Competência para julgar

Decisão da Justiça Militar só pode ser revista pelo STJ ou STF

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9 de dezembro de 2006, 11h27

As decisões da Justiça Militar estão sujeitas, unicamente, ao controle do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. O entendimento é do ministro Celso de Mello, do STF, que no julgamento de um conflito de competência suscitado pelo Superior Tribunal Militar.

O ministro Celso de Mello analisou se o STM era competente para processar e julgar pedido de Habeas Corpus contra a decisão do Tribunal de Justiça Militar. O entendimento do ministro foi de que isso não é possível.

Celso de Mello esclareceu que, de acordo com a Constituição Federal, “o STM — enquanto órgão de cúpula da Justiça Militar da União — não dispõe de competência, para, em tema de crimes militares praticados por integrantes da Polícia Militar e dos Corpos de Bombeiros Militares, reexaminar as decisões que, nessa mesma matéria, hajam sido proferidas por Tribunais de Justiça locais ou, onde houver, por Tribunais de Justiça Militar”.

A explicação do ministro é de que o Superior Tribunal Militar, mesmo qualificado como tribunal superior, atua como segunda instância da Justiça Militar da União. Por isso, não há como receber a denúncia e julgar o pedido de Habeas Corpus. Caberia, por tanto, o recurso à próxima instância, nesse caso o STJ ou STF.

Leia o voto

CONFLITO DE COMPETÊNCIA 7.346-2 SÃO PAULO

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

SUSCITANTE(S): SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR

SUSCITADO(A/S): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

INTERESSADO(A/S): CARLOS ROBERTO DE BARROS CONSANI

ADVOGADO(A/S): RAMON AUGUSTO MARINHO E OUTRO(A/S)

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA ENTRE O SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR (STM) E O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). “HABEAS CORPUS” IMPETRADO, EM FAVOR DE OFICIAL DA POLÍCIA MILITAR, CONTRA DECISÃO EMANADA DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA PARA, EM REFERIDO CONTEXTO, PROCESSAR E JULGAR A AÇÃO DE “HABEAS CORPUS”. AS DECISÕES DA JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL ESTÃO SUJEITAS, UNICAMENTE, AO CONTROLE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, ENQUANTO INSTÂNCIAS DE SUPERPOSIÇÃO. O SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR NÃO DISPÕE DE COMPETÊNCIA DE DERROGAÇÃO DOS ACÓRDÃOS EMANADOS DA JUSTIÇA MILITAR DOS ESTADOS-MEMBROS. A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA PENAL DA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO E DOS ESTADOS-MEMBROS. O CARÁTER ANÔMALO DA JURISDIÇÃO PENAL CASTRENSE, OUTORGADA À JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO, EM TEMPO DE PAZ, SOBRE CIVIS. O CASO “EX PARTE MILLIGAN” (1866): UMA “LANDMARK DECISION” DA SUPREMA CORTE DOS EUA (RTJ 193/357-358). RECONHECIMENTO, NO CASO, DA COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA PARA PROCESSAR E JULGAR, EM SEDE ORIGINÁRIA, “HABEAS CORPUS” IMPETRADO CONTRA DECISÃO EMANADA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO.

DECISÃO: Trata-se de conflito negativo de competência instaurado entre o E. Superior Tribunal Militar e o E. Superior Tribunal de Justiça, motivado pelo dissenso quanto ao órgão judiciário investido de atribuições jurisdicionais para processar e julgar ação de “habeas corpusajuizada em face de acórdão proferido pelo E. Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo, que recebeu denúncia contra determinado Tenente-Coronel da Polícia Militar dessa mesma unidade da Federação.

O Ministério Público Federal, em pronunciamento da lavra da ilustre Subprocuradora-Geral da República, Dra. CLÁUDIA SAMPAIO MARQUES, aprovado pelo eminente Procurador-Geral da República (fls. 97/99), entendeu competente o E. Superior Tribunal de Justiça, órgão ora suscitado, para apreciar o pedido de “habeas corpus” em questão, formulando parecer assim ementado (fls. 97):

CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA ENTRE O SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR E O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ‘HABEAS CORPUS’ IMPETRADO CONTRA DECISÃO COLEGIADA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO. CORTE SUJEITA À JURISDIÇÃO DO ÓRGÃO SUSCITADO. PARECER PELO CONHECIMENTO DO CONFLITO PARA DECLARAR A COMPETÊNCIA DO STJ PARA PROCESSAR E JULGAR O ‘WRIT’.” (grifei)


Cabe reconhecer, preliminarmente, considerada a situação de antagonismo entre o E. Superior Tribunal Militar e o E. Superior Tribunal de Justiça, que assiste, ao Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, I, “o”, da Constituição da República, a atribuição jurisdicional originária de dirimir o presente conflito de competência instaurado entre Tribunais Superiores da União.

