Proposta federal

Execução fiscal deve ser feita por Fisco e não por juiz

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27 de agosto de 2006, 7h00

Ajufe - por SpaccaSpacca" data-GUID="ajufe.png">A primeira instância da Justiça Federal julga cerca de 710 mil processos por ano. Está entupida. Mas há esperanças desse cenário mudar. O número de casos na Justiça Federal pode ser reduzido se a execução fiscal for feita administrativamente. É o que propõe o juiz federal Walter Nunes, presidente da Ajufe — Associação dos Juizes Federais do Brasil. Atualmente, na prática, o juiz é quem faz a execução. Ele diz que o Fisco poderia cuidar dessa atribuição. Questionado sobre a possibilidade de o Fisco fazer execuções indevidas, Nunes não hesita: “Aí você recorre ao Judiciário”. Segundo ele, “só a parte discutível” deve ir para a Justiça.

O presidente da Ajufe ressalta que essa é sua opinião pessoal e que a categoria que representa rejeitou certa vez uma proposta nesse sentido. Mas afirma que pretende consultar novamente seus pares sobre a idéia.

Walter Nunes não tem dúvidas que no Brasil falta diálogo e sobra litígio. O processo de judicialização que avança no país, conseqüência da falta do hábito de negociar e de instâncias extra-judiciais próprias, é um dos responsáveis pelo altíssimo congestionamento do Judiciário. “Uma demanda de Justiça, tão alta como a do Brasil, denuncia que a nação está em crise”, diagnostica o juiz federal.

Nunes sabe do que fala. Antes de chegar à presidência da mais importante associação da magistratura federal ele foi servidor da Justiça, juiz estadual, promotor de Justiça, juiz federal e professor de direito. Soma mais de 20 anos na área, tempo em que pôde observar e entender os meandros do Judiciário brasileiro.

Para ele, a desjudicialização das relações sociais se resolverá com a prática democrática do fortalecimento de instâncias extra-judiciais e de soluções simples como habilitar cartórios inventários e divórcios não litigiosos e com a execução fiscal administrativa.

Uma distorção deste ímpeto litigante, que multiplica os recursos judiciais ad infinitum, é outra das causas insensatez da morosidade do Judiciário. Para Nunes, este hábito perverso, costuma premiar a parte que não tem razão no pleito, e é também um castigo imerecido para o juiz de primeira instância.

“A decisão do juiz singular não pode ser o ‘nada’ jurídico”, diz ele sobre a inexorável realidade que tenta fazer do juízo de primeira instância uma nulidade prática. Para Nunes, a solução para essa distorção também é simples. Bastaria que a decisão judicial tivesse aplicação imediata e que o efeito suspensivo passasse a ser a exceção e não a norma, como é hoje.

Ele chama à responsabilidade o Estado, o principal cliente do Judiciário. De 616 mil novas ações ingressadas na Justiça Federal em 2004, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça, 316 mil foram propostas pelo ou contra entes da administração pública. Citando o ministro do Superior Tribunal de Justiça, Cesar Asfor Rocha, Nunes diz: “O problema da morosidade da Justiça vai ser resolvido no dia em que o Estado cumprir a lei”.

Escalado para ilustrar esta entrevista com seu talento, o artista Spacca se disse impressionado com os traços fortes do rosto do potiguar Walter Nunes, idênticos aos de uma tribo guerreira, os Jívaros, célebres por sua valentia. A equipe que entrevistou o juiz ficou com impressão parecida. O principal líder dos juízes federais espanta não só pela eloquência, mas pela força com que expõe suas idéias.

Nesta entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, da qual se publica apenas os principais trechos, participaram também os jornalistas Márcio Chaer, Maurício Cardoso e Rodrigo Haidar, Walter Nunes falou ainda do sistema prisional, do crime organizado, da segurança dos juizes e de seu trabalho recém começado trabalho — tomou posse no dia 7 de junho — à frente da Ajufe. Instado a falar das preocupações corporativas de sua categoria, ele resistiu. “Estamos cuidando disso. É preciso retomar a discussão sobre o plano de carreira da magistratura, mas o país tem dramas mais urgentes neste momento”, diz.

