Aberrações jurídicas

A estranha luta da Anac para impedir a ressurreição da Varig

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4 de dezembro de 2006, 18h09

Um dos efeitos colaterais de períodos de enchentes de escândalos e enxurradas de denúncias é o afogamento da lógica e da racionalidade. Pequenos e grandes delitos, importâncias e desimportâncias se confundem. Vítimas e algozes trocam de lugar. A fronteira entre o certo e errado move-se com o vento.

A imprensa, no meio do tiroteio, no afã de montar os quebra-cabeças, encaixa peças de um jogo no outro e quem ganha com a confusão são os mais hábeis, os especialistas em nadar em águas turvas, que podem tocar seus negócios à vontade.

Uma situação exemplar desse quadro é o caso da recuperação judicial da Varig.

De acordo com a nova legislação, vendeu-se uma parte da companhia para que um grupo econômico investisse no negócio. O plano de recuperação tem uma lógica matemática: com o preço pago pela adquirente da unidade produtiva a companhia inicia o pagamento do seu passivo e a Varig retoma o seu lugar no mercado.

O problema surgiu quando a Agência Nacional da Aviação Civil (Anac), que deveria agir como a principal interessada no sucesso desse projeto, tornou-se o principal obstáculo. E em vez de cumprir seu papel, alavancando a alternativa que atende o interesse do mercado e dos usuários, passou a trabalhar com afinco para asfixiar a “nova” empresa.

Os fatos são públicos. Fáceis de entender e só não são promovidos à condição de escândalo nacional por conta da confusão reinante: provavelmente por motivos ideológicos, os diretores da Anac nomeados pelo ex-ministro José Dirceu não querem que a Varig volte ao mercado com o tamanho que tinha antes. Na verdade, a sombra de um projeto de Medida Provisória preparada na Casa Civil, com o auxílio da hoje diretora da Anac, Denise Abreu, dividindo a Varig entre as suas duas maiores concorrentes parece nunca desaparecer. Por quatro vezes a Anac tentou repassar as linhas da Varig para suas concorrentes. Nas quatro vezes, a Justiça bloqueou as manobras.

Sem conseguir seu intento, a Anac nega à nova empresa as autorizações necessárias para que ela possa retomar seu lugar no mercado. O presidente da agência, Milton Zuanazzi, diz que a companhia ainda não demonstrou estar apta para exercer seu papel.

Não deixa de ser intrigante: qual o sentido de exigir de uma empresa que já está exercendo seu papel que ela demonstre essa capacidade?

Alguns paralelos podem evidenciar o paradoxo: o governo poderia patrocinar a venda de uma empresa de ônibus e negar a seu comprador o uso de estradas? Se essa empresa, herdeira de 80 anos de experiência no ramo, está operando bem, com segurança, sem queixas dos usuários, o que a Anac quer? Soa como a CBF exigir que Ronaldinho Gaúcho apresente papéis que “provem” que ele sabe jogar futebol.

O fato está escancarado: a agência criada para regular o mercado e zelar pelo bom funcionamento do sistema aéreo, em benefício dos cidadãos usuários, está fazendo exatamente o contrário.

Uma pesquisa na Internet mostra que no Japão a faixa de usuários do transporte aéreo está entre 80% e 85% da população. Nos Estados Unidos e Europa o índice fica entre 75% e 80% de seus habitantes. No Brasil, apenas 4% da população usa aviões como meio de transporte.

Há quem afirme que quando a Varig é quem detinha a força política em Brasília, seu comportamento era temperado com as práticas das quais ela hoje é vítima. Sendo ou não verdade, isso importa menos que o fato de que o usuário do transporte aéreo no Brasil está sendo punido por causa da ideologia da Anac. Nas linhas em que há três e não apenas duas empresas operando, os preços desabaram e as filas diminuíram. Nas demais, os preços continuam altos e as filas longas.

Este site tem publicado artigos e notícias contrárias e favoráveis à recuperação da Varig. A comparação dos argumentos fala por si (Leia os textos relacionados ao pé deste texto).

A recuperação da Varig tornou-se baliza de dois paradigmas importantes para o futuro da jurisprudência: um deles é a questão da “independência” das agências regulatórias; outro é o debate da fronteira entre os papéis da justiça comum e da justiça trabalhista no contexto da sucessão de obrigações.

Nesse aspecto, está em jogo a nova legislação sobre a recuperação judicial. Um setor forte da justiça trabalhista entende que os ativos investidos para a ressurreição de uma empresa que foi à lona podem ser bloqueados para pagamento de débitos com trabalhadores.

Caso prevaleça essa linha de pensamento, naturalmente, vai ser difícil encontrar quem queira empatar capital na recuperação de empresas quebradas.

No caso da nova Varig, contudo, esse debate ganha tons especiais. Como a Anac não homologou até hoje o leilão de compra da empresa, seus novos controladores, juridicamente, ainda não são donos da companhia. Junte-se a isso o fato de o plano de recuperação judicial da empresa ter sido aprovado por 100% da representação dos trabalhadores e o debate jurídico do conflito de competência fica ainda mais instigante.

O debate se trava em torno do artigo 60, parágrafo único, da Lei 11.101/2005, onde se lê que: “O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária”. A proteção conferida pela Lei parece ser clara. O legislador referiu-se expressamente às obrigações tributárias porque elas estão excluídas das composições e negociações feitas no curso do processo de recuperação judicial (art. 6º, §7º).

Para dirimir a dúvida, há o Superior Tribunal de Justiça, que tem reconhecido a validade da lei criada para salvar empresas, empregos e seus corolários. O entendimento oposto significa a revogação do diploma.

A expectativa mais provocante, contudo, fica por conta da ideologia da Anac — uma agência que desmerece o vetor de independência que originou sua criação; desmoraliza a administração civil da aviação; decepciona seus criadores e perverte as suas finalidades.

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