Respeito ao convênio

Defensoria não é punida se outro ente estadual está inadimplente

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20 de dezembro de 2006, 23h06

Um ente do estado não pode ser punido se outro ente comete alguma irregularidade. É o princípio da intranscendência, reafirmado pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal.

O ministro determinou que a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República repasse à Defensoria Pública do Estado do Pará os valores acertados para financiar o “Seminário para o Fortalecimento dos Direitos Humanos na Região Amazônica”.

Em sua decisão, o ministro também explicou a diferença conceitual entre Convênio e contrato administrativo. Para ele, em um convênio, existem interesses paralelos e comuns. Por esse motivo, neles, o princípio da boa-fé deve incidir com maior força do que em um contrato. A cooperação e a necessidade de que as partes atuem com lealdade e cumpram todos os seus termos é fundamental.

Na Ação Cível Originária, com pedido de tutela antecipada, o estado alega que o seminário já aconteceu e que está em débito com os fornecedores contratados. De acordo com a ação, a secretaria deixou de repassar os R$ 183,6 mil à defensoria alegando que o estado está inscrito no Cadastro Único de Exigências para Transferências Voluntárias (Cauc), espécie de cadastro de inadimplentes.

Para Gilmar Mendes, a questão não é a natureza da dívida, mas a legitimidade do comportamento da secretaria em relação aos termos do convênio firmado. Ele ressaltou que, antes mesmo da assinatura do convênio, o estado já estava inscrito no cadastro. Portanto, o acordo não poderia ter sido firmado.

A União sustentou que, para deixar de fazer o repasse, observou as regras previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal. A norma exige que o beneficiário da transferência voluntária esteja em dia com tributos, empréstimos e financiamentos devidos ao órgão que vai transferir o recurso. Além disso, argumentou que o princípio da boa-fé contratual não cabe nesse caso porque o convênio não é espécie de contrato.

No pedido, o estado do Pará argumentou ainda que houve violação ao princípio da intranscendência das sanções e das medidas restritivas de ordem jurídica. Isso porque a inscrição no Cauc aconteceu na gestão anterior e diz respeito a outra secretaria de Estado. “Por isso, não deveriam ser motivo de restrição de prerrogativas da Defensoria Pública estadual, que não possui inscrição no Cauc e cumpriu rigorosamente o objeto do convênio.”

A União se defendeu dizendo que esse princípio não pode incidir, uma vez que a relação ocorre entre órgãos das administrações diretas do estado do Pará e da União. Gilmar Mendes acolheu o argumento do estado. Para ele, a Defensoria Pública não pode sofrer sanções por conta de irregularidades cometidas por outros entes do estado.

Leia o voto de Gilmar Mendes

TUTELA ANTECIPADA EM AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA 970-1 PARÁ

RELATOR: MIN. GILMAR MENDES

AUTOR(A/S)(ES): ESTADO DO PARÁ

ADVOGADO(A/S): PGE-PA – ANTÔNIO SABOIA DE MELO NETO

RÉU(É)(S): UNIÃO

ADVOGADO(A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

DECISÃO: Trata-se de ação cível originária, com pedido de antecipação de tutela, ajuizada pelo Estado do Pará em face da União (art. 102, inciso I, “f”, CF/88), com pedido de declaração de nulidade de ato da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República que determinou a suspensão de repasse de verbas suplementares previstas no Termo Aditivo nº 002/2006 ao Convênio nº 080/2005-SEDH/PR firmado com a Defensoria Pública do Estado do Pará.

A petição inicial relata que a Defensoria Pública do Estado do Pará firmou convênio com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (Convênio n° 080/2005-SEDH/PR) para execução do projeto “Seminário para o Fortalecimento dos Direitos Humanos na Região Amazônica”. Tal convênio foi aditado em duas ocasiões. O Termo Aditivo n° 001/2006 prorrogou o prazo de vigência do convênio – que inicialmente seria até 3 de março de 2006 – até 30 de abril de 2006, levando-se em conta entraves de natureza logística para a realização do evento. O Termo Aditivo n° 002/2006, além de prorrogar novamente o prazo do convênio para 30 de outubro de 2006, concedeu suplementação no valor de R$ 52.668,41 (cinqüenta e dois mil, seiscentos e sessenta e oito reais e quarenta e um centavos), tendo em vista que o valor inicial de R$ 183.681,60 (cento de oitenta e três mil, seiscentos e oitenta e um reais e sessenta centavos) seria insuficiente para cumprir todas as despesas com a realização do seminário.