Leia a entrevista

ConJur — Tudo no Brasil hoje vai parar na Justiça. Do campeonato de futebol à tarifa do telefone passando pelo emprego e pelo aluguel da casa. O país se judicializou. Não está na hora de começar um processo de desjudicialização?

Walter Nunes — Quando um país tem demandas judiciais como o Brasil tem hoje é porque a sociedade está em crise. O Brasil não tem mecanismos de contenção e de resolução de conflitos. Um país saudável, democrático, tem várias instâncias de resolução do conflito, além das judiciais. Quanto mais instâncias não-judiciais, melhor. Os brasileiros não têm associações e classes organizadas para a defesa de seus interesses. Por isso, a atuação incisiva do Ministério Público na defesa de interesses coletivos. O processo de judicialização vem da falta de instrumentos de resolução de problemas da sociedade. No caso do inventário, as pessoas poderiam resolver no cartório. Separações e divórcios consensuais também poderiam ser resolvidas no cartório.

ConJur — A execução fiscal poderia ser administrativa?

Walter Nunes — Hoje, o Fisco apura administrativamente o débito fiscal, faz o lançamento, inscreve na dívida ativa e entra com uma ação na Justiça para cobrar a dívida. O juiz manda citar o cidadão. Se ele não pagar, o juiz manda penhorar os bens. O juiz é quem faz a execução. Na minha opinião, a administração deveria fazer o lançamento fiscal, a quantificação do valor e a identificação de quem é o responsável tributário, além de fazer a execução.

ConJur — E se o Fisco me executar indevidamente?

Walter Nunes — Aí você recorre ao Judiciário. Só a parte discutível deve ir para o Judiciário. O problema é encontrar os bens, mas isso pode ser feito administrativamente.

ConJur — Com muito mais facilidade.

Walter Nunes — Hoje, isso ocorre em relação à casa própria da Caixa Econômica Federal. Se estiver em débito e não tiver como pagar, a Caixa faz a execução extrajudicial. Se tiver alguma discussão, você recorre à Justiça. Essa prática diminui bastante o número de processos na Justiça Federal.

ConJur — Essa proposta faria parte de uma reforma infraconstitucional?

Walter Nunes — Isso. Mas a categoria já foi consultada e não endossou o encaminhamento da proposta. Pretendo fazer nova consulta aos juízes federais sobre o tema. Há também a proposta de informatização do processo. Foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e agora vai ao Plenário. É muito provável que saia este ano. O grande problema do Judiciário é a parte de comunicação entre os tribunais. Com a informatização, vamos usar a comunicação eletrônica para transmitir atos ou praticar atos processuais. Isso vai otimizar o sistema judiciário. Um único comando vai eliminar a tarefa de vários funcionários que davam andamento ao processo.

ConJur — O ministro aposentado Nelson Jobim falava que a Justiça é feita de vários departamentos que não se comunicam.

Walter Nunes — Um sistema único de troca de informações entre os tribunais pode resolver esse problema. O Judiciário Estadual é mais complicado porque tem mais ilhas. Mas se o sistema funcionar em um dos segmentos da magistratura já é um ganho imenso. No âmbito federal, já há condições de uniformizar o sistema. Temos de ter, também, uma Justiça eletrônica 24 horas.

ConJur — Isso daria mais celeridade à Justiça?

Walter Nunes — Muito se fala da morosidade e do anacronismo do Judiciário, mas muita gente usa o Judiciário para rolar a dívida, para protelar as decisões, por que sabe que vai perder. O problema não é só o réu. Muitas vezes o autor recorre à Justiça para que o processo não ande mesmo.


ConJur — Por que o juiz não usa o poder que tem de aplicar a litigância de má-fé?

