Consumo e cidadania

Entrevista: Marilena Lazzarini, coordenadora do Idec

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20 de agosto de 2006, 7h00

Lazzarini - por SpaccaSer consumidor é ser cidadão. Esta constatação talvez seja uma das melhores lições aprendidas nos 15 anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor. E a satisfação só não é maior, porque, hoje, o brasileiro é mais consumidor do que cidadão. Ele aprendeu a defender seus direitos junto às empresas que lhe fornecem os produtos de consumo. Mas ainda vacila na ação política para defender seus direitos junto ao Estado. Por isso, mesmo com todo avanço de cidadania, nossos serviços públicos continuam precários.

A avaliação é da coordenadora institucional do Idec, Marilena Lazzarini, 58 anos, engenheira agrônoma por formação e defensora dos consumidores por opção. Desde 1976, quando ajudou a escrever o decreto que criou o Procon em São Paulo, ela não tem feito outra coisa. Em 1983, assumiu a coordenação do Procon e, em 1987, foi uma das criadoras do Idec — Instituto de Defesa do Consumidor. Em toda sua ação, Marilena sempre esteve mais ligada em cidadania do que em consumismo.

Hoje, Marilena é coordenadora institucional da organização não governamental, que tem como objetivo trabalhar na informação dos consumidores e na defesa dos seus direitos. São cerca de 15 mil associados que mantêm a instituição em pé, já que patrocínios e participação de empresas não são aceitos em nome da independência. Marilena também é presidente da Consumers Internacional, federação que congrega mais de 250 associações de consumidores do mundo.

A engenheira é uma das grandes defensoras do Código de Defesa do Consumidor. Não só aposta na sua atualidade, embora com a modernização do consumo nesses 15 anos, como defende a sua preservação. “O nosso posicionamento é o de que não se mexe no código. Pode ser que falte algumas coisas, mas a lei é, sim, atual.”

Para ela, foi o Código o responsável por mudar a visão das empresas sobre o consumidor. A mudança é visível nos rótulos dos produtos. “Lamento não ter guardado produtos do ano de 1989, por exemplo, para comparar com o rótulo dos produtos de agora. Houve um grande avanço na informação dada ao cliente.”

Marilena credita os problemas das relações de consumo que existem no Brasil à não aplicação efetiva da lei. A falta de ligação entre os órgãos públicos e privados de defesa do consumidor, para ela, é uma das grandes responsáveis pelo elevado números de ações consumeristas na Justiça. São as situações crônicas, como os problemas com telefonia e planos de saúde, que não são resolvidos como deveriam. “As questões principais do consumo têm de ser resolvidas de uma tacada só, e não no varejo.”

Em entrevista à Consultor Jurídico, Marilena Lazzarini falou da necessidade da educação para transformar as crianças de hoje em consumidores conscientes no amanhã, inclusive da necessidade de valorização do consumo sustentável. Participaram também da entrevista os jornalistas Lilian Matsuura e Rodrigo Haidar.

Leia a entrevista

ConJur — O Código de Defesa do Consumidor está completando 15 anos. Durante sua vigência, a sociedade se modernizou, o consumo se ampliou, chegaram novidades como a Internet. O CDC ainda é atual?

Marilena Lazzarini — Alguns apontam áreas que precisam ser aperfeiçoadas por causa do surgimento do comércio eletrônico. Mas o nosso posicionamento é que não se mexe no Código. Pode ser que falte alguma coisa nele, mas a lei é, sim, atual. Temos de brigar hoje para o Código ser preservado. Aliás, é justamente isso que estamos propondo como primeiro compromisso dos candidatos à Presidência da República.

ConJur — E se compararmos nosso Código com as leis do consumidor de outros países?