O seminário objeto do convênio foi devidamente realizado nos dias 25 a 28 de abril de 2006, no Município de Salinópolis-PA. No entanto, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República suspendeu a transferência do valor previsto no Termo Aditivo n° 002/2006, fundamentando-se no fato de que o Estado do Pará estaria em situação de irregularidade no Cadastro Único de Exigências para Transferências Voluntárias – CAUC.

O Estado do Pará alega que esse ato da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República está eivado de nulidade por violação ao art. 422 do Código Civil (princípios da probidade e boa-fé nos contratos), tendo em vista que: a) as irregularidades que ensejaram a inscrição do Estado do Pará no CAUC estão relacionadas a outra Secretaria do Estado (Secretaria de Segurança Pública) e não à Defensoria Pública; b) tais irregularidades são oriundas do Governo estadual anterior, relacionadas aos Convênios 420440 e 420403, de 2001, e 463589, de 2002; c) sendo assim, ou seja, se as irregularidades já estavam presentes anteriormente, a União não deveria sequer ter firmado o próprio convênio. Em outros termos, a inscrição do Estado do Pará no CAUC deveria ter sido observada no momento em que foi firmado o convênio, em dezembro de 2005, e não apenas a cinco dias do encerramento do prazo de sua vigência, obstando a liberação somente da verba suplementar. Firmado o convênio, a União estava obrigada a cumpri-lo, em todos os seus termos, tendo em vista o princípio da boa-fé contratual previsto no art. 422 do Código Civil.

Sustenta também a violação ao “princípio da intranscendência das obrigações e sanções jurídicas”, na medida em que as irregularidades dizem respeito a outra Secretaria de Estado, de gestão passada (2001 e 2002), e, por isso, não deveriam ser motivo de restrição de prerrogativas da Defensoria Pública estadual, que não possui inscrição no CAUC e cumpriu rigorosamente o objeto do convênio.

Alega, ainda, a violação aos princípios (a) do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, visto que somente foi oficialmente comunicado da não-transferência da verba suplementar a apenas 5 dias do prazo final de vigência do convênio, sem que lhe fosse concedida oportunidade de defesa prévia; (b) e da “programação orçamentária” (arts. 166, §§ 2º, 3º e 4º, e 174).

Dessa forma, tendo em vista a premente necessidade de cumprir contratos firmados com fornecedores, assim como a iminência do encerramento do exercício financeiro de 2006, requer a antecipação dos efeitos da tutela, suspendendo-se o ato de bloqueio da verba prevista no Termo Aditivo nº 002/2006.

A União, após tecer considerações sobre o Cadastro Único de Exigências para Transferências Voluntárias – CAUC, alega que agiu de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, que estabelece diversas exigências para a formalização de convênios e para que se efetive o repasse de verbas provenientes de transferências voluntárias. Segundo a manifestação da Advocacia-Geral da União, “verificando-se que o ente recebedor encontra-se com alguma pendência no CAUC, impedido está o gestor federal, por força de lei, de proceder à liberação de recursos, mesmo que o convênio tenha sido anteriormente firmado e que conte com cronograma pré-fixado e aprovado pelo concedente”. Ademais, esclarece a União que “não basta que o ente beneficiário do convênio esteja em dia com as obrigações da Lei de Responsabilidade Fiscal, quando da formulação do convênio, para que tenha direito ao recebimento de todas as parcelas de seu objeto (…) o cumprimento dos requisitos para o recebimento de transferências voluntárias deve se fazer presente em toda a execução do convênio, de modo que se possa fazer cumprir, na medida em que os recursos programados sejam liberados, o que disposto na LRF” (fl. 336-337).

A União sustenta, ainda, a não incidência do princípio da “intranscendência das sanções jurídicas”, pois a relação ocorre entre órgãos das Administrações diretas do Estado do Pará e da União. Afirma também que o convênio não é espécie de contrato e que, no caso, a efetiva observância do princípio da boa-fé contratual compreende a fiel aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Quanto à violação aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, alega que o CAUC não é um mecanismo de controle da inadimplência dos entes federados, como é o sistema CADIN, previsto na Lei nº 10.522/02, “mas mera consolidação das informações constantes nos diversos cadastros mantidos pelo Governo Federal” (fl. 342). Dessa forma, não se faz necessária a notificação prévia da inscrição do ente federado nesse cadastro.


Em relação à violação à programação orçamentária, afirma que “não há direito subjetivo à transferência de recursos em virtude de mera previsão orçamentária”. Assim, “o princípio da programação restringe-se à necessidade de que os programas de governo estejam previstos nas leis orçamentárias, autorizando, mas não obrigando, o gestor a realizar a despesa lá constante, sobretudo se for de natureza voluntária” (fl. 346).

Decido.