Walter Nunes — Ela é muito aplicada, mas sabe quanto é a multa por litigância de má fé? É de 20% sobre o valor da causa. A punição deveria ser mais severa. Há também a questão dos recursos. Temos recursos demais. O sistema alimenta o recurso. Há de se resgatar o poder decisório do juiz de primeira instância. A decisão do juiz não pode ser o "nada" jurídico. Enquanto o ônus da demora do processo for só do autor, é claro que todo aquele que perder vai recorrer. Se não recorrer, ele vai ter cumprir o que tem na sentença. Então ele recorre.

ConJur — O que pode ser feito para combater o sistema de infinitos recursos?

Walter Nunes — A regra tem de ser que a sentença do juiz tem efeito imediato. Excepcionalmente pode ter efeito suspensivo. A regra atual é o efeito suspensivo da decisão. O juiz decide o caso dos sanguessugas, digamos. Eles não vão presos, têm a presunção de inocência. O juiz para condenar tem que vencer a resistência da dúvida para chegar na prova aproximada do real. Ele, diante do arcabouço probatório e contundente, chega à conclusão de condená-los. Se o cidadão não recorrer, vai ter de cumprir a pena que o juiz estabeleceu, se ele recorrer, ele não vai cumprir agora.

ConJur — Qual é o índice de reforma da decisão?

Walter Nunes — O índice de reforma na Justiça Federal é pequeno. Pouco mais de 20%. Mas essa modificação é pontual, questão de juros, questão de correção. Não é do direito em si, não é de mérito em si. Isso é uma estatística que tem que ser extremamente qualificada. É difícil.

ConJur — A Ajufe foi uma das patrocinadoras da implantação dos Juizados Especiais. Qual o significado desta iniciativa?

Walter Nunes — A concepção do Juizado Especial da Justiça Federal era uma visão extremamente moderna. Fizemos proposições que foram adotadas agora. Propusemos, por exemplo, que quando a tese já era rejeitada no mérito e fosse matéria repetitiva, o juiz, ao examinar a inicial, já poderia julgar improcedente. Outra proposta da Ajufe foi que os juizados fossem informatizados. O Juizado Especial Federal em São Paulo é todo informatizado. Não tem papel.

ConJur — Tem magistrado que é contra a informatização?

Walter Nunes — Têm aqueles que dizem que "parou a internet, parou a Justiça". Outros que pensam que o processo vai sumir na internet. Isso é besteira. É muito mais confiável. Está na lei do Juizado Especial que eles devem ser informatizados. Outra coisa boa dos juizados é que neles não tem execução de sentença.

ConJur — Temos dados, de 2004, do Conselho Nacional de Justiça que ilustram bem. A primeira instância da Justiça Federal recebeu 900 mil processos e a taxa de congestionamento foi de 84%. Os Juizados Especiais Federais receberam 1,6 milhão de processos e a taxa de congestionamento é de 50%. Ou seja, ele recebeu quase o dobro do número de processos da primeira instância. É por conta da execução?

Walter Nunes — Tem a ver com a execução. Você lembra da MP do Bem? Ela instituía o precatório nos Juizados Especiais. Por que o governo queria instituir o precatório?

ConJur — Para não pagar.

Walter Nunes — Isso. O Juizado Especial está rápido demais. É engraçado. O Executivo cria uma secretaria para a Reforma do Judiciário porque quer tornar o Judiciário mais célere. De 2002 até o primeiro semestre de 2006 o juizado já mandou pagar R$ 9,4 bilhões. Olha o universo de pessoas que foram atendidas, porque o máximo que uma pessoa recebe são 60 salários mínimos. Esse é o maior programa de transferência de renda do país.

ConJur — O que é fundamental para que a taxa de congestionamento dos juizados seja menor que na primeira instância?

Walter Nunes — Nos juizados, os prazos da Fazenda Pública não são privilegiados. A taxa de congestionamento da Justiça Federal tem que ser mais alta, porque o litigante mor lá é o Estado que tem prazos privilegiados para contestar.