Marilena Lazzarini — Varia muito de país para país. Na Europa, por exemplo, o consumidor é mais protegido do que aqui, embora não exista o instituto da ação coletiva, como aqui. Uma coisa é existir a lei e outra é existir a lei sendo efetivamente aplicada. Na América Latina, muitos países fizeram igual ao Brasil e criaram uma única legislação para tratar de todos os aspectos da defesa do consumidor. Com tudo isso, eu ainda acho que a lei brasileira é uma das melhores. Foi num momento de conjunção astral, com o país se abrindo para o comércio, que o Código pôde ser aprovado. Duvido que ele seria aprovado hoje no Congresso.

ConJur — O poder do cidadão de reclamar contra os serviços oferecidos pelo Estado é ainda menor do que o do cliente perante a empresa. Por que não aplicar o Código de Defesa do Consumidor nas relações do cidadão com o Estado?

Marilena Lazzarini — A lei se aplica apenas aos serviços concedidos, como telefone, água e luz. Na educação e saúde públicas, por exemplo, não. Nestes casos, teria de ter um código de defesa do eleitor ou do contribuinte, mas eu acho que isso é uma questão de evolução da cidadania. Esse descompasso na relação mostra que o cidadão é mais consumidor do que cidadão mesmo. Os políticos eleitos não se importam com a opinião do cidadão e este não sabe se mobilizar efetivamente. Com todos esses escândalos no governo que ocorreram, o que mais me assusta é que não vimos uma mobilização que corresponda ao cenário. A sociedade está estática. Essa anestesia geral é preocupante. Por isso é que as escolas têm de trabalhar com os alunos a questão da cidadania. As pessoas não podem, cada vez mais, se alienar da política. Tem político sério e temos de valorizá-los. Estamos em um momento delicado, mas acredito que faça parte do processo de amadurecimento da democracia.


ConJur — No Brasil, falta a educação para a cidadania?

Marilena Lazzarini — Nos últimos 40 anos, a mudança de valores foi brutal. As pessoas pararam de desejar objetos dos vizinhos para querer aquilo que é mostrado na televisão. Hoje, o apelo ao consumo é avassalador, inclusive sobre as crianças. Por isso, acho importante ter nas escolas formação adequada até para que as crianças ajudem seus pais a mudar. As questões de consumo e cidadania podem ser trabalhadas com as disciplinas escolares. Taxa de juros, por exemplo, pode ser discutida durante uma aula de matemática. Se a criança aprender, nunca vai querer comprar alguma coisa a prazo. A criança também tem de saber decodificar as publicidades.

ConJur — Existe diferença entre o consumidor brasileiro e o da comunidade européia?

Marilena Lazzarini — A sensação que eu tenho é de que, lá, eles não têm problemas crônicos como nós temos aqui. As questões lá são tratadas na esfera das políticas públicas e existe uma maturidade muito maior das autoridades, das organizações de consumidores e dos órgãos públicos. No Brasil, precisamos também criar um espaço para tratar dos nossos problemas crônicos: plano de saúde, telefonia, entre outros. Lá, eles não têm produtos no mercado considerados inseguros. De todos os produtos testados pelo Idec, cerca de 25% têm problema de segurança que pode causar um acidente e afetar a vida do consumidor. Lá, a norma técnica de fabricação dos produtos é o piso. Aqui, é o teto.

ConJur — De que forma organizações como o Idec podem ajudar a melhorar esse quadro?

Marilena Lazzarini — Quando nós fomos criados, o Idec tinha uma amplitude maior nas suas atribuições. Trabalhávamos com consumidor e algumas questões de cidadania. Depois de um tempo, focamos no tema consumidor, que já é bastante amplo e a demanda, grande. Mas trabalhamos o consumidor dentro dessa visão cidadã. Temos, por exemplo, um guia que chama “O SUS pode ser o seu melhor plano de saúde”. Se as pessoas lutarem como cidadãs, podem melhorar o serviço. É essa idéia que está por trás. O serviço público de saúde não é um presente do governo. O cidadão paga por isso. O Idec trabalha nestas questões, mas não podemos abrir muito o leque. O ideal seria que existissem vários Idecs. Visitei uma ONG nos Estados Unidos que trabalha com o controle dos deputados do Congresso. A mesma avaliação que o Idec faz com os produtos, eles fazem com os deputados, para o eleitor saber o que seu candidato está fazendo.

