Benefício coletivo

Sem comprovação de irregularidades, corte de energia é proibido

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18 de agosto de 2006, 15h38

A empresa Bandeirante Energia está proibida de cortar o serviço de consumidores da região de Mogi das Cruzes (SP), em caso de irregularidades não comprovadas nos medidores. A decisão é da juíza substituta Patrícia Soares Albuquerque, da 4ª Vara Cível de Mogi. Cabe recurso.

A juíza fixou multa diária de um salário mínimo por consumidor, em caso de descumprimento da decisão judicial. A ação foi ajuizada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Trata-se da primeira liminar em ação coletiva da Defensoria, que começou a funcionar em São Paulo em janeiro desse ano.

Na Ação Civil Pública, o defensor público Francisco Romano argumentou que a empresa fazia o corte da energia elétrica com base num procedimento unilateral “constatando e imputando aos consumidores supostas irregularidades nos medidores de energia elétrica”.

Em seguida, a empresa emitia um demonstrativo de cálculo e encaminhava aos consumidores. Se o consumidor não pagasse ou assinasse uma confissão de dívida, parcelando o valor, a empresa cortava a energia elétrica.

O argumento foi o de que esse tipo de e procedimento viola o Código de Defesa do Consumidor, porque a empresa não pode constranger o cliente a pagar por uma irregularidade se ele não teve direito de se defender. O Ministério Público também pediu para ser autor da ação por entender correto o pedido feito pela Defensoria. A juíza também atendeu a esse pedido.

Leia a inicial e o despacho

Íntegra da inicial

A Defensoria Pública do Estado, atuante nesta Comarca, no exercício de suas atribuições determinadas pela Lei Complementar Estadual n. 988/2006, pelo Defensor Público abaixo assinado, vem, à presença de Vossa Excelência, propor Ação Civil Pública com Pedido Liminar em face de Bandeirante Energia S/A, CNPJ 02.302.100/0001-06, inscrição estadual 115.026.474.116, podendo ser citada, por meio de seu representante, na Rua Bandeira Paulista, n. 530, Chácara Itaim, São Paulo, SP, CEP 04532-001, pelos motivos de fato e de direito a seguir expostos.

1. Resumo dos Fatos.

A empresa ré, concessionária dos serviços de distribuição de energia elétrica em Mogi das Cruzes e região, com fulcro nas disposições da resolução n. 456, de 29/11/2000, da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), vem adotando, em inspeções recentes em diversas residências, a seguinte prática:

a) através de procedimento registrado em documento intitulado “Termo de Ocorrência de Irregularidade – TOI”, ela vem, de forma unilateral, constatando e imputando aos consumidores supostas irregularidades nos medidores de energia elétrica;

b) após, a ré, a partir do mencionado “TOI”, elabora documento denominado “Demonstrativo de Cálculo” e o envia aos consumidores; por meio de tal documento, a ré cobra dos consumidores um valor que corresponderia à suposta diferença entre um valor que ela entende devido e o valor que os consumidores pagaram em suas contas de luz, durante o período da suposta irregularidade, período esse calculado pela própria ré;

c) caso o consumidor não pague o valor calculado no mencionado documento “Demonstrativo de Cálculo”, ou assine confissão de dívida, parcelando tal valor, a ré interrompe o fornecimento de energia elétrica do consumidor.

A prática adotada pela ré, sucintamente exposta acima, está atingindo um amplo universo de consumidores, e preponderantemente a população carente de Mogi das Cruzes (como demonstram as iniciais de ações individuais que ora se juntam), mostrando-se abusiva sob vários aspectos, justificando o tratamento coletivo da questão, por meio desta Ação Civil Pública.

2. Da legitimidade ativa da Defensoria Pública do Estado.

A Defensoria Pública do Estado é parte legítima para a defesa de direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos dos consumidores carentes de Mogi das Cruzes e região, atingidos pelas práticas abusivas da empresa-ré. Sua legitimidade ativa deflui tanto de normas constitucionais quanto legais, que compõem o chamado sistema de defesa do consumidor.

Nesse sentido, determina o inciso XXXII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 que caberá ao Estado, promover, na forma da lei, a defesa do consumidor. Tal dispositivo constitucional, por si só, já seria suficiente para legitimar a Defensoria Pública do Estado para a defesa, tanto individual, quanto coletiva, dos interesses dos consumidores carentes de Mogi das Cruzes e região.

Minudenciando o comando constitucional acima, vêm os artigos 81 e 82 do Código de Defesa do Consumidor, reforçando a legitimidade ativa da Defensoria Pública para esta ação. Eis a dicção dos dispositivos legais:

“Artigo 81 – A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo ou individualmente, ou a título coletivo.


Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

(…)

III – interesses e direitos individuais homogêneos, assim entendidos os de origem comum”.

“Artigo 82 – Para os fins do artigo 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:

(…)

III – a entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados á defesa dos interesses protegidos por este Código”.

Completam os dispositivos legais acima a normas institucionais da Defensoria Pública, tanto no plano federal, quanto no estadual, que impõem à autora a defesa dos interesses dos consumidores carentes, tanto a título coletivo quanto individual.

Assim, o artigo 4º, incisos III e XI, da lei da Defensoria Pública a União (Lei Complementar federal n. 80, de 12.01.1994), aplicável às Defensorias Públicas dos Estados, determina que compete à Defensoria patrocinar ação civil pública e os direitos e interesses do consumidor lesado, conforme letra abaixo:

Art. 4º – São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:

(…)

III – patrocinar ação civil;

(…)

XI – patrocinar os direitos e interesses do consumidor lesado;

Além disso, a defesa coletiva dos consumidores está prevista como prerrogativa institucional da Defensoria Pública do Estado, conforme artigo 5º, inciso VI, letra d), da Lei Complementar estadual n. 988/2006, de 9/01/2006, abaixo transcrita:

Art. 5º – São atribuições institucionais da Defensoria Pública do Estado, dentre outras:

(…)

VI – promover:

(…)

d) a tutela individual e coletiva dos interesses e direitos do consumidor necessitado.