ConJur — Tem um Projeto de Lei que acaba com os prazos privilegiados da Fazenda Pública.

Walter Nunes — Tem. Isso é um absurdo.

ConJur — Os juízes se ressentem pela emissão de súmulas ou de enunciados pela advocacia pública federal.

Walter Nunes — Não. Temos até um fórum para discutir as questões que afetam o Juizado Especial e a Previdência Social, chamado GTPrev. Procuramos fixar entendimento para que alguns assuntos sejam tratados administrativamente, para descongestionar os juizados. Também estamos conversando com a Caixa Econômica Federal. Procuramos editar súmulas para que não cheguem aos juizados questões que não têm necessidade. Estimamos que o poder público perde entre 70% e 80% das questões. O ministro Cesar Asfor Rocha disse uma vez que o problema da morosidade da Justiça vai ser resolvido no dia em que o Estado cumprir a lei.

ConJur — A insistência em causas que já se sabe o resultado.

Walter Nunes — É rolagem de dívida. Você sabe quanto é a dívida do Executivo brasileiro com precatório? Mais de R$ 61 bilhões. Basicamente de estados e municípios, já que a União é mais arejada com relação a pagamentos.

ConJur — Municípios mais do que estados?

Walter Nunes — O Federal não é tão grande, porque ele rola a dívida, recorre ao Judiciário, mesmo sabendo que vai perder. Ele usa todos os recursos, faz tudo para deixar para a administração seguinte. O prefeito ou o governador pega o orçamento e quer saber quanto tem de precatório. Daí ele diz: "Eu estou comprometendo o meu orçamento, o meu programa de governo para pagar a dívida dos outros? O que eu puder rolar de dívida eu rolo." O precatório é um absurdo. A primeira vez que ele apareceu no Brasil foi na Constituição de 34. Depois na de 37, a Polaca, foi para os estados e para os municípios. A Constituição de 88 queria acabar, mas não acabou. Tem que acabar com essa praga. Eu, como juiz, me sinto extremamente incomodado.

ConJur — Hoje há uma grande discussão sobre os limites para o juiz interpretar a lei de maneira criativa. O Supremo Tribunal Federal, tem revisto muitos paradigmas, o que tem sido muito positivo para a liberalidade na interpretação da lei. Como o juiz deve lidar com essa questão?

Walter Nunes — A criatividade, o ativismo judicial é uma mudança de paradigma no Direito. O problema é que convivemos com um positivismo normativo muito grande até a II Guerra Mundial. Começou no Iluminismo onde o grande porta-voz da sociedade era o Parlamento e o juiz, um mero aplicador da lei, “a boca da lei”. Toda a doutrina foi formada nesse sentido, que o juiz deveria ser o guardião da lei, interpretar a vontade do legislador. Entendo que o compromisso do juiz é com os direitos essenciais da pessoa humana. A Constituição de 1967 foi engendrada por três militares. Nela, a declaração dos direitos fundamentais vinha só no artigo 153, lá embaixo. Já na Constituição de 88, os direitos fundamentais vêm no começo, logo no artigo 5º. Com essa mudança de paradigma, o juiz primeiro enxerga os princípios e é com base neles que interpreta a legislação infraconstitucional. Os princípios deixaram de ter uma função subalterna no sistema jurídico e passaram a ter uma função hegemônica e determinante na interpretação e no alcance de todas as normas sub-constitucionais. Esse é um caminho sem volta. A não ser que o país rompa com a Democracia.

ConJur — O senhor diria que as normas no país têm avançado mais pelas mãos dos juízes, com a interpretação das leis, do que pelas mãos do legislador?

Walter Nunes — Não tenha dúvida. O legislador legisla muito mal, e é um problema. A questão do direito ao silêncio no Brasil, por exemplo. Teve juiz federal que só faltou escrever um tratado dizendo “olha, quem tem o direito é o preso, se não estiver preso, não tem o direito”. A questão da inviolabilidade da correspondência também é controversa na interpretação dos juízes.


