalia fetal com a mesma paixão com que reagem e resistem à possibilidade de abortamento do feto saudável. Uma rápida pesquisa nas páginas da Internet que contém discussões dedicadas ao tema mostra freqüentes assertivas do gênero: “primeiro, querem autorizar o aborto do feto anencéfalo; depois, vão querer legalizar o aborto em caso de qualquer anomalia”. Como se a anencefalia fosse “qualquer anomalia”.

A proposta em tela deve, porém, ser analisada em sua especificidade, o que retira daqui a passionalidade que envolve o debate do aborto em geral.

E a questão, assim resguardada, não possui grande complexidade.

O nosso ordenamento penal já autoriza o aborto em duas circunstâncias. O aborto é legal se a gravidez resulta de estupro e se coloca em risco a vida da gestante. Nestes dois casos previstos pelo artigo 128 do CP há plena viabilidade do feto. Há vida, há objeto jurídico a ser tutelado. Mas, diante de outros valores, o imperativo da proteção à vida é relativizado. E quais são os outros valores? No caso do aborto sentimental, também denominado ético ou humanitário, o direito penal solidariza-se com a mulher vítima de estupro e não exige dela que carregue em seu ventre o resultado de tão grande violência física e psíquica como é o estupro. No caso do aborto necessário ou terapêutico, o direito penal também se coloca ao lado da mulher e não exige dela que sacrifique sua vida em favor da vida que traz em potencial dentro de si.

Diante deste quadro, é difícil até compreender porque tanta discussão em torno do tema da anencefalia. Os mesmos bens jurídicos tutelados pelas hipóteses vigentes de aborto legal – a vida da gestante, sua saúde física, sua saúde psíquica – são invocados no caso da proposta legislativa em tela e, o que é mais relevante, sem o sacrifício da vida do feto. Porque aqui não há possibilidade de vida extra-uterina.


A medicina afirma sem margem de erro: não há possibilidade de vida fora do útero e por isso o feto que padece de anencefalia é considerado natimorto. Mais de 65% dos casos resultam em morte ainda dentro do útero. Ao lado desta constatação, lembre-se que o nosso sistema jurídico abriga a lei dos transplantes (lei federal 9.434/97) que considera cessada a vida quando se dá a morte encefálica – de acordo com referida legislação, a retirada de tecidos ou partes do corpo humano para transplante deve ser precedida pela morte encefálica. A resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.752, de 8 de setembro de 2004, autoriza o transplante de órgãos do anencéfalo após o seu nascimento. A mesma resolução considera os anencéfalos “natimortos cerebrais” e diz que possuem “inviabilidade vital por ausência de cérebro”. Assim, considerado o tratamento que o sistema jurídico pátrio confere a estas questões, o projeto de lei em análise está em perfeita sintonia com os valores vigentes em nosso meio; não há nele nenhuma inconsistência ou paradoxo. Veja-se. Se o nosso sistema jurídico punisse a mulher cuja gravidez resultou de estupro e decide abortar; se obrigasse a mulher a sacrificar sua vida em favor da vida em gestação; se obrigasse os médicos a manter os batimentos cardíacos depois de constatada a morte cerebral; se trouxesse valores impassíveis de qualquer espécie de relativização, aí então, e só assim, a proposta em análise traria uma tremenda novidade que estaria a exigir profundo debate pois sua adoção configuraria uma mudança do padrão ético vigente em nossa sociedade. O fato é que, quando da elaboração do Código Penal, inexistia tecnologia apta a fornecer diagnósticos precisos como os atualmente disponíveis. Fosse assim, é provável que o legislador de 40 houvesse incluído no artigo 128 a proposta que agora, passados 66 anos, é capaz de causar tanta polêmica.

Cumpre lembrar que, sobre o tema, manifestou-se o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil que, na sessão de 16/8/2004, decidiu considerar que a interrupção da gravidez de feto anencefálico não é prática abortiva.

Vale ainda transcrever trecho do pronunciamento do Ministro Joaquim Barbosa, relator do HC 84.025-6/RJ, citado na inicial da ADPF acima referida. O pedido era de antecipação de parto de feto anencefálico, em caso que alcançou grande repercussão na mídia e causou comoção pois, antes do julgamento, deu-se o parto e minutos depois, como esperado, a morte do feto. Manifestou-se assim Sua Excelência:

“Em se tratando de feto com vida extra-uterina inviável, a questão que se coloca é: não há possibilidade alguma de que esse feto venha a sobreviver fora do útero materno, pois, qualquer que seja o momento do parto ou a qualquer momento que se interrompa a gestação, o resultado será invariavelmente o mesmo: a morte do feto ou do bebê. A antecipação desse evento morte em nome da saúde física e psíquica da mulher contrapõe-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, em sua perspectiva da liberdade, intimidade e autonomia privada? Nesse caso, a eventual opção da gestante pela interrupção da gravidez poderia ser considerada crime? Entendo que não, Sr. Presidente. Isso porque, ao proceder à ponderação entre os valores jurídicos tutelados pelo direito, a vida extra-uterina inviável e a liberdade e autonomia privada da mulher, entendo que, no caso em tela, deve prevalecer a dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de liberdade desta de escolher aquilo que melhor representa seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu sentimento pessoal.”

Pelo que foi até aqui exposto, já é possível expressar o entendimento de que a interrupção da gravidez, comprovada a anencefalia fetal, não está em desacordo com os preceitos constitucionais e com o ordenamento jurídico pátrio. Ao contrário, a legalização desta opção – pois é disto que se trata, de dar à mulher a opção de interromper ou não a gravidez – está em perfeita consonância com os valores defendidos pela Constituição.

Dito isso, de se consignar proposta de alteração da redação para estender a hipótese à gestante incapaz – circunstância em que a autorização será fornecida por seu representante legal e para esclarecer o tipo de diagnóstico que se espera. Feitas estas pequenas ressalvas, a redação proposta é a seguinte:

Art. 128………………………

“III- quando há evidência clínica embasada em técnica de diagnóstico complementar ao da gravidez de que o nascituro apresenta anencefalia e o aborto é precedido de consentimento da gestante, ou quando incapaz, de seu representante legal.”

Assim, o parecer é pela aprovação do projeto, nos termos da emenda apresentada pelo relator, com a alteração proposta.

Brasília, 13 de fevereiro de 2006

ANA SOFIA SCHMIDT DE OLIVEIRA

Conselheira

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