A jurisprudência, refletindo os dispositivos constitucional e legais acima apresentados, reconhece a legitimidade ativa da Defensoria Pública do Estado para a defesa coletiva dos interesses e direitos dos consumidores necessitados:

“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERESSE COLETIVO DOS CONSUMIDORES. LEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA. 1. A Defensoria Pública tem legitimidade, a teor do art. 82, III, a lei 8.078/90 (Cód. Defesa do Consumidor), para propor ação coletiva visando à defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos dos consumidores necessitados. A disposição legal não exige que o órgão da Administração Pública tenha atribuição exclusiva para promover a defesa do consumidor, mas específica, e o art, 4º, XI, da LC 84/90, bem como o art. 3º, parágrafo único, da LC 11.795/02-RS, estabelecem como dever institucional da Defensoria a defesa dos consumidores. 2. APELAÇÃO PROVIDA.” (TJ/RS, Apelação Civil n. 70014404784 – Erechim – 4ª Câmara Cível – Relator: Des. Araken de Assis – 12.04.2006 – V.U).

Processual Civil. Ação Civil Pública. Explosão de lojas de fogos de artifício. Interesses individuais homogêneos. Legitimidade ativa da Procuradoria de Assistência Judiciária. Responsabilidade pelo fato do produto. Vítimas do evento. Equiparação a consumidores. I- Procuradoria de Assistência tem legitimidade ativa para propor ação civil pública objetivando indenização por danos materiais e morais decorrentes de explosão de estabelecimento que explorava o comércio de fogos de artifício e congêneres, porquanto, no que se refere à defesa dos interesses do consumidor por meio de ações coletivas, conforme de depreende do art. 82 e incisos do CDC, bem assim do art. 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal, ao dispor expressamente que incumbe ao “Estado promover, na forma da lei, a defesa do consumidor”. II – Em consonância com o art. 17 do Código de Defesa do Consumidor, equiparam-se ao aos consumidores todas as pessoas que, em embora não tendo participado diretamente da relação de consumo, vêm sofrer as conseqüências do evento danoso, dada a potencial gravidade que pode atingir o fato do produto ou serviço, na modalidade vício de qualidade por insegurança (STJ – REsp n. 181.580/SP, 3ª T- Min. Ministro Castro Filho – DJU, DE 22.03.2004)

Ressalte-se que, quanto à última jurisprudência acima mencionada, as funções da Procuradoria de Assistência Judiciária (orientação jurídica aos necessitados e promoção de acesso ao Poder Judiciário deles) agora pertencem à Defensoria Pública do Estado.

Patente, pois, a legitimidade ativa da Defensoria Pública do Estado para esta ação civil pública.

3. Natureza do direito tutelado: individual homogêneo.

De acordo com o artigo 5º, inciso XXXII, e artigo 170, inciso V, todos da Constituição Federal de 1988, a defesa do consumidor configura-se tanto como direito fundamental da pessoal humana, quanto como princípio da ordem econômica.

Dessa configuração constitucional surgem normas de ordem pública e interesse social, destinadas à proteção e defesa do consumidor, consubstanciadas no microssistema do Código de Defesa do Consumidor, lei 8.078/90.


Extrai-se das afirmações acima a relevância social dos direitos e da proteção dos direitos do consumidor, parte sempre vulnerável na relação de consumidor, conforme artigo 4º, inciso I, da Lei 8.078/90.

De outro lado, práticas abusivas previstas e coibidas pelo Código de Defesa do Consumidor podem atingir um grande número de consumidores, tendo tais práticas uma mesma fonte, um mesmo nascedouro, uma mesma origem comum.

Surge daí o conceito de direito ou interesse individual homogêneo, conforme dicção do artigo 81, III, do Código de Defesa do Consumidor: são direitos e interesses individuais homogêneos aqueles que tenham uma origem comum.

Ricardo de Barros Leonel, em profunda monografia sobre o tema, discorre sobre as características dos direitos individuais homogêneos:

“São características destes interesses: serem determinados ou determináveis seus titulares; serem essencialmente individuais; ser divisível o objeto tutelado; e surgirem em virtude de um origem comum o fato comum, ocasionando lesão a todos os interessados a título individual.

A origem comum não significa necessariamente uma unidade factual e temporal, uma única conduta no mesmo momento gerando a lesão ao interesses, mas sim a mesma fonte e espécie de conduta ou atividade, ainda que tenha ocorrência postergada no tempo em mais de uma ação” (Manual do Processo Coletivo, RT, 2002, págs. 108 e 109).

As práticas abusivas da ré, como já se expôs sucintamente no item 1. acima, e se desenvolverá com mais detalhes abaixo, lesaram, e continuam lesando, justamente direitos individuais homogêneos, vistos que elas, reiteradas recentemente, abrangeram grande número de consumidores, atingidos em seu patrimônio (por débitos inexistentes e imputados de forma abusiva), e em sua dignidade (cortes e ameaças de corte no fornecimento de energia elétrica como forma de coagir o consumidor a pagar débitos inexistente e imputados de forma abusiva).

Dessarte, dadas a origem comum e a relevância social dos direitos que se pretendem tutelar em face das práticas abusivas da empresa-ré, pertinente a presente ação civil pública, com fulcro no artigo 81, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor e de acordo com o procedimento previsto na lei 7.347/85.

4. Da relação de consumo

Sem nenhuma sombra de dúvida, o serviço prestado pela ré, de transmissão e distribuição de energia elétrica para a população de Mogi das Cruzes e região caracteriza-se como relação de consumo.

A ré enquadra-se no conceito de fornecedora (art. 3º do Código de Defesa do Consumidor), visto que presta serviço (transmissão e distribuição de energia elétrica) no mercado consumidor de Mogi das Cruzes e região mediante remuneração da população.

As pessoas residentes em Mogi das Cruzes e região atingidas pelas práticas abusivas da ré, por sua vez, enquadram-se no conceito de consumidores (art. 2º do CDC), visto que utilizam, mediante contraprestação pecuniária, os serviços prestados pela ré.

A conseqüência importantíssima da natureza consumerista da relação entre a ré e as pessoas lesadas é que aplicam-se à tal relação as normas de ordem pública e de interesse social previstas no Código de Defesa de Consumidor (lei 8.078/90), principalmente aquelas que reconhecem a vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I, CDC), que facilitam a defesa dos direitos do consumidor, mormente com a inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII, CDC), que coíbem e tornam nulas de pleno direito as práticas e cláusulas contratuais abusivas impostas pela ré (art. 39 e incisos, e art. 51 e incisos, todos do CDC), sem contar o reconhecimento da boa-fé objetiva, com todas as suas conseqüências jurídicas, como princípio e norma impositiva presente em toda e qualquer relação de consumo (art. 4º, III, e art. 51, IV, todos do CDC).