Em análise sumária do que relatado nos autos pelo Estado do Pará e pela União, verifico a existência de um fato incontestável: no dia 13 de dezembro de 2005, data em que o Convênio n° 080/2005-SEDH/PR foi firmado entre a Defensoria Pública do Estado do Pará e a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, o Estado do Pará já estava inscrito no Cadastro Único de Exigências para Transferências Voluntárias – CAUC.

Portanto, não se pode deixar de considerar que, estando o Estado do Pará inscrito no CAUC, o próprio Convênio n° 080/2005-SEDH/PR não poderia ter sido firmado. A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n° 101, de 4 de maio de 2000), em seu artigo 25, estabelece as exigências para a realização de transferências voluntárias a ente da federação para a realização de fins cooperativos. Além da existência de dotação orçamentária, da formalização de convênio, entre outras, a lei exige que o beneficiário das transferências voluntárias esteja em dia com os tributos, empréstimos e financiamentos devidos ao ente transferidor, bem como a prestação de contas de recursos anteriormente dele recebidos. Assim, a própria União afirma que, “verificando-se que o ente recebedor encontra-se com alguma pendência no CAUC, impedido está o gestor federal, por força de lei, de proceder à liberação de recursos”.

Não está em discussão a natureza do CAUC ou se a inscrição do Estado do Pará nesse cadastro ocorreu de acordo com as exigências do devido processo legal. O que está em questão é a legitimidade do comportamento da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República no cumprimento dos termos do convênio firmado com a Defensoria Pública do Estado do Pará.

É certo que convênio e contrato administrativo não se confundem. A distinção entre ambos está assentada na doutrina especializada sobre o tema (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas; 2001, p. 284). Porém, ao contrário do que alega a União, talvez justamente por isso que o princípio da boa-fé incida com maior força no âmbito dos convênios administrativos, pois nestes, ao contrário dos contratos, existem interesses paralelos e comuns. Nos convênios, a cooperação é o elemento fundamental, o que ressalta ainda mais a necessidade de que as partes atuem com lealdade no cumprimento de todos os seus termos.

O fato apresentado pelo Estado do Pará, e não contestado pela União, é que o Convênio n° 080/2005-SEDH/PR, assim como os termos aditivos (Termos Aditivos n° 001/2006 e n° 002/2006) foram firmados quando o Estado do Pará já estava inscrito no CAUC, em virtude de irregularidades que nada tem a ver com a Defensoria Pública do Estado.

Parece-me plausível o argumento da violação ao princípio da “intranscendência das sanções e das medidas restritivas de ordem jurídica”, bem delineado pelo Ministro Celso de Mello em decisão na AC-AgR-QO nº 1.033/DF (DJ 16.6.2006):

“O postulado da intranscendência impede que sanções e restrições de ordem jurídica superem a dimensão estritamente pessoal do infrator. Em virtude desse princípio, as limitações jurídicas que derivam da inscrição, no CAUC, das autarquias, das empresas governamentais ou das entidades paraestatais não podem atingir os Estados-membros ou o Distrito Federal, projetando, sobre estes, conseqüências jurídicas desfavoráveis e gravosas, pois o inadimplemento obrigacional – por revelar-se unicamente imputável aos entes menores integrantes da administração descentralizada – só a estes pode afetar. – Os Estados-membros e o Distrito Federal, em conseqüência, não podem sofrer limitações em sua esfera jurídica motivadas pelo só fato de se acharem administrativamente vinculadas, a eles, as autarquias, as entidades paraestatais, as sociedades sujeitas a seu poder de controle e as empresas governamentais alegadamente inadimplentes e que, por tal motivo, hajam sido incluídas em cadastros federais (CAUC, SIAFI, CADIN, v.g.).”

O “Seminário para o Fortalecimento dos Direitos Humanos na Região Amazônica”, objeto do convênio, foi devidamente realizado. Atualmente, segundo afirma o autor, a Defensoria Pública do Estado do Pará encontra-se em débito com diversos fornecedores contratados mediante prévio procedimento licitatório. Essas circunstâncias, aliadas à proximidade do encerramento do exercício financeiro de 2006, revelam a necessidade do provimento antecipatório.

Assim, vislumbrando a presença da plausibilidade jurídica do pedido e a urgência da pretensão cautelar, defiro o pedido de antecipação dos efeitos da tutela, ad referendum do Plenário do Tribunal, para suspender o ato da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, que determinou a suspensão do repasse de verbas suplementares previstas no Termo Aditivo n° 002/2006 ao Convênio n° 080/2005-SEDH/PR firmado com a Defensoria Pública do Estado do Pará.

Comunique-se, com urgência.

Publique-se.

Brasília, 19 de dezembro de 2006.

Ministro GILMAR MENDES

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