Efetivação de direitos

Defensoria tem de ser tratada como serviço essencial

Autor

  • Dalmo de Abreu Dallari

    é advogado professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP membro da Comissão Internacional de Juristas. É autor entre outras obras de O Futuro do Estado.

28 de agosto de 2006, 16h05

Nenhum ser humano pode viver sozinho e por esse motivo, por necessidade natural, a pessoa humana só pode ser concebida convivendo com outras pessoas. Mas para que a convivência humana seja benéfica para todos, e para que as diferenças entre as pessoas não seja motivo nem pretexto para ofensas à dignidade dos menos favorecidos, é que existe o direito. A idéia de direito faz pensar, desde logo, na existência de regras de comportamento social, mas é absolutamente necessário acrescentar também a idéia de justiça. As pessoas são diferentes e podem ter interesses conflitantes, mas podem conviver em paz se a convivência for disciplinada por regras que sejam iguais para todos e que sejam justas.

A isso é preciso acrescentar que não basta o estabelecimento de uma ordem social justa, com uma legislação que assegure os direitos básicos para todos, se muitas pessoas não tiverem a consciência de que têm direitos ou se não conhecerem os seus direitos. Além disso, haverá também injustiça se houver pessoas que, por sua pobreza ou situação de marginalização, não têm a possibilidade de proteger e usar seus direitos.

Por todos esses motivos, reconhecendo a necessidade da assistência jurídica para que as pessoas conheçam bem os seus direitos e tenham a possibilidade de protegê-los e usá-los, a Constituição brasileira inclui, no capítulo dos direitos e garantias fundamentais, um dispositivo estabelecendo que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (artigo 5o., inciso LXXI). E para que a garantia de tal assistência não fique na dependência da boa vontade dos governantes foi prevista, com caráter obrigatório, a criação de um órgão, a Defensoria Pública, tanto no plano federal quanto no estadual, tendo por finalidade o oferecimento da assistência jurídica aí referida. É o que consta do artigo 134, que assim dispõe: “A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados”.

A constatação de que sem o auxílio de um advogado as populações mais pobres não têm acesso aos seus direitos, ficando excluídas do exercício da cidadania e correndo o risco de sofrer muitas injustiças, já inspirou no Brasil a criação de organizações devotadas à assistência judiciária. Assim, por exemplo, há cerca de 70 anos os estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo criaram o Departamento Jurídico do Centro Acadêmico XI de Agosto, que vem prestando serviços relevantes à população pobre. Depois disso, em vários estados foi instituída uma Procuradoria de Assistência Judiciária, destinada a dar assistência à população pobre em defesas judiciais de direitos. Acrescente-se, ainda, que a Ordem dos Advogados do Brasil instituiu a inscrição de advogados interessados em prestar serviços a réus pobres, quando designados por um juiz, recebendo por esse trabalho uma pequena remuneração, paga pelo governo estadual.

Apesar do inegável mérito dessas iniciativas, existe ainda uma larga faixa da população que tem grande dificuldade para o acesso a um advogado, ocorrendo diariamente no Brasil muitas situações em que a falta de conhecimento dos direitos ou a impossibilidade de defendê-los pelos meios legais resulta na prática de injustiças graves.

Por tudo isso, mas também por um fator positivo que é o aumento da consciência de direitos, resultante da multiplicação de organizações comunitárias e do trabalho de divulgação e esclarecimento realizado por militantes dos Direitos Humanos, cresceu muito no Brasil, nos últimos anos, a necessidade de advogados que dêem apoio às camadas mais pobre da população, prestando informações, aconselhando, promovendo o acesso aos direitos ou a defesa dos direitos que estiverem sendo negados ou ofendidos. Foi precisamente para isso, para tornar efetivos os direitos assegurados a todos pela Constituição e pelas leis do País, que o constituinte de 1988 decidiu criar a Defensoria Pública, declarando-a “instituição essencial à função jurisdicional do Estado” e dando-lhe a incumbência de fornecer orientação jurídica e de promover a defesa dos direitos dos necessitados. Para dar mais força às Defensorias Públicas, a Constituição assegurou-lhes autonomia funcional e administrativa, o que lhes dá a possibilidade de agir sem sofrer interferências ou coação.

Um passo importante já foi dado, com a criação das Defensorias. É preciso agora que elas sejam tratadas como serviços essenciais, que as Defensorias Públicas tenham efetiva independência, número suficiente de Advogados e instalações condizentes com suas responsabilidades e necessidades, para que cumpram com eficiência suas relevantes funções sociais.

Esses temas serão tratados no V Congresso Nacional de Defensores Públicos, que acontece entre 30 de agosto e 2 setembro, em São Paulo. Como é lógico e evidente, um direito só existe realmente quando pode ser usado. O desconhecimento dos direitos e a impossibilidade de usá-los ou defendê-los afetam gravemente a situação social das pessoas e facilitam ou estimulam ofensas à dignidade humana e impedem a criação de uma sociedade justa.

Autores

  • é advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, membro da Comissão Internacional de Juristas. É autor, entre outras obras, de O Futuro do Estado.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!