ConJur — Como o Idec atua na defesa do consumidor?

Marilena Lazzarini — Temos feito várias ações civis públicas, algumas em parceria com o Ministério Público e com o Procon. Essas ações beneficiam toda a sociedade, mas o Idec só faz a execução de seus associados. Temos também parceria com o Inmetro, além de outras instituições públicas e organizações não governamentais. Temos cerca de 15 mil associados que têm acesso a orientações quando têm problemas e dúvidas. O Idec não faz a intermediação da reclamação, mas orienta o associado. Nossa visão não se restringe ao espaço de mercado. O consumidor responsável tem de ter uma atitude crítica na escolha de produtos e levar em consideração questões como a preservação do meio ambiente. Não basta ter o código na mão. O consumidor tem de ir além. A missão do Idec está mais voltada para a educação.

ConJur — Quem são os associados do Idec?

Marilena Lazzarini — São pessoas físicas. Empresas não podem se associar porque a organização tem de ter total independência. O associado paga uma contribuição e é disso que o Idec sobrevive. Acho importante ressaltar que não é só o associado que é beneficiado pelo Idec. Se fosse assim, ele não teria porque existir. A maior parte da população nunca terá acesso ao Idec porque não pode pagar. Temos também alguns projetos específicos, como um guia que fizemos, em 2000, junto com o Ministério do Meio Ambiente, sobre o consumo sustentável, aquele que causa o menor impacto ao meio ambiente. É um guia para capacitar professores para que eles trabalharem essa questão em sala de aula. Acredito que o consumo sustentável faça parte da educação para o consumo.

ConJur — As pessoas hoje se preocupam mais com isso?

Marilena Lazzarini — Começa a nascer uma preocupação com a questão ambiental, mas ela ainda não é ligada ao consumo. As pessoas estão preocupadas com o meio ambiente, mas não relacionam os problemas ambientais ao comportamento delas como consumidoras. Não sabem que poderiam, por exemplo, contribuir gerando menos lixo para não entupir os lixos de produtos tóxicos. Poderiam economizar água e energia. É muito difícil mudar o comportamento de pessoas adultas, por isso que insisto no ensinamento na escola.


ConJur — Como é o trabalho do Idec junto às empresas?

Marilena Lazzarini — Trabalhamos diretamente na questão da responsabilidade social, que é complexa, pois leva em conta o comportamento da empresa na relação com o consumidor, com o meio ambiente, com os trabalhadores e com a comunidade.

ConJur — Como é viver no Brasil depois da criação do Código de Defesa do Consumidor?

Marilena Lazzarini — O país se desenvolveu muito em termos de cidadania. O Código entrou em vigor num momento em que a política do país tinha uma agitação muito grande [março de 1991]. A lei foi discutida na imprensa, em seminários. Essa divulgação ampla foi importante porque permitiu que as pessoas soubessem que, a partir de então, ganharam direitos e, por meio de associações do consumidor e do Procon, passaram a praticar esses direitos. Para mim, o Direito do Consumidor é a base da escalada para a cidadania.

ConJur — O contexto político influenciou na aceitação do Código?

Marilena Lazzarini — O Código foi aprovado justamente quando o país começava a entrar numa política mais liberal, de menor influência do governo na economia. Neste contexto, ficou difícil fazer com que os governos dos estados assumissem o Código como uma política pública importante. Apesar de a legislação estabelecer um sistema nacional de defesa do consumidor, uma rede que articule os diferentes órgãos públicos e associações privadas, isso ainda não ocorreu. O fato é que não houve o direcionamento de recursos dos governos. O conhecimento dos seus diretos por parte dos consumidores ainda hoje é limitado pela falta da efetiva implementação do Código pelos governos. Felizmente, São Paulo já tinha o seu Procon desde 1976. Alguns estados criaram os seus logo depois da abertura democrática. Mas existe uma precariedade ainda muito grande nesta estrutura de organismos públicos.

ConJur — As associações privadas não suprem essas carências?

Marilena Lazzarini — As associações, como o próprio Idec, têm mais liberdade para agir. Além de atender milhares de reclamações por ano, o Procon tem de fazer cumprir o Código do Consumidor e atuar na parte administrativa, aplicando multas quando constata irregularidades. Já as entidades privadas têm liberdade para definir a sua agenda. Elas não têm papel de fiscalização, mas procuram educar, informar e também defender o consumidor por meio de ações judiciais. No entanto, sofrem com o baixo orçamento e ainda não existe uma percepção exata da importância destas associações civis. Não existe nenhuma política pública para apoiá-las. Na Europa, por exemplo, a maioria dos países tem organizações não governamentais de consumidores porque isso foi objeto de política pública. Quando foi criada a União Européia, uma das questões para a construção da cidadania européia era a educação para o consumo. Houve um investimento nessa área.

ConJur — Falta um órgão público que dialogue com as associações de defesa do consumidor, é isso?

Marilena Lazzarini — É o que o Código prevê: um sistema nacional. Os Procons estão reunidos de uma forma mais ou menos sistemática, mas as associações privadas não. Tem de ter um sistema que reúna Procons, associações, agências reguladoras, Ministério Público. As questões principais do consumo têm de ser resolvidas de uma tacada só, e não no varejo.

ConJur — O que falta para esse sistema ser implantado?

Marilena Lazzarini — Ele precisa ser uma prioridade política. E, para ser prioridade, não pode ser feito por um departamento dentro de um ministério do governo com 20 funcionários apenas. Tem de haver pelo menos uma secretaria para tratar da questão. A política de valorização do mercado e dos interesses das empresas gera uma crise se não houver a participação do consumidor.

ConJur — Pode-se atribuir o volume caótico de ações de consumidores na Justiça à falta desse sistema?

Marilena Lazzarini — Sim. Ações judiciais são medidas extremas, usadas quando não dá para resolver o conflito apenas com o diálogo. No Brasil, os processos judiciais de consumidor têm aumentado por conta dessa falta de estruturação e maturidade da defesa do consumidor. O caos está relacionado a situações crônicas.

ConJur — Os Juizados Especiais ajudam o consumidor na luta pelos seus direitos?

Marilena Lazzarini — Eles estão absolutamente congestionados. Como não temos um espaço adequado para resolver as questões crônicas, os Juizados são o primeiro canal que o consumidor tem para usar se não tiver conseguido resolver o problema junto ao Procon.

ConJur — Na questão da assinatura básica, por exemplo, embora existam ações coletivas — e o entendimento majoritário tem sido favorável às concessionárias de telefonia — muitos consumidores insistem em entrar na Justiça individualmente. Isso não prejudica a defesa dos próprios consumidores?

Marilena Lazzarini — Nessa questão específica, a recomendação do Idec é para que as pessoas esperem as ações coletivas e não entrem com ações individuais. Esse quadro é uma fotografia de um problema crônico. A promessa foi a de que a telefonia fixa seria universalizada, mas o preço da mensalidade é impraticável para muitas pessoas. Contudo, se houvesse um canal de diálogo efetivo entre governo, empresas e sociedade, esse problema seria sanado administrativamente.

ConJur — De que forma o Código de Defesa do Consumidor influencia o modo de agir das empresas?

Marilena Lazzarini — A legislação ajudou as empresas a começar a ver o consumidor e pensar em serviços de atendimento ao cliente. Houve um avanço muito grande nos rótulos dos produtos. Lamento não ter guardado produtos do ano de 1989, por exemplo, para comparar com o rótulo dos produtos de agora. Houve um avanço grande na informação dada ao cliente, mas ainda falta muito.

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