ConJur — O interessante é que o e-mail ainda não está sendo visto como correspondência, está sendo visto como documento.

Walter Nunes — O problema é que existe quem interprete que correspondência é absoluta, que não pode ser violada. Isso nunca foi direito absoluto no Brasil. Tem um dispositivo na lei de execução penal que diz que o diretor de presídio pode abrir as cartas enviadas ou endereçadas ao presidiário. Faz tempo que o STF julgou esse dispositivo constitucional. Quando você é preso, condenado, não tem limitado só o seu direito a privacidade, mas também o direito de comunicação em geral, inclusive as cartas. Já pensou o diretor ter de pedir ao juiz a cada vez para interceptar carta do preso. A regra é que toda correspondência que entra no presídio pode ser examinada.

ConJur — Hoje em dia, é só ligar a televisão para você escutar a gravação de uma conversa telefônica. O senhor não acha que há um abuso dessa prática?

Walter Nunes — Sem dúvida. O jornalismo, nesse aspecto, está mais preocupado com sensacionalismo do que prestar um verdadeiro serviço. Temos casos em que são gravações clandestinas e mesmo assim são divulgadas. A lei que rege a gravação telefônica proíbe a divulgação do que foi gravado. É mais um desserviço do que um serviço.

ConJur — A Emenda Constitucional 45 [Reforma do Judiciário] serviu para que?

Walter Nunes — O Conselho Nacional de Justiça é um órgão de fundamental importância. A Resolução do Nepotismo foi muito importante. Porque tem lei para a Justiça Federal e do Trabalho, mas não tem para a Justiça estadual, para o Superior Tribunal de Justiça nem para o Supremo. Se o nepotismo não é adequado ao sistema republicano e ao princípio da moralidade, então ele também serve para o executivo, para o legislativo, nas três esferas de poder. Olha o alcance dessa decisão. O serviço público tem que ser acessível pelo critério de mérito, não pelo sangüíneo. Essa decisão diz muita coisa para o Brasil.

ConJur — Um promotor observou que a maioria dos dispositivos da EC 45 trata de assuntos de interesse dos juízes, do Ministério Público, dos advogados. A única medida voltada para o cidadão é aquela que garante o prazo razoável do processo. O senhor diria que a Justiça está voltada para ela mesma?

Walter Nunes — Se não tivermos um Judiciário democrático interna e externamente, não teremos um Judiciário independente. A EC 45 trata de problemas fundamentais para a magistratura, que vão ter influência sobre toda a população. A questão da progressão da carreira, por exemplo. Quando um juiz entra na carreira pensa no que será preciso para se promover. Se for por merecimento, ele vai se preocupar se as suas sentenças vão agradar a cúpula do tribunal e não os verdadeiros interessados.

ConJur — Ser juiz é seguir uma profissão de risco. O que é feito no Brail para dar proteção aos juízes?

Walter Nunes — O Brasil tem uma lei de proteção à testemunha, mas não há nada a respeito da segurança do juiz. Constituímos uma comissão para discutir o assunto e propor mudanças. O ideal é que a execução penal seja em juízo coletivo, formado por três ou cinco juízes. Assim, se desconcentra a pressão que há quando um só juiz é responsável. Em São Paulo, uma juíza sozinha decidiu sobre o pedido de mais de 700 presos para sair da prisão no dia dos pais. Ela sofreu pressão excessiva. Temos juízes em qualidade e quantidade suficiente para desconcentrar essas decisões.

ConJur — Quais as medidas administrativas que a Ajufe propõe?

Walter Nunes — O Poder Judiciário Federal tem agentes de segurança que não têm treinamento para dar segurança pessoal para o juiz. Não há técnica ou orientação sobre como deve proteger o juiz, especialmente aqueles que estão em situação de risco. A proposta é profissionalizar a função de agente de segurança do Judiciário e prepará-lo para dar assistência ao juiz. Hoje, quando o juiz se sente ameaçado, não sabe a quem recorrer. Deveria haver um corpo funcional de inteligência dentro do Judiciário para cuidar disso.

ConJur — O juiz tem algum tipo de treinamento?

Walter Nunes — Há um programa de treinamento dado por agentes da Polícia Federal. Eles orientam o juiz sobre como proceder em questões de rotina e dizem que tipo de medidas de segurança deve adotar. Em visita à Superintendência da Polícia Federal de São Paulo, pedimos um canal de comunicação direto entre o juiz e a Polícia. Uma espécie de hot line 24 horas.

ConJur — O sistema de juiz sem rosto não é uma alternativa para a proteção deles?

Walter Nunes — Eu sou contra a figura do juiz sem rosto. Nós temos um sistema democrático. O cidadão tem o direito de saber por quem está sendo julgado. É uma garantia dele. Eu defendo o juízo coletivo. Há algum tempo li nos jornais que as organizações criminosas é que estão adotando o sistema do comandante sem rosto.

ConJur — A lei de proteção à testemunha funciona na prática? O Brasil tem estrutura para que ela seja cumprida?

Walter Nunes — O primeiro sistema de proteção à testemunha foi criado no Rio de Janeiro com o governo Brizola. Mas a Polícia era quem protegia as testemunhas. Às vezes a agressão vem da própria Polícia. A proteção deve ser feita por um órgão governamental, mas não pode estar ligado a nenhum segmento.

ConJur — Exceto nesses casos de agressão pela própria Polícia, a lei consegue proteger a testemunha?

Walter Nunes — A lei não só protege a testemunha como a família também é amparada pelo Estado. Há um fundo de amparo para essas pessoas, que têm assistência quando precisam mudar de cidade e se estabelecer profissionalmente em outro mercado. Hoje, tem cerca de 100 pessoas nesta situação. Gente que precisou mudar de cidade, de atividade, de emprego e que o Estado está bancando.

ConJur — Como está a situação do sistema prisional?

Walter Nunes — O problema é a falta de responsabilidade dos governantes. É uma tragédia mais do que anunciada. Temos prisões que são depósitos de presos. O país não tem projeto arquitetônico para os presídios nem modelo de gestão administrativa adequado para fazer com que os presos fiquem fora da criminalidade e se recuperem. São presídios anacrônicos, contra todas as recomendações, especialmente da ONU, de que nenhum presídio pode ter mais do que 300 presos. Quando há mais pessoas do que a capacidade permite, perde-se o controle. Aí, quem comanda e gerencia o presídio são os presos.

ConJur — Quem chega deve seguir as regras e ordens dos mais antigos…

Walter Nunes — Quem chega não quer ficar isolado, tem que ir para um grupo. E aí os mais antigos vão definir se você vai ser uma pessoa do baixo clero ou do alto clero. Se for do baixo clero vai varrer, lavar, sofrer abusos sexuais. Ele é agredido o tempo todo. Durante três anos, como professor universitário, fiz um trabalho dentro dos presídios. O diretor disse: “Olha, a droga tem que entrar, se droga não entrar, isso aqui vai explodir, porque é uma forma de acalmá-los”. Isso não pode existir. O presídio, além de fracassar na missão de tirar os criminosos de circulação, acabou servindo para organizar a criminalidade.

ConJur — O governo federal demorou a construir os presídios federais e isolar os comandantes dos criminosos.

Walter Nunes — A Lei de Execução Penal, de 1984, já previa a construção deles. Em 1993, a Câmara dos Deputados fez um trabalho denso e mostrou que o sistema já era caótico. O déficit de lugares, à época, girava em torno de 30 mil. Hoje, temos um déficit de mais de 90 mil vagas. O ideal era a criação de mini-presídios para se ter controle dessa população. Para 2006, a previsão de recolhimento de recursos para o sistema prisional é de R$ 58 milhões. Há muitos anos o governo recolhe essa massa de recursos e só agora tivemos a construção do primeiro presídio federal, em Catanduvas, no Paraná.

ConJur — Por uma lado, existem os direitos individuais, uma causa nobre que cresceu e que foi um grande avanço para a humanidade. Por outro lado, temos o crime organizado que dispõe de recursos humanos, econômicos e tecnológicos e nenhum tipo de limitação. Até onde deve ir o respeito aos direitos individuais e até onde pode ir a sociedade ou os chamados homens de bem no combate ao crime organizado?

Walter Nunes — Não gosto da expressão direitos individuais. Eles são coletivos, é um patrimônio histórico. Também não gosto da questão direitos fundamentais ou combate à criminalidade. Devemos ser rigorosos no combate à alta criminalidade pautados pelos valores dos direitos fundamentais. Acho um exagero entender que o RDD [Regime Disciplinar Diferenciado] é inconstitucional. O RDD é um antídoto amargo, assim como a prisão, mas compreendo os princípios e valores constitucionais sedimentados no nosso sistema, sem dificuldade de aplicar o RDD. O que não se pode admitir são as condições sub-humanas da grande maioria dos presídios brasileiros. Isso é um absurdo. Os abusos sexuais, o desrespeito, a tortura física e psicológica. O ser humano merece ser tratado como um ser humano antes de tudo, independente do crime que praticou.

ConJur — O que achou da divulgação do manifesto do PCC pela TV Globo?

Walter Nunes — Foi um erro, nas condições em que foi feita a divulgação. Negociar é uma coisa, ceder a todas as pressões é outra diferente. Acho que a Globo deveria ter proposto fazer uma série de reportagens sobre o assunto, negociado nesse sentido, mas não gerar as imagens. O problema é o precedente. O discurso do PCC é o de que essa foi a única forma de divulgar o que acontece com os presidiários. Será que é a única forma? Amanhã quem vai ser seqüestrado? Pode ser um ministro de Estado, um juiz, um promotor de Justiça.

ConJur — No caso concreto, ia negociar com quem?

Walter Nunes — Ora, com quem estava ligando, tinha alguém de contato com eles. Todo seqüestro tem alguém de contato. Eu sei do problema do tempo, da urgência do caso, mas não houve negociação. Uma pessoa disse “nós queremos assim, assado”. E foi feito. O pior, foi feito e ele não cumpriu. Era para divulgar, a Globo divulgou. E não devolveram o repórter, exigiram mais que transmitissem no Fantástico.

ConJur — E a reestruturação da carreira?

Walter Nunes — É preciso retomar o plano de carreira da magistratura. O tempo de serviço foi desprezado com o teto remuneratório, está desestimulando a carreira. A valoração do tempo de serviço faz parte da história e da cultura da estrutura do Judiciário. Estamos discutindo também a questão dos vencimentos. O teto remuneratório é muito importante, fundamental. Tem ainda a questão de moralização no serviço público. Moralização e transparência. Hoje todo mundo sabe que o ministro do Supremo ganha R$ 25 mil. Pode até julgar indevido, mas todo mundo sabe. Precisamos de um critério de revisão ou reajuste permanente e anual desse teto, sob pena de engessar a remuneração. Não só do Judiciário, mas de todo o serviço público brasileiro federal, estadual e municipal.

ConJur — Em especial as carreiras estratégicas.

Walter Nunes — Exatamente. Tem outra questão, que veio com a Emenda 45. O juiz entra através de concurso e depois tem que ser aprovado na escola da magistratura para que receba o vitaliciamento. O problema da promoção por merecimento é que também passa por avaliações em cursos feitos pela escola de magistratura. É preciso estabelecer critério objetivo para o recrutamento por merecimento para segunda instância ou para progressão na carreira. Isso é extremamente importante para evitar que o juiz não esteja preocupado em obter simpatias para progredir na carreira. Na hora que você tem critérios objetivos, diminui isso. A escola é um dos instrumentos, mas não o único.

Versão atualizada: na entrevista à ConJur, ao falar sobre a execução fiscal administrativa, o juiz Walter Nunes exprimiu sua opinião pessoal e não a posição oficial da Ajufe.

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