Direito de parar

Juiz federal do DF legitima direito de greve de servidor público

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27 de agosto de 2006, 13h18

O exercício do direito de greve, assegurado constitucionalmente, ainda que dependa de disciplinamento por legislação infraconstitucional, não pode ser obstaculizado em virtude da inércia dos poderes competentes para deflagrar o processo legislativo.

Com este entendimento, o juiz Hamilton de Sá Dantas, da 21ª Vara Federal do Distrito Federal reconheceu o direito de greve de servidores públicos e impediu o Incra, por meio de liminar, de descontar os dias parados de trabalhadores em greve do serviço público federal do Ceará. A decisão é um avanço da Justiça brasileira no sentido de suprir a omissão do Congresso que, depois de 13 anos, ainda não regulamentou um direito previsto na Constituição de 1988.

No pedido à Justiça Federal, o Sintsef — Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Federal no Estado do Ceará alegou a legalidade da greve no serviço público. Afirmou, ainda, que a greve não constitui mera falta ao serviço e que não há lei dispondo sobre a punição do servidor em greve.

De acordo com Dantas, “o exercício do direito de greve pelos servidores públicos encontra-se obstaculizado, tão-somente, pela ausência de iniciativa do legislador em disciplinar o instituto”.

O juiz lembra ainda que a Constituição de 88 garantiu o exercício do direito de greve aos trabalhadores. “Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. Para Dantas, com esse dispositivo, o legislador constituinte objetivava universalizar o direito de greve a todas as classes de trabalhadores, abrangendo, assim, tanto os da iniciativa privada quanto os vinculados à Administração Pública, em suas diversas esferas de poder.

“Porquanto situou o artigo sob comento no rol dos direitos sociais, os quais, por sua vez, inserem-se no Título relativo aos Direitos e Garantias Fundamentais, extensivos a todos os brasileiros, sem qualquer distinção, por força do princípio da igualdade (Constituição Federal, art. 5º, caput)”, argumenta o juiz sobre as intenções do legislador constituinte.

Leia a íntegra da liminar

MANDADO DE SEGURANÇA INDIVIDUAL

DECISÃO Nº 162 A /2006

PROCESSO Nº 2006.34.00.020751-8

CLASSE 2200

IMPETRANTE: SINDICATO DOS TRABALHADORES DO SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL NO ESTADO DO CEARÁ – SINTSEF/CE

ADVOGADO: Dr. Ubirajara Arrais de Azevedo

IMPETRADO: PRESIDENTE DO INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA – INCRA

D E C I S Ã O

Cuida-se de pedido de liminar em mandado de segurança impetrado pelo SINDICATO DOS TRABALHADORES NO SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL NO ESTADO DO CEARÁ – SINTSEF contra ato do PRESIDENTE DO INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA – INCRA, objetivando que a autoridade coatora se abstenha de efetuar o desconto de dias parados e de realizar o respectivo registro nos assentamentos funcionais de seus filiados.

O impetrante sustenta a legalidade da greve no serviço público e argúi a inconstitucionalidade do Decreto n. 1.480/95. Além disso, aduz que a greve não constitui mera falta ao serviço e que não há lei dispondo sobre a punição do servidor em greve.

Em cumprimento ao art. 2º da Lei 8.437/92, o INCRA se manifestou às fls. 368/372.

É o relatório.

Decido.

O cerne da questão submetida a este Juízo refere-se à interpretação e ao alcance da disposição constante do art. 37, inciso VII, da Constituição Federal de 1988 – com a redação conferida pela Emenda Constitucional n.º 19/98 –, que estatui:

Art. 37 A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(…)

VII – o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica.

No entanto, como é de conhecimento geral, o legislador ordinário, até o presente momento, absteve-se de pôr em prática o supracitado mandamento constitucional, editando a lei regulamentadora do exercício desse direito tão relevante, inclusive como meio legitimador da democracia participativa.

Pode-se afirmar, assim, que, não obstante a existência de ampla garantia, consubstanciada no dispositivo constitucional sob comento, o exercício do direito de greve pelos servidores públicos encontra-se obstaculizado, tão-somente, pela ausência de iniciativa do legislador em disciplinar o instituto, consoante já se manifestou o Supremo Tribunal Federal em julgado a seguir transcrito:

Mandado de Injunção. Direito de greve. Constituição, art. 37, VII.

(…)

4. Reconhecimento de mora do Congresso Nacional, quanto à elaboração da lei complementar a que se refere o art. 37, VII, da Constituição. Comunicação ao Congresso Nacional e ao Presidente da República (MI 438/GO, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA).

Ressalto, entretanto, que o direito de greve, consoante a orientação esposada pelo ilustre constitucionalista José Afonso da Silva, à qual me filio, “não é um simples direito fundamental dos trabalhadores, mas um direito fundamental de natureza instrumental e desse modo se insere no conceito de garantia constitucional, porque funciona como meio posto pela Constituição à disposição dos trabalhadores, (…) como um recurso de última instância para a concretização de seus direitos e interesses” (in Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, 1990, p. 307).

