Lazer trabalhoso

Legislação deve se adaptar ao trabalho feito em casa

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26 de agosto de 2006, 7h00

Eu estava jantando na casa de minha sogra quando meu cunhado interrompeu sua refeição para atender o celular. Enquanto toda a família continuou saboreando uma pizza de calabresa, meu cunhado ficou quase meia hora passando instruções a colegas de trabalho, naquela linguagem enigmática dos profissionais de computação. Ele trabalha para uma empresa de energia elétrica, que obviamente não pode parar. De quando em quando, fica de plantão em casa, com o celular da empresa a tiracolo e a pizza fria no prato.

A revolução tecnológica da virada do século está mudando nosso modo de vida e as relações de trabalho também estão sofrendo tremendo impacto. Os inventos do celular e da internet permitem levar a empresa para dentro da casa do empregado, abalando tradicionais conceitos jurídicos trabalhistas, como o da subordinação, da jornada de trabalho e do repouso do empregado.

A possibilidade de fazer o empregado trabalhar em casa ou fora da sede da empresa é claramente uma grande vantagem para o empregador. Reduz custos com as instalações físicas, energia e manutenção, além dos encargos trabalhistas propriamente ditos, como horas extras, vale-transporte e alimentação para o empregado. Além de tudo, a dispersão dos trabalhadores para longe da sede da empresa refreia o sentimento de classe e dificulta agitações sindicais.

É por isto também que o trabalho em domicílio ou tele-trabalho, facilitado pelas novas tecnologias de conectividade plena, vem sendo apropriado pelas empresas em processos de terceirização. Nos Estados Unidos, há companhias aéreas que não têm mais central de atendimento ao cliente, pois o trabalho é todo feito por donas-de-casa munidas de um computador e um telefone.

Neste processo, portanto, o empregado acaba assumindo alguns ônus que eram tradicionalmente do empregador. Mas o efeito mais deletério, no entanto, é o do vínculo constante, permanente, com o ambiente de trabalho. Alguns juristas já começam a perceber esta nova forma de trabalho como um desafio diferente para os direitos sociais do trabalhador. Já se fala mesmo num “direito à desconexão”, isto é, à preservação do ambiente domiciliar contra as novas técnicas invasivas que perturbam a vida íntima, o convívio familiar, o repouso e o lazer do trabalhador.

O direito está sempre correndo atrás dos fatos e a nossa legislação trabalhista ainda não cuidou do tema com a devida atenção. Mas os novos conflitos resultantes do tele-trabalho já têm chegado aos tribunais. Os juízes têm se deparado sobretudo com reivindicações relativas à forma de remuneração do tempo em que o empregado permanece em casa, aguardando ordens pelo celular ou trabalhando de fato diante do computador.

Para resolver este tipo de caso, alguns juízes têm aplicado analogicamente os dispositivos da CLT reguladores do trabalho dos ferroviários, que antigamente moravam em vilas próximas à estação e iam trabalhar ao ouvir o apito do trem. É o chamado “regime de sobreaviso”, no qual a hora em que o empregado permanece em casa, “de plantão”, é paga à razão de um terço da hora normal (artigo 224, parágrafo 2º, da CLT).

O TST, porém, tem sido bastante reticente e conservador ao enfrentar o tema, como podemos ver nesta decisão: “O uso de bip, telefone celular, lap top, ou terminal de computador não caracteriza tempo à disposição do empregador, descabida a aplicação analógica das disposições legais relativas ao sobreaviso dos ferroviários, que constituem profissão regulamentada, há dezenas de anos, em razão de suas especificidades. Cabe à entidade sindical onde tais formas de comunicação são mais usuais fixar em negociação coletiva os parâmetros respectivos” (TST, RR 163.233/95.0).

Pode-se argumentar que é muito melhor para o empregado trabalhar em casa do que cumprir plantão na empresa. Não há stress com o trânsito, diminuem os riscos de acidente de trabalho, o horário é flexível e pode-se ficar de olho nas crianças. Mas o limite entre o lado bom e o lado ruim do tele-trabalho pode ser tênue. As pressões do chefe são levadas para casa, o descanso e o lazer são segmentados e as crianças, paradoxalmente, podem sentir falta de atenção.

Os institutos mais importantes do direito do trabalho foram concebidos no século XIX para uma realidade fabril então dominante, muito diferente das novas formas laborais mais flexíveis. Mas isto não significa que o trabalho subordinado deixará de existir, mesmo que o patrão esteja na empresa e o empregado em casa. As normas trabalhistas de proteção ao trabalhador em domicílio devem ser adaptadas, não abolidas. Afinal, é preciso reconhecer que os malefícios do tele-trabalho podem ser muito piores do que uma fatia fria de pizza.

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