Justiça sem preço

Não se pode avaliar o Judiciário pelo salário dos juizes

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6 de dezembro de 2006, 11h17

Há poucos dias, a 1º de dezembro, esta revista publicou artigo de minha autoria (“Quem mandou estudar? — Desembargador diz o que pensa de corte em seu salário”), em que sugeri que há outras questões a serem examinadas no âmbito do Poder Judiciário, que vão muito além da discussão salarial.

No sentido de qualificar o debate, elevando-o a um patamar mais conseqüente, volto ao tema. Cabe discutir também a responsabilidade de quem tem a grave missão de decidir os destinos alheios e a qualidade da prestação dos serviços jurisdicionais.

Em primeiro lugar, registre-se que o artigo referido não cuidava de reivindicação salarial. Afinal, somos servidores públicos, concursados, e, ao contrário daqueles eleitos e que findo seus mandatos retornam às suas atividades privadas, devemos nos submeter às regras criadas exatamente por esses, inclusive quanto à aposentadoria. Portanto, é legítimo criticá-las.

Lendo o que publicaram algumas revistas no último final de semana, observo que se retoma a discussão dos salários em notícias fundamentadas em opiniões, comparativos e, mais uma vez, misturando situações.

Mas, como se sabe, alguns argumentos costumam pesam muito mais do que os fatos.

Sobre esses, já se conhece o que aconteceu com outros segmentos do setor público quando não bem mensuraram seus salários. Sem muitos elementos, me atrevo a citar apenas duas situações. Há pouco tempo se constatou muita dificuldade no preenchimento de vagas para médicos em postos de saúde na periferia de São Paulo. O que se apurou foi que a baixa remuneração não compensava o risco pessoal, a falta de boas instalações e condições de trabalho. Disso pode se indagar sobre quem recaiu esse prejuízo. Os policiais, civis e militares, são obrigados a fazer bicos para completar sua renda mas, ao mesmo tempo, é usual criticar a ausência deles na questão segurança.

Por outro lado, comparações extremadas, desde aqueles mais esquecidos e que recebem salário mínimo até com magistrados de outros países, a meu ver, em nada acrescenta.

A título de exemplo, registro que em São Paulo existia um tribunal, hoje são algumas câmaras, que julgam questões financeiras, basicamente ajustando o que vem de contratos bancários ou decidindo a respeito da falta de seu pagamento. Agora, isso existe apenas porque se contratam empréstimos de má fé, ou, se tornou necessário em razão da política econômica, do achatamento da classe média, em grande parte tomadora de financiamentos para custear sua justas expectativas, sem falar do que emana do desemprego, derivado da redução da atividade econômica.

E o que dizer das ações de cobrança de condomínio, igualmente abarrotando os tribunais, ou mesmo, do aluguel, bem como aquelas voltadas a solução de contratos para aquisição de veículos e que resultam na sua busca e apreensão. Me recordo do relato dos oficiais de justiça que realizavam essas diligências, no sentido de que, em grande maioria dos casos, os próprios devedores os procuravam para entregar o carro porque não queriam passar essa decepção na frente da família, dos vizinhos.

Nas questões de condomínio, é possível aceitar que não se paga porque não se quer ou porque, à frente de um quadro de necessidade, se faz uma opção apenas para escapar dos registros junto à Serasa.

Ora, nosso trabalho, cada vez mais tem sido lidar com esse reflexo da situação sócio-econômica do país, ou, com uma realidade que é bem distante da maioria dos outros países cuja remuneração dos seus juízes serviu de parâmetro a comparação que se fez.

Nos países usados para traçar comparações com o quadro brasileiro, nada disso existe. Desde o salário mínimo até os juros, estratosféricos — quer quando cobrados, quer quando pagos sobre o custo da dívida interna.

E será que é comum o Judiciário ser obrigado a dirimir sobre preço e coberturas dos planos de saúde e, a população, a eles recorrer para ter uma mínima assistência? Aliás, seria muito bom lembrar essas circunstâncias quando explorada a questão da morosidade do judiciário e, no que se refere aos salários, poderíamos até imaginar que os juízes brasileiros trabalham muito mais. Afinal, ainda examinamos questões mais aprofundadas e complexas, e devemos estar preparados para as mais atuais, os conflitos tirados da rapidez como muitas coisas se apresentam.

Os sucessivos planos econômicos sempre significaram uma imprevisível busca ao judiciário, agravando o tempo de solução dos litígios. Agora, nesse contexto e momento que em muito é similar, porque não se fortalecer ao invés de enfraquecer, questionando o requisito da credibilidade com deturpações acerca de uma discussão salarial. Tudo poderia ser mais simples, sem se perder muito desse tempo.

A propósito, porque as inúmeras ações que os aposentados do INSS e as empresas devem ingressar contra o poder público apenas para preservar direitos ou para afastar abusos no campo tributário. Muitos deles já objeto de decisões judiciais mas que são desconsideradas no campo administrativo porque proferidas individualmente.

Bom seria que aqueles que têm seus bens e imóveis desapropriados pudessem receber suas indenizações na esfera de onde surgiram e não aguardar por uma sentença, ao depois, por muito mais, o pagamento dos chamados precatórios e com, eles, todo o expediente processual necessário às suas atualizações. Ou, mais recursos, eventualmente, recursos dos recursos. Aliás, para esse cidadão, a imagem que permanece é que a “justiça não resolve”, pois, não recebendo o dinheiro, seu processo não terminou. Aqui, sinceramente, não consigo disfarçar um sorriso quando escuto aquela frase, e que é muito utilizada, de que decisão judicial não se discute, cumpre-se.

Portanto, em matéria de judiciário, há muito mais do que o salário dos juízes. Vamos atualizar leis e procedimentos, rever alguns equívocos na dimensão e na estrutura, ou até mesmo só discutir determinadas situações.

Por exemplo, as pensões alimentícias estabelecidas em valores inferiores a um salário mínimo e que são pleiteadas por menores de necessidade presumida, pagas por aqueles que vivem da informalidade. Existe razoabilidade em não se encerrar essa discussão no juízo de primeiro grau? É comum não se ter muitos argumentos e documentos a serem examinados por três desembargadores, às vezes também por ministros dos Tribunais Superiores e que não tiveram o contato pessoal com as partes em audiência, o que se revela como a melhor segurança para tais estimativas, até porque ainda podem ser objeto de uma ação revisional.

Ou será que só criticar os juízes, agora por seus ganhos, já é suficiente?

A propósito, em todos esses anos não tenho visto muitas críticas à qualidade deles. A quase totalidade delas diz respeito à morosidade do sistema e isso não pode ser tratado como uma questão individual do juiz. Nós trabalhamos em prédios, necessitamos de funcionários, computadores, etc… Ou seja, existe uma questão de orçamento e administração desse serviço público que precisa ser enfrentada.

É lógico que uma coisa se liga a outra quando falha a justa expectativa da rápida solução de determinado problema. Mas, agir para aumentar o descontentamento dos que perdem suas demandas — nem sempre convencidos da ausência dos seus direitos ou da melhor prova dos seus opositores, sem falar no talento dos advogados — e desvalorizar o papel da magistratura como mote de que há salários imerecidos, não parece ser o mais apropriado e, acima de tudo, oportuno exercício de um dote que, enquanto exclusivamente críticos, muitos, inegavelmente, o possuem.

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