Tenho, assim, que o seu exercício, assegurado constitucionalmente, ainda que dependa de disciplinamento por intermédio de legislação infraconstitucional, não pode ser obstaculizado em virtude da inércia dos poderes competentes para deflagrar o processo legislativo.

Vivemos em um Estado Democrático de Direito destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos, que prima, como fundamento de sua existência, pela cidadania, dignidade da pessoa humana e pelos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e que tem, ainda, como objetivos fundamentais, a garantia do desenvolvimento nacional e a erradicação da pobreza. Mas como pode implementar tais políticas e cumprir os mencionados princípios constitucionais um Estado de Direito que, reconhecendo a existência de um direito assegurado pela Carta de 1988, erige óbices à participação de servidores públicos em movimentos reivindicatórios de melhores salários e condições de trabalho ante a omissão do próprio legislador em editar lei específica?

Observo, por outro lado, que, a par das considerações ora expendidas, a pretensão deduzida nos presentes autos afigura-se juridicamente relevante, se analisada sob outro fundamento.

Com efeito, a Constituição da República, em seu Título II, reservado aos Direitos e Garantias Fundamentais, garantiu o exercício do direito de greve aos trabalhadores, nos termos seguintes:

Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.

A meu ver, o legislador constituinte originário objetivou, por esse dispositivo, universalizar o direito de greve a todas as classes de trabalhadores, abrangendo, assim, tanto os da iniciativa privada quanto os vinculados à Administração Pública, em suas diversas esferas de poder, porquanto situou o artigo sob comento no rol dos direitos sociais, os quais, por sua vez, inserem-se no Título relativo aos Direitos e Garantias Fundamentais, extensivos a todos os brasileiros, sem qualquer distinção, por força do princípio da igualdade (Constituição Federal, art. 5º, caput).

Portanto, em homenagem ao princípio da unidade da Constituição, considero que a multicitada norma do art. 37, inciso VII, deve ser interpretada em conjunto com o disposto nos arts. 5º e 9º do texto constitucional, reconhecendo-se ao servidor público a legitimidade do exercício do direito de greve.

Considero, assim, não obstante a existência de precedentes jurisprudenciais em sentido contrário, irrepreensível a fundamentação adotada pelo egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no julgamento do AG n.º 2002.01.00.034650-0/BA, da lavra do ilustre Desembargador Federal TOURINHO NETO, na qual restou assentado, verbis:

PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. LIMINAR. SERVIDOR PÚBLICO. GREVE. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 37, VII.

1. A Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, garantiu o direito de greve ao servidor público, condicionando, contudo, seu exercício aos termos e limites definidos em lei específica. A Constituição de 1988, por conseguinte, aboliu a proibição anterior de greve nos serviços públicos, passando a permiti-la. Treze anos, no entanto, são passados e a lei específica não é editada. A vontade do constituinte está sendo desrespeitada, e nenhuma providência é tomada. A Constituição permitiu a greve. O servidor pode exercitar esse direito, ainda que não haja lei específica regulamentando-o. Enquanto essa lei não vier, é de aplicar-se a Lei 7.783, de 1989 – a Lei de Greve. O direito de greve é que não pode deixar de ser exercitado por desídia, uma desídia dolosa, do legislador infraconstitucional, que, na hipótese, está se pondo acima do legislador constituinte.

2. A eficácia da norma constitucional não pode ficar a depender de uma norma hierarquicamente inferior que nunca é editada.

Por derradeiro, ressalto que esse entendimento é corroborado por recente voto do eminente Ministro Gilmar Ferreira Mendes, no Mandado de Injunção n. 670, que assim ponderou:

No caso do direito de greve dos servidores públicos, afigura-se inegável o conflito existente entre as necessidades mínimas de legislação para o exercício do direito de greve dos servidores públicos (CF, art. 9°, caput c/c art. 37, VII), de um lado, com o direito a serviços públicos adequados e prestados de forma contínua (CF, art. 9°, §1°), de outro. Evidentemente, não se outorga ao legislador qualquer poder discricionário quanto à edição ou não da lei disciplinadora do direito de greve. O legislador poderá adotar um modelo mais ou menos rígido, mais ou menos restritivo do direito de greve no âmbito do serviço público, mas não poderá deixar de reconhecer o direito previamente definido na Constituição. Identifica-se, pois, aqui a necessidade de uma solução obrigatória da perspectiva constitucional, uma vez que ao legislador não é dado escolher se concede ou não o direito de greve, podendo tão-somente dispor sobre a adequada configuração da sua disciplina.

Diante do exposto, presentes os pressupostos processuais da urgência no atendimento da prestação jurisdicional e da plausibilidade do direito invocado, DEFIRO o provimento LIMINAR, para determinar à autoridade impetrada que se abstenha de adotar qualquer sanção administrativa contra os filiados do impetrante, em razão da greve, inclusive por meio de cortes de pontos e salários até nova decisão judicial.

Notifique-se o Impetrado.

Após informações ou decurso do respectivo prazo, remetam-se os autos ao Ministério Público Federal.

Ao final, retornem os autos conclusos para sentença.

Intimem-se.

Brasília, 31 de julho de 2006.

HAMILTON DE SÁ DANTAS

JUIZ FEDERAL TITULAR DA 21ª VARA

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