Entendo assistir plena razão à douta Procuradoria-Geral da República, pois o E. Superior Tribunal Militar, não obstante qualificado, constitucionalmente, como Tribunal Superior, atua como órgão de segunda instância da Justiça Militar da União (CF, art. 122, I).

Isso significa, portanto, que o Superior Tribunal Militar – enquanto órgão de cúpula da Justiça Militar da Uniãonão dispõe, considerada essa particular condição institucional, de competência, para, em tema de crimes militares praticados por integrantes da Polícia Militar e dos Corpos de Bombeiros Militares, reexaminar, quer em sede recursal, quer em sede de “habeas corpus”, as decisões que, nessa mesma matéria, hajam sido proferidas por Tribunais de Justiça locais ou, onde houver, por Tribunais de Justiça Militar, como ocorre nos Estados de São Paulo, do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais (CF, art. 125, § 3º).

Cumpre acentuar, neste ponto, por necessário, que a competência penal da Justiça Militar dos Estados-membros restringe-se, unicamente, tratando-se de crimes militares definidos em lei, aos membros integrantes da respectiva Polícia Militar, “ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil” (CF, art. 125, § 4º, na redação dada pela EC nº 45/2004).

As decisões proferidas, em primeiro grau, “pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiçasão passíveis de controle recursal, em segunda instância, nos delitos militares praticados por “militares dos Estados” (CF, art. 125, § 4º), “pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes” (CF, art. 125, § 3º, na redação dada pela EC nº 45/2004).

Na realidade, e como tem advertido a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a competência penal da Justiça Militar dos Estados-membros – porque abrangente de um complexo de atribuições de exegese necessariamente estrita – não se estende aos civis, limitando-se, tão-somente, mesmo nas hipóteses legais de conexão ou de continência, aos membros integrantes das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares:

Incompetência da Justiça Militar Estadual para o processo e julgamento de civil (C.F., art. 125, § 4º), mesmo quando enquadrável como crime militar o fato que lhe é atribuído.

‘Habeas corpus’ deferido.

(HC 80.163/MG, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI – grifei)

HABEAS CORPUS’ – CRIME COMETIDO POR CIVIL CONTRA O PATRIMÔNIO DA POLÍCIA MILITAR DO ESTADOINCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DA JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL (CF, ART 125, § 4º) – PRINCÍPIO DO JUIZ NATURALNULIDADE DOS ATOS DECISÓRIOS PROFERIDOS PELA JUSTIÇA MILITAR DO ESTADO – PEDIDO DEFERIDO.

– A Justiça Militar estadual não dispõe de competência penal para processar e julgar civil que tenha sido denunciado pela prática de crime contra a Polícia Militar do Estado.


Qualquer tentativa de submeter os réus civis a procedimentos penais-persecutórios instaurados perante órgãos da Justiça Militar estadual representa, no contexto de nosso sistema jurídico, clara violação ao princípio constitucional do juiz natural (CF, art. 5., LIII).

A Constituição Federal, ao definir a competência penal da Justiça Militar dos Estados-membros, delimitou o âmbito de incidência do seu exercício, impondo, para efeito de sua configuração, o concurso necessário de dois requisitos: um, de ordem objetiva (a prática de crime militar definido em lei) e outro, de índole subjetiva (a qualificação do agente como policial militar ou como bombeiro militar).

A competência constitucional da Justiça Militar estadual, portanto, sendo de direito estrito, estende-se, tão-somente, aos integrantes da Policia Militar ou dos Corpos de Bombeiros Militares que hajam cometido delito de natureza militar.

(RTJ 158/513-514, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

De outro lado, e tratando-se da Justiça Militar da União, cumpre registrar, quanto a ela, que dispõe, excepcionalmente, nos crimes militares tipificados em lei – ao contrário do que sucede com a Justiça Militar do Estado-membro -, de competência penal sobre réus civis, ainda que em tempo de paz.

Como anteriormente enfatizado, reveste-se de caráter excepcional a jurisdição castrense outorgada à Justiça Militar da União, notadamente quando se tratar de civil, tal como acentua, com particular ênfase, a jurisprudência constitucional desta Suprema Corte:

(…) EXCEPCIONALIDADE DA COMPETÊNCIA PENAL DA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO, EM TEMPO DE PAZ, TRATANDO-SE DE RÉU CIVIL.

Não se tem por configurada a competência penal da Justiça Militar da União, em tempo de paz, tratando-se de réus civis, se a ação delituosa, a eles atribuída, não afetar, ainda que potencialmente, a integridade, a dignidade, o funcionamento e a respeitabilidade das instituições militares, que constituem, em essência, nos delitos castrenses, os bens jurídicos penalmente tutelados.

O caráter anômalo da jurisdição penal castrense sobre civis, notadamente em tempo de paz. O caso ‘Ex Parte Milligan’ (1866): um precedente histórico valioso.

