Constituição ferida

Leia os fundamentos do juiz que julgou RDD inconstitucional

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16 de agosto de 2006, 18h21

O temido RDD — Regime Disciplinar Diferenciado é uma aberração jurídica que demonstra como o legislador ordinário, no afã de tentar equacionar o problema do crime organizado, deixou de contemplar os mais simples princípios constitucionais em vigor.

Foi este o fundamento que levou a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, por votação unânime, a determinar a remoção de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, do RDD. O defensor da tese foi o desembargador Borges Pereira.

A 1ª. Câmara Criminal do TJ paulista já havia defendido, em maio, a inconstitucionalidade do RDD, ao julgar pedido de Habeas Corpus de uma detenta transferida para o regime diferenciado depois de uma rebelião na penitenciária feminina do Butantã, em São Paulo.

Segundo o voto do relator da matéria, desembargador Marco Nahum, citado no voto do desembargador Borges Pereira, “trata-se de uma determinação desumana e degradante, cruel, o que faz ofender a dignidade humana”.

A decisão vai obrigar as instituições que atuam na área de segurança pública a entrar com recurso no Supremo Tribunal Federal. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, afirmou que considera o RDD constitucional.

Bastos disse acreditar que o governo de São Paulo vai recorrer da decisão do TJ paulista. “A medida é dura e tem que ser usada com muito cuidado para chefes de quadrilha, mas não é inconstitucional. Não acredito que o Supremo dirá que é inconstitucional”, afirmou o ministro.

A decisão foi provocada por um pedido de Habeas Corpus ajuizado pela advogada de Maria Cristina de Souza Rachado — que