5. Das práticas abusivas da ré.

5.1. Da impossibilidade de imputação de irregularidade aos consumidores.

Como já se expôs sucintamente o item 1. acima, a ré realizou, e vem realizando, recentemente, nas residências de Mogi das Cruzes e região, inspeções, e a partir destas, vem constatando, segundo critérios exclusivos seus, supostas irregularidades nos medidores de energia elétrica das residências, que gerariam um aferição de consumo menor do que o devido.

Como base em resolução da ANEEL, de 456/2000, a ré, sem nenhuma prova concreta, unilateralmente, imputa a responsabilidade das supostas irregularidades nos medidores de energia elétrica aos consumidores, elaborando o chamado “TOI – Termo de Ocorrência de Irregularidade”.

Essa imputação de responsabilidade por suposta irregularidade nos medidores de energia elétrica aos consumidores é abusiva sob vários aspectos, principalmente quando acompanhada de ameaça da interrupção do fornecimento de energia elétrica.


O primeiro aspecto é o da falta de manutenção, por parte da ré, dos equipamentos e da rede de distribuição de energia elétrica. É de responsabilidade da ré tal manutenção, como consectário lógico e jurídico da atividade empresarial que desenvolve.

Na documentação ora juntada, percebe-se que a ré imputa unilateralmente aos consumidores irregularidades nos medidores de energia elétrica durante períodos que ultrapassam doze meses. Isso demonstra que a ré não tem por hábito realizar inspeções de rotina nos seus equipamentos: relógios, postes, fios, etc.

Ora, se a ré faz medições de consumo de energia mensalmente, por meio de seus prepostos, como pode levar tanto tempo, em muitos casos mais de dozes meses, para detectar suposta irregularidade em medidores de energia elétrica? Não pode a ré, para compensar seu comportamento moroso com a manutenção de seus equipamentos, imputar, pura e simplesmente, de forma unilateral, a irregularidade aos consumidores.

Além disso, suposta irregularidade constatada nos medidores de energia elétrica pode ter derivado justamente do desgaste dos equipamentos da rede de distribuição de energia, de falha interna do medidor de energia elétrica, de condições ambientais dos medidores de energia não previstas pela ré, ou mesmo de ação de terceiros desconhecidos dos consumidores.

Desse modo, em razão de seu dever de manutenção, como ônus e risco da própria atividade empresarial que explora, a responsabilidade por irregularidades nos equipamentos de prestação de serviço de energia elétrica é da própria ré, até prova em contrário. Em razão disso, não pode a ré, com base num mero ato administrativo (uma resolução da ANEEL), e sob a ameaça de interrupção no fornecimento de energia, de forma unilateral e abusiva (por meio do mencionado TOI), atribuir ao consumidor irregularidade nos aparelhos medidores de energia elétrica.

O segundo aspecto, a demonstrar a prática abusiva da ré em imputar unilateralmente e de plano aos consumidores a responsabilidade por suposta irregularidade nos medidores de energia elétrica, é jurídico, decorrente do ordenamento jurídico, reflexo do primeiro aspecto acima exposto.

A ré, ao imputar unilateralmente e de plano, sob a ameaça de corte de energia elétrica, irregularidade nos equipamentos medidores de energia elétrica, fere o princípio constitucional do devido processo legal, o princípio da boa-fé objetiva e as regras básicas de ônus das prova.

Tal imputação repita-se, sob a ameaça, e em muitos casos, efetivação, do corte sumário de energia elétrica, fora do devido processo legal, carreia aos consumidores o ônus da prova da inexistência de irregularidade nos medidores de energia elétrica, obrigando-os a ingressar em juízo (verificar as iniciais das ações individuais anexas) para coibir o comportamento abusivo da ré, para provar que não cometeram irregularidades.

De outro lado, é regra basilar, conhecida até pelos leigos em direito, que o ônus da prova é de quem alega. Não basta à ré, unilateralmente, no documento denominado TOI, imputar a responsabilidade pelas irregularidades aos consumidores, sob pena e corte de energia elétrica. A ré, antes de qualquer providência, deveria, caso a caso, comprovar a existência e a autoria das irregularidades, para, somente após, fazer as exigências cabíveis.

Assim, política da atuação da empresa ré, no “arrastão” de inspeções feito recentemente (ver datas nos documentos anexos), fere o art. 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor (que regula o ônus da prova em relação ao consumidor hipossuficiente, técnica e economicamente, conforme abaixo se discorrerá) e até mesmo o tradicional artigo 333, I, do CPC (visto que, se a ré alega a irregularidade, deverá comprová-la).

Além, disso, presume-se a boa-fé nas relações de consumo, ou seja, os consumidores de Mogi das Cruzes e região estarão de boa-fé até que a ré comprove a autoria e a existência de irregularidade nos medidores de energia elétrica.

O comportamento abusivo da ré simplesmente desconsidera a boa-fé, invertendo a equação, ou seja, presumindo a má-fé dos consumidores de energia elétrica, atribuindo-lhes as supostas irregularidades nos medidores. Tal proceder, com base em presunção esdrúxula veiculada por resolução da ANEEL, ou seja, por ato administrativo, contraria frontalmente a lei principiológica e geral, que é o Código de Defesa do Consumidor, principalmente nos seus artigos 51, IV (são nulas de pleno direito as obrigações iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé e a eqüidade), 51, VI (são nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor), e 42 (ao colocar os consumidores sob ameaça de corte de energia, em razão da presunção de má-fé por parte deles).


Nesse sentido, a jurisprudência:

PROVA – Ônus – Honorários de perito nomeado – Prestação de serviços – Energia elétrica – Usuário que repele a fraude no medidor de energia elétrica não se dá demonstrar fato negativo – Não importa a condição na demanda, o ônus da respectiva prova toca a quem a afirmou e com base nela elaborou cálculo de débito, a concessionária – Aplicabilidade do artigo 333, II, do Código de Processo Civil – Recurso improvido (TJ/SP, Agravo de Instrumento n. 1.029.994-0/6 – São Paulo – 28ª Câmara Direito Privado – Relator: Celso Pimentel – 14.03.06 – V.U. – Voto n. 12.153)

PROVA – Ação declaratória de inexistência de débito – Fornecimento de energia elétrica – Dívida apontada pela concessionária ré com fundamento em suposta fraude do relógio medidor de consumo instalado no imóvel do autor – Perícia – Inversão do ônus da prova que constitui regra de julgamento – Aplicação do art. 6º, VIII, do CDC – Impossibilidade de produção da perícia em razão da substituição pela própria Companhia de força e luz, do aparelho supostamente adulterado – Ré que deve arcar com as conseqüências processuais decorrentes da não realização das provas tidas como necessárias para o julgamento da questão controvertida nos autos principais – Fraude não comprovada – Inexigibilidade do débito apontado pela ré com fundamento em exame realizado de maneira unilateral, sem o crivo do contraditório – Ação julgada parcialmente procedente em 1ª Instância – Recurso provido, para decretar a integral procedência da ação, condenando-se a ré no pagamento das despesas processuais e honorários advocatícios (TJ/SP, Apelação com Revisão n. 915.171-0/4 – Birigui – 32ª Câmara de Direito Privado – Relator: Ruy Coppola – 19.01.06 – V.U. – Voto n. 10.770).

Desse modo, pelos motivos acima expostos, abusivo o comportamento da empresa-ré de imputar, unilateralmente e de plano, fora do devido processo legal e ofendendo o princípio da boa-fé objetiva, irregularidade no medidor de energia elétrica aos consumidores de Mogi das Cruzes e região, devendo tal comportamento ser coibido pelo Poder Judiciário, conforme os pedidos abaixo.

5.2. Do cálculo virtual, hipotético, do valor do suposto débito.

Com base no mencionado TOI (Termo de Ocorrência de Irregularidade), imputando aos consumidores de Mogi das Cruzes e região supostas irregularidades nos medidores de energia elétrica, a empresa-ré envia aos consumidores documento intitulado “Demonstrativo de Cálculo”, indicando o período da suposta irregularidade e cobrando um valor de um débito que corresponderia à suposta diferença entre um valor que ela entende devido (correspondente a uma quantidade de energia que a ré entende que o usuário teria consumido) e o valor que os consumidores pagaram em suas contas de luz (correspondente ao consumo de energia registrado nos medidores), durante o período da suposta irregularidade.

A ré, para calcular a quantidade de energia que ela entende que o usuário teria consumido durante o período da suposta irregularidade, toma como critério o maior valor de consumo de energia elétrica e/ou potências ativas e reativas excedentes, ocorridos em até 12 (doze) ciclos completos de medição normal imediatamente anteriores ao início da irregularidade (Resolução 456 de 29/11/2000, da Agência Nacional de Energia Elétrica — ANEEL, artigo 72, inciso I e alíneas, e inciso IV, alínea b).

Em outras palavras, a ré verifica o maior valor de consumo de energia (em KWh) em um dos doze meses anteriores ao início da suposta irregularidade e atribui tal consumo a cada um dos meses integrantes do período da suposta irregularidade no medidor de energia elétrica do consumidor.

Alternativamente, a ré, ainda com base na mencionada resolução da ANEEL, relaciona os eletrodomésticos existentes na residência do consumidor e estima o provável consumo que esses aparelhos geram.

Além disso, não há, por parte da ré, seja no documento denominado TOI, seja no Demonstrativo de Cálculo, qualquer indicação de qual foi o método utilizado para constatação do período da suposta irregularidade no medidor de energia elétrica dos consumidores.

Tais procedimentos da ré, para cálculo de débitos dos consumidores decorrentes das supostas irregularidades nos medidores de energia elétrica são calcados em um ato administrativo (resolução da ANEEL) que não encontra arrimo em nenhuma determinação legal, ou seja, são completamente ilegais, na medida em que não cabe a uma agência reguladora legislar, ainda mais sobre direito do consumidor.

De outro lado, a mencionada resolução, além de não encontrar fundamento na lei, contrataria escancaradamente o Código de Defesa do Consumidor, porque atribuiu aos usuários um consumo de energia totalmente hipotético, virtual, estimativo, não real, totalmente divorciado da quantidade de energia efetivamente consumida pelo usuário.


Destarte, caso a ré constate, de acordo com devido processo legal, irregularidade no medidor energia elétrica de algum consumidor, durante determinado período, deverá ela apurar o valor devido de acordo com um método real, que constate a quantidade exata do suposto consumo irregular de energia elétrica.

Caso contrário, haverá enriquecimento ilícito da ré e desvantagem mais que exagerada para o consumidor, contrariando as normas cogentes do Código de Defesa do Consumidor, visto que o usuário só poderá ser cobrado pela energia que, de fato, consumiu.

Além disso, se a resolução da ANEEL não beneficia os consumidores (ao contrário, ela os prejudica), ela não pode ser aplicada a eles, visto que não integra o sistema de proteção do consumidor, conforme de extrai o caput do artigo 7º do Código de Defesa do Consumidor. Nesse sentido, a doutrina de Cláudia Lima Marques:

O texto do art. 7º, caput, é claro, não reivindicando para o CDC a exclusividade dos “direitos” concedidos ao consumidor, mas assegurando — a contrario — a prioridade do CDC e dos seus direitos assegurados no microssistema tutelar. É outra a posição se o tratado, lei ou regulamento retira, limita, ou impõe a renúncia de direitos, que o sistema do CDC assegura ao consumidor. Neste caso, a aplicação do CDC será determinada por constituir-se no corpo de normas que assegura, segundo os novos parâmetros e valores orientadores, eficácia ao mandamento constitucional de proteção do consumidor. Assegura-se, em última análise, através da norma do art. 7º do CDC, a aplicação da norma que mais favorece o consumidor. (negrito nosso, conferir citação em “Comentários ao Código de Defesa do Consumidor” RT, 2ª Edição, págs. 220 e 221, obra de autoria de Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin e Bruno Miragem).

Desse modo, ilegal a estimativa de cálculo, feita pela ré, segundo critérios exclusivos desta de débito decorrente de suposta irregularidade em medidores de energia elétrica dos consumidores de energia elétrica de Mogi das Cruzes e região, com base em resolução da ANEEL, visto que tal resolução, além de não integrar o sistema de proteção do consumidor, fere de morte o Código de Defesa do Consumidor.

5.3. Da impossibilidade de interrupção do fornecimento de energia elétrica.

Durante todo o procedimento da constatação da suposta irregularidade nos medidores de energia elétrica nas residências até a efetiva imputação de débito aos usuários decorrentes dessa suposta irregularidade, os consumidores de energia elétrica de Mogi das Cruzes são ameaçados com a interrupção no fornecimento de energia elétrica, caso não paguem os débitos a eles imputados pela ré.

Caso os consumidores se recusem a reconhecer a dívida que lhes é imputada unilateralmente sem que lhes seja dada oportunidade de verificar a sua existência ou não, a ré efetivamente interrompe o fornecimento de energia elétrica, que só é restabelecida caso o usuário confesse e parcele a dívida junto à ré, ou faça valer seus direitos perante o Poder Judiciário, conforme, novamente, cópias da inicias que seguem anexas.

O corte de energia elétrica, utilizado como meio para a ré receber créditos que entende devidos é prática abusiva, não só porque afronta dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, mas também por ser flagrantemente inconstitucional, na medida em que abala fundamento da República Federativa do Brasil, qual seja, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) e fere direito fundamental da pessoa humana, consubstanciado na proteção ao consumidor (art. 5º, XXXII, CF/88).

De fato, a energia elétrica, ao lado de saneamento básico e da moradia, constitui um dos elementos do chamado “mínimo básico”, ou seja, é um serviço essencial sem o qual não se pode falar em dignidade da pessoa, do cidadão. Sem energia elétrica, comprometem-se a saúde, a alimentação, o bem-estar, a segurança e o entretenimento da pessoa. Sem energia elétrica, não se poderá tomar banho quente, ter luz à noite, conservar alimentos, ver tevê, escutar rádio, atividades básicas de qualquer pessoa dentro de uma residência.

Por isso, dando maior concretude ao fundamento constitucional da dignidade da pessoal humana, vem o artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor e impede a interrupção do fornecimento de energia elétrica, ao determinar a continuidade dos serviços essenciais. Eis a dicção do artigo:

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou por suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento. São obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros, e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na previstas neste código.


Além disso, a ameaça e a efetiva interrupção do fornecimento de energia elétrica, como meios de possibilitar a cobrança de supostos débitos pretéritos, advindos de supostas irregularidades nos medidores de energia elétrica, imputadas unilateralmente pela ré aos consumidores de Mogi das Cruzes e região, são práticas mais do que abusivas, porque expõem o consumidor a constrangimento e ao ridículo, o que é proibido pelo Código de Defesa do Consumidor, conforme letra abaixo:

Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor não será exposto ao ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição de indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipóteses de engano justificáveis.

A interrupção da energia elétrica, como meio de coação para cobrança de suposto débito (adindo de irregularidade cuja existência e autoria não foram comprovadas), fere a cláusula constitucional do devido processo legal, afasta o monopólio estatal no exercício da jurisdição, é justiça privada fora dos casos permitidos pelo ordenamento jurídico.

Exemplificativamente, seria o mesmo que autorizar o locador a despejar do imóvel, a socos e ponta-pés, o locatário inadimplente com os alugueres. Caso a ré queira cobrar supostos débitos que entenda devidos em relação aos usuários de serviços de energia elétrica de Mogi das Cruzes, principalmente os mais carentes, deverá fazê-lo através dos meios adequados, tais como eventuais ação de cobrança, ação monitória, ação de execução, se houver título executivo extrajudicial.

Assim a doutrina de Cláudia Lima Marques:

Sendo assim, interpretando-se a Constituição como um todo, inclusive artigo 5º, §2º, , que permitiu a incorporação do Pacto de San José da Costa Rica, (Dec. 678, de 6 de novembro de 1992) ao nosso ordenamento jurídico, temos que preservar a dignidade da pessoa humana, que é o valor maior, concretizado pelo CDC no princípio da continuidade dos serviços públicos, se essenciais à vida, saúde e segurança deste. Daí a proibição como forma de cobrança de ameaça, de constrangimento, de coação, ex vi art. 42 do CDC (a concessionária de serviço público deve utilizar-se de meios próprios para receber pagamentos em atraso), e daí o direito de dano moral causado por estar práticas comerciais abusivas (art. 6º, VI, e art. 39) e de devolução em dobro da quantia paga erroneamente(arts. 22 e 42 do CDC. (negrito nosso, conferir citação em “Comentários ao Código de Defesa do Consumidor” RT, 2ª Edição, pág. 382, obra de autoria de Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin e Bruno Miragem).

A jurisprudência, também, corrobora a impossibilidade de interrupção do fornecimento de energia elétrica em casos como ora se discutem:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – Prestação de serviços – Fornecimento de energia elétrica – Irregularidade no registro de consumo – Constatação unilateral – Interrupção do fornecimento – Impossibilidade – Recurso improvido – Cuidando-se de dívida cuja legalidade é questionada em juízo, não é possível a interrupção do fornecimento de energia elétrica – Tratando-se de constatação unilateral da empresa prestadora do serviço, há necessidade de respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa. (TJ/SP, Agravo de Instrumento n. 894233-0/2 – São Paulo – 27ª Câmara de Direito Privado – Relator: Jesus Lofrano – 24.05.05 – V.U.)

AGRAVO DE INSTRUMENTO – Concessionária de energia elétrica – Crédito derivado de termo de confissão de dívida – Interrupção de fornecimento – Impossibilidade – O crédito da concessionária com origem em termo de ocorrência de irregularidade – TOI -, mesmo que confessado, exige a utilização de meios legais próprios para sua cobrança, não sendo admissível, posto que abusivo, obrigar o usuário ao pagamento da dívida mediante interrupção do fornecimento de energia – Agravo desprovido. (TJ/SP, Agravo de Instrumento n. 892.698-0/7 – Diadema – 30ª Câmara de Direito Privado – Relator: Andrade Neto – 01.06.05 – V.U.)

ENERGIA ELÉTRICA – Interrupção do fornecimento fundada em débito pretérito, resultante de alegada adulteração do relógio medidor – Impossibilidade – Liminar deferida – Valor estimado mediante cálculos unilaterais da concessionárias, que sugerem certo exagero e estão submetidos a discussão – Essencialmente e urgência do serviço – Recurso não provido. (TJ/SP, Agravo de Instrumento n. 899.919-0/5 – Osasco – 28ª Câmara de Direito Privado – Relator: Cesar Lacerda – 24.05.05 – V.U.)

ADMINISTRATIVO. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. AUSÊNCIA DE PAGAMENTO DE TARIFA DE ENERGIA ELÉTRICA. INTERRUPÇÃO DO FORNECIMENTO. CORTE. IMPOSSIBILIDADE. ARTS. 22 E 42, DA LEI Nº 8.078/90 (CÓDIGO DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR). 1. Recurso Especial interposto contra Acórdão que entendeu não ser cabível indenização em perdas e danos por corte de energia elétrica quando a concessionária se utiliza de seu direito de interromper o fornecimento a consumidor em débito. O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade. 2. Não resulta em se reconhecer como legítimo o ato administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora de energia e consistente na interrupção do fornecimento da mesma, em face de ausência de pagamento de fatura vencida. 3. A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável, subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção. 4. O art. 22, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, assevera que “os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”. O seu parágrafo único expõe que “nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados na forma prevista neste código”. Já o art. 42, do mesmo diploma legal, não permite, na cobrança de débitos, que o devedor seja exposto ao ridículo, nem que seja submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Os referidos dispositivos legais aplicam-se às empresas concessionárias de serviço público. 5. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido, os princípios constitucionais da inocência presumida e da ampla defesa. 6. O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza. 7. É devida indenização pelos constrangimentos sofridos com a suspensão no fornecimento de energia elétrica. 8. Recurso Especial provido para determinar o retorno dos autos ao Juízo de origem a fim de que, e nada mais, o MM. Juiz aprecie a questão do quantum a ser indenizado. (STJ – 1ª T. – Resp 430812/MG – rel. Min. José Delgado – j. 06.08.2002).


Desse modo, abusivas a ameaça e a efetiva interrupção do fornecimento de energia elétrica aos consumidores de energia elétrica de Mogi das Cruzes e região, como forma de coação para recebimento de supostos débitos pretéritos com origem em supostas irregularidades constatadas unilateralmente pela empresa-ré nos medidores de energia elétrica das residências da cidade e região, devendo tais práticas ser coibidas com rigor pelo Poder Judiciário.

5.4 Da falta informação clara e adequada dos procedimentos adotados pela ré.

Conforme se expôs acima, os consumidores de energia elétrica de Mogi das Cruzes e região não entendem de forma clara e precisa os procedimentos adotados pela empresa-ré.

Desde o momento da constatação da suposta irregularidade nos medidores de energia elétrica, por meio do documento denominado TOI, até a imputação do débito, os consumidores não são esclarecidos sobre os procedimentos da ré: a) não entendem como pode ser atribuída a eles responsabilidade por suposta irregularidade nos relógios de energia, visto que nunca mexeram em tais aparelhos; b) não entendem como a ré constatou tal irregularidade; c) recebem um documento imputando-se um débito por suposta irregularidade durante um determinado período, mas não lhes é esclarecido como foi constatado o mencionado período de fraude, nem que critérios foram utilizados para calcular a suposta diferença de consumo, não paga por eles, durante esse período; d) são obrigados a reconhecer tal débito, mesmo não concordando com ele, visto que, durante todo o procedimento, estão sob a ameaça do corte de fornecimento de energia elétrica.

Percebe-se, com nitidez, que os usuários de energia elétrica de Mogi das Cruzes e região, principalmente os mais carentes, não compreendem, com a necessária clareza e adequação, os procedimentos adotados pela ré, nem esta se esforça, minimamente que seja, para esclarecer, com transparência, a origem do suposto débito que imputa aos usuários. Há clara afronta a direito básico do consumidor, previsto no inciso III do artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor, abaixo transcrito:

Artigo 6º. São direitos básicos do consumidor:

(…)

III — a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta da quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como dos riscos que apresentam.

5.5. Da nulidade das confissões de dívida.

Em razão dos motivos acima elencados (impossibilidade de constatação, de forma unilateral, de supostas irregularidades nos medidores de energia das residências, imputado tais irregularidades aos consumidores; impossibilidade de apuração real do período das supostas irregularidades; impossibilidade de constatação do real consumo durante o período das supostas irregularidades), todos eles caracterizados como práticas abusivas em face do Código de Defesa do Consumidor, são nulas as confissões de dívidas assinadas pelos usuários de energia elétrica de Mogi das Cruzes e região em favor da ré, mormente quando os consumidores são ameaçados com a interrupção do fornecimento de energia elétrica.

De outro lado, mesmo sobre uma ótica exclusivamente privada, a confissão de dívida imposta pela ré, com o fito de manter o fornecimento de energia elétrica, caracteriza vício de vontade em relação aos consumidores, ou seja, coação, nos moldes do artigo 151 do Código Civil.

Realmente, caracteriza coação o fato de ré ameaçar os consumidores com interrupção de serviço público essencial de energia elétrica, visto que, para evitar dano a saúde própria e da família, e lesão a seu patrimônio, o usuário assina qualquer coisa, mesmo sabendo tratar-se de imposição injusta.

De uma ótica mais moderna e publicista, as confissões de dívida, decorrentes das práticas abusivas da ré já narradas, são nulas porque expõem o consumidor a constrangimento e ao ridículo, sendo ou não ele inadimplente, o que vai de encontro ao artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor, fulminando de nulidade tais confissões, conforme se exporá com mais detalhamento abaixo.

5.6. Da multa abusiva.

Nos instrumentos de confissão de dívida, que muitos usuários de energia elétrica de Mogi das Cruzes e região assinam, por imposição da ré, para não terem sua energia cortada, parcelando o débito que seria conseqüência da suposta irregularidade nos medidores de energia elétrica, é imposta multa abusiva, chegando a 30 % do valor do débito, com justificativa na suposta irregularidade.

Tal multa não poder ultrapassar o montante de 2% do valor do débito, caso contrário haverá vantagem excessiva em favor da ré, que justifica o montante da multa em resolução da ANEEL.

Ocorre que não se justifica os montantes das multas exigidas pela ré nas confissões de dívida, seja porque tais confissões são nulas, seja porque, além de não haver fundamento legal para montantes tão excessivos (resoluções das ANEEL são podem ser utilizadas, porque a agência não tem competência para legislar sobre direito do consumidor), tais montantes contrariam flagrantemente o parágrafo único do artigo 52 do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece como limite 2% para aplicação da multa.


6. Síntese da argumentação.

Diante de todo o exposto acima, pode-se apontar, resumidamente, que:

1) não se pode afirmar, com certeza, a existência e autoria de irregularidades nos medidores de energia elétrica das residências de Mogi da Cruzes e região, visto que o TOI (Termo de Ocorrência de Irregularidade) é elaborado unilateralmente pelos prepostos da ré; eventuais irregularidades nos medidores de energia elétrica podem ter se dado em razão do desgaste e da deterioração dos equipamentos em função do decurso do tempo e da falta de manutenção periódica, das condições ambientais onde foram instalados os medidores, não previstas pela ré ou mesmo pela ação de terceiros; as conseqüências de eventuais irregularidades advindas das falta de vistoria e fiscalização de seus equipamentos só podem ser atribuídas à ré, como ônus da atividade empresarial que exerce;

2) é abusiva a adoção de métodos estimativos para cálculo de energia consumida durante supostas irregularidades, visto que a empresa ré deveria utilizar método real para a apuração de consumo;

3) é abusiva, por ser inconstitucional e ilegal, a interrupção no fornecimento de energia elétrica aos consumidores de Mogi das Cruzes e região, por parte da ré;

4) há coação e falta de transparência nos procedimentos utilizados pela ré: quando elabora o TOI, constando unilateralmente suposta irregularidade nos medidores de energia; quando imputa ao consumidor uma dívida e exige o comparecimento dele para negociá-la, sem orientar o usuário sobre os gênese e os critérios dela; quando, por fim, exige do consumidor confissão de dívida, tudo sob a ameaça do corte de energia;

5) são nulas as confissões de dívidas obtidas nos termos acima e nulas também as multas superiores a 2% exigidas pela ré nas dívidas confessadas.

7. Dos requisitos da liminar

Preceitua o artigo 12 da Lei 7.347/85 que o juiz poderá conceder liminar em ação civil pública. Obviamente, tratando-se tal liminar de provimento de urgência, deverão, para sua concessão, estar presentes os requisitos da plausibilidade dos fundamentos jurídicos invocados (fumus boni iuris) e a demonstração da urgência do provimento (periculum in mora).

A plausibilidade do direito invocado está mais do que evidente, como se demonstrou acima. Repita-se a argumentação: a imputação unilateral de supostas irregularidades nos medidores de energia elétrica das residências dos consumidores de Mogi das Cruzes e região; a imputação de débitos aos consumidores calculados de forma absurda e hipotética como conseqüência das mencionadas supostas irregularidades; a ameaça e o efetivo corte de energia elétrica como meio coativo para exigir o débito absurdo, calculado de acordo com critérios exclusivos da ré, sem nenhum fundamento legal; a exigência de confissão de tal débito por parte dos consumidores (que muitas vezes não têm condições econômicas de arcar com as conseqüências da confissão), apenas para manter o fornecimento de energia elétrica; são práticas abusivas, que ferem princípios e normas constitucionais.

Tais práticas abusivas ferem os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do contraditório e da ampla defesa, do devido processo legal; atingem direito fundamental da pessoa humana e princípio fundamental da ordem econômica, qual seja, a proteção e defesa do consumidor; vão de encontro às normas de ordem pública e interesse social, principalmente a cláusula geral de boa-fé objetiva (art. 4º, as normas consumeristas que proíbem as práticas abusivas, principalmente, os incisos IV e V do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor (que vedam as práticas de prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento e condição, para impingir-lhe produtos e serviços e de exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva); são nulas de pleno direito, a teor do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor, principalmente em relação aos incisos IV e VI do artigo (são nulas as obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé e a equidade; e nulas também as cláusulas que estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor).

Indiscutível, pois, a plausibilidade do direito invocado, para fins de concessão da liminar nesta ação civil pública.

Cristalina, também, a urgência da medida, como requisitante concomitante, para o deferimento da liminar pleiteada, mormente quanto à conduta da ré de ameaçar e efetivar o corte de energia elétrica das residências dos consumidores de Mogi das Cruzes e região, como forma de coação para exigir supostos débitos, decorrentes de supostas fraudes nos medidores de energia, constatadas unilateralmente pela ré.


De fato, o corte de energia elétrica, por óbvio, comprometerá a saúde, a segurança, o bem-estar, o lazer e o conforme dos consumidores, visto que, conforme já dito, sem energia elétrica, não poderão eles tomar banho quente, ter luz à noite para, inclusive, afastar ladrões, conservar alimentos, ver tevê, escutar rádio, atividades básicas de qualquer pessoa dentro de uma residência.

O corte no fornecimento de energia elétrica, pois, para exigir supostos débitos, é prática abusiva que deve ser coibida imediatamente, não só porque fere diretamente o princípio constitucional da dignidade da pessoal humana, mas porque a ausência de energia elétrica, apenas por algumas horas, poderá comprometer a saúde e o bem-estar dos consumidores. Daí a urgência da medida.

De outro lado, em relação à imputação de supostos débitos aos consumidores, calculados de forma hipotética e surreal, continuará a ré a auferir vantagem econômica indevida e expressiva a custa dos usuários de energia elétrica, que são constrangidos ao pagamento de quantias indevidas ou que superam àquela que é efetivamente devida, muitas vezes em detrimento de outras necessidades básicas pertinentes a seu sustento, notadamente nas camadas menos favorecidas da sociedade.

Note-se que, caso este Eminente Juízo entenda que a liminar prevista no artigo 12 da lei 7347/85 tem natureza de tutela antecipada, presentes estão os requisitos previstos no artigo 273 do Código de Processo Civil, já a eles também se subsume a argumentação acima exposta.

Desse modo, impõe-se a concessão de liminar, de acordo com os pedidos abaixo.

8. Do pedido liminar

Diante do exposto, requer-se liminar para:

8.1) seja imposta à ré obrigação de não fazer, consistente na não interrupção do fornecimento de energia elétrica nas hipóteses em que o consumidor é acusado por ela de praticar fraude, enquanto inexistente ou pendente discussão acerca da materialidade da fraude e de sua autoria, bem como da existência do débito decorrente de consumo irregular, cabendo o ônus da prova á ré;

8.2) seja imposta à ré obrigação de fazer, quando houver corte prévio de energia elétrica, consistente no restabelecimento do serviço nas hipóteses em que o consumidor é acusado por ela de praticar fraude, enquanto inexistente ou pendente discussão acerca da materialidade da fraude e de sua autoria, bem como da existência do débito decorrente de consumo irregular, cabendo o ônus da prova á ré;

8.3) seja declarada, desde já, a inexistência dos débitos imputados aos consumidores, enquanto não exista prova inequívoca da materialidade e da autoria das irregularidades nos medidores de energia elétrica, do período em que efetivamente se deu a irregularidade e do consumo real (não estimativo) de energia durante o mencionado período;

8.4) seja declarada, desde já, a nulidade das confissões de dívida decorrentes de débitos imputados aos consumidores, enquanto não exista prova inequívoca da materialidade e da autoria das irregularidades nos medidores de energia elétrica, do período em que efetivamente se deu a irregularidade e do consumo real (não estimativo) de energia durante o mencionado período;

8.5) seja imposta à ré obrigação de fazer, consistente em instalar, desde já, novo relógio de medição de energia elétrica em cada uma das residências dos consumidores aos quais a ré imputa irregularidade ou fraude, para que se possa apurar, durante o período de 06 meses, a média de consumo real de energia elétrica, aplicando-se tal média aos casos em que a irregularidade ou fraude possa ser atribuída ao consumidor;

8.6) seja fixada multa diária no valor de R$ 1.000,00 (mil reais) por consumidor, caso a ré deixe de cumprir as determinações deste Eminente Juízo, em caráter provisório ou definitivo.

9. Do pedido final.

Diante de todo o exposto, requer-se:

9.1) a citação da ré, por meio de seu representante legal, para que conteste ação, sob pena revelia;

9.2) a atuação do Ministério Público, como fiscal da lei;

9.3) a procedência do pedido, para que:

9.3.a) sejam declaradas inexistentes a dívidas imputadas aos consumidores dos serviços da ré, em decorrência das práticas e procedimentos abusivos desta, quais sejam: imputação de fraude ou irregularidade nos medidores de energia elétrica aos usuários, quando não sejam comprovadas, pela ré, a materialidade e a autoria das mencionadas irregularidades, e quando, para a estipulação do período e do consumo das irregularidades, for usado método estimativo, não real, mormente quando tais procedimentos são acompanhados de ameaça ou efetivo corte no fornecimento de energia elétrica;

9.3.b) sejam declaradas nulas as confissões de dívidas firmadas, com a condenação da ré à devolução do equivalente em dobro das quantias recebidas indevidamente (de acordo com o parágrafo único do artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor), tendo em vista as práticas e procedimentos abusivos da ré, quais sejam, não demonstração da autoria e materialidade da fraude; adoção de métodos estimativos, quando deveria utilizar método real para apuração do consumo; ameaça perene do corte no fornecimento de energia elétrica;


9.3.c) seja a ré condenada ao cumprimento da obrigação de não fazer, consistente na não interrupção do fornecimento de energia elétrica, nos casos em que o consumidor é acusado de praticar fraude ou irregularidade, enquanto pendente discussão acerca da materialidade e da autoria da fraude ou irregularidade, bem como da existência e extensão do débito decorrente de consumo irregular;

9.3. d) seja a ré condenada ao cumprimento de obrigação de fazer, consistente do restabelecimento do serviço de energia elétrica nas hipóteses em que o consumidor é acusado de praticar fraude ou irregularidade, enquanto pendente discussão acerca da materialidade e da autoria da fraude ou irregularidade, bem como da existência e extensão de débito decorrente de consumo irregular;

9.3.e) seja a ré condenada ao cumprimento da obrigação da fazer, consistente em adotar os seguintes critérios para a apuração do débito, quando efetivamente for constatada irregularidade nos medidores de energia elétrica efetivamente possa ser atribuída ao consumidor:

9.3.e). I — para fixação da real quantidade de energia efetivamente consumida, a instalação de relógio por período de 06 meses, findo o qual será tomada a média de consumo;

9.3.e). II — uma vez obtida a quantidade de energia consumida, em KWh, seja aplicada a tarifa do efetivo consumo, acrescida de correção monetária oficial;

9.3.e). III — limitação da cobrança por motivo de irregularidade nos medidores ao período que vai desde a data da última vistoria periódica realizada pela ré até a data da inspeção que acusar a fraude ou irregularidade, não podendo ser esse interregno superior a doze meses;

9.3.e). IV — sobre o valor apurado seja aplicada multa no percentual máximo de 2% (dois por cento), nos termos do artigo 52, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, declarando-se ilegal multa fixada cima da mencionado percentual, tanto nas confissões de dívida, como em todos os procedimentos relativos à cobrança de débitos;

9.4) seja fixada multa diária no valor de R$ 1.000,00 (mil reais) por consumidor, caso a ré deixe de cumprir as determinações deste Eminente Juízo, em caráter provisório ou definitivo;

9.5) a produção de prova por todos os meios em direito admitidos, tais como a oitiva de testemunhas, o depoimento do representante legal da ré, perícia e juntada de documentos;

9.6) condenação da ré nas verbas da sucumbência;

Dá-se à causa o valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais).

Mogi das Cruzes, 1º de agosto de 2006.

FRANCISCO ROMANO

Defensor Público

OAB/SP 162.746

Íntegra do despacho

Vistos.

Trata-se de Ação Civil Pública aforada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em defesa dos consumidores carentes, diante da empresa ré.

O Ministério Público do Estado de São Paulo requer a sua inclusão na lide como co-legitimado, passando a integrar o pólo ativo da demanda.

Defiro o pedido ministerial, passando então a figurar como co-autor da demanda. Anote-se.

Ainda, diante da prova preliminar trazida, entendo presentes os pressupostos da tutela liminar, encimados no brocardo fumus boni iuris et periculum in mora, na medida em que se vê que os serviços prestados pela requerida não atende às regras de qualidade exigidas (fumaça do bom direito), sendo certo que, em assim sendo mantida a prestação de serviço, e tendo em conta os problemas que poderão advir aos consumidores, a ausência de adequação até final sentença, por certo poderá trazer prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação.

Portanto, DEFIRO a liminar postulada, na íntegra. Fixo o valor de um salário mínimo, com multa diária, por consumidor, no caso de descumprimento da presente decisão.

Cite-se a ré, para comparecimento em audiência de tentativa de conciliação a ser realizada no dia 14/09/2006 às 16:00hs, data da qual, caso não haja acordo, se iniciará a prazo legal para contestação.

Int.

Mogi das Cruzes, 16 de agosto de 2006.

Patrícia Soares de Albuquerque

Juíza Substituta

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