O POSTULADO DO JUIZ NATURAL REPRESENTA GARANTIA CONSTITUCIONAL INDISPONÍVEL, ASSEGURADA A QUALQUER RÉU, EM SEDE DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO QUANDO INSTAURADA PERANTE A JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO.

O princípio da naturalidade do juízo representa uma das mais importantes matrizes político-ideológicas que conformam a própria atividade legislativa do Estado e condicionam o desempenho, pelo Poder Público, das funções de caráter penal-persecutório, notadamente quando exercidas em sede judicial.

O postulado do juiz natural, em sua projeção político- -jurídica, reveste-se de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do Estado, e, enquanto limitação insuperável, representa fator de restrição que incide sobre os órgãos do poder estatal incumbidos de promover, judicialmente, a repressão criminal.


É irrecusável, em nosso sistema de direito constitucional positivo – considerado o princípio do juiz natural – que ninguém poderá ser privado de sua liberdade senão mediante julgamento pela autoridade judiciária competente. Nenhuma pessoa, em conseqüência, poderá ser subtraída ao seu juiz natural. A nova Constituição do Brasil, ao proclamar as liberdades públicas – que representam limitações expressivas aos poderes do Estado – consagrou, de modo explícito, o postulado fundamental do juiz natural. O art. 5º, LIII, da Carta Política prescreve que ‘ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente’ (…).

(RTJ 193/357-358, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

De qualquer maneira, no entanto, não assiste, ao E. Superior Tribunal Militar, competência para reexaminar, em sede de “habeas corpus” (como sucede na espécie), acórdão, que, emanado do E. Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo, ordenouo recebimento da denúncia” (fls. 19), por crime militar, contra determinado Oficial da Polícia Militar daquela unidade da Federação.

Cabe, na verdade, não ao Superior Tribunal Militar, mas, isso sim, ao Superior Tribunal de Justiça, por efeito de expressa determinação constitucional, processar e julgar, originariamente, a ação de “habeas corpus”, “quando o coator for tribunal sujeito à sua jurisdição” (CF, art. 105, I, “c”, na redação dada pela EC 22/99), como ocorre com os Tribunais judiciários estaduais (Tribunais de Justiça e, onde houver, Tribunais de Justiça Militar).

Daí a correta observação constante do parecer da douta Procuradoria-Geral da República (fls. 98/99):

6. (…). A Justiça Militar local, que dispõe de competência constitucional apenas para processar e julgar os integrantes da Polícia Militar ou do Corpo de Bombeiros Militares que tenham cometido delito de natureza militar, pertence à estrutura do Poder Judiciário do Estado Federado, sujeitando-se, portanto, à jurisdição do Superior Tribunal de Justiça.

7. Já o Superior Tribunal Militar, impõe-se advertir, não é órgão de cúpula da Justiça Militar, mas, tão-somente, órgão de segunda instância da Justiça Militar federal.

8. Como exposto na decisão emanada da Corte suscitante, ‘o art. 1º da LOJM enumera os órgãos da Justiça Militar da União como sendo apenas o Superior Tribunal Militar, a Auditoria de Correição, os Conselhos de Justiça, os Juízes Auditores e os Juízes Auditores substitutos. Não são órgãos da Justiça Militar da União, e nem se sujeitam à sua jurisdição, os Juízes de Direito da Justiça Militar estadual e os Tribunais de Justiça Militar estaduais, referidos no art. 125 da Constituição Federal. Também não há que se confundir o militar das Forças Armadas, de que tratam o § 3º, do art. 142, da Constituição e o art. 22 do CPM, e que é julgado pela Justiça Militar da União, com o policial militar referido no § 5º, do art. 144, do mesmo diploma, cuja competência para o julgamento é da Justiça Militar estadual, nos termos do § 4º, do referido art. 125 da Constituição’ (fl. 82).

Deste modo, tendo em vista o disposto no art. 105, I, ‘c’, da CF, manifesta-se o Ministério Público Federal pelo conhecimento do conflito para declarar a competência do Superior Tribunal de Justiça para processar e julgar o pedido de ‘habeas corpus’ formulado pela defesa de Carlos Roberto de Barros Consani contra acórdão do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo.” (grifei)

Sendo assim, pelas razões expostas, acolhendo o parecer da douta Procuradoria-Geral da República (fls. 97/99), e nos termos do art. 120, parágrafo único, do CPC, conheço deste conflito negativo de competência e declaro competente o Superior Tribunal de Justiça para processar e julgar o pedido de “habeas corpusimpetrado a fls. 03/10.

Encaminhem-se, pois, os presentes autos ao E. Superior Tribunal de Justiça.

Transmita-se, ao E. Superior Tribunal Militar, mediante cópia, o teor da presente decisão.

Publique-se.

Brasília, 07 de dezembro de 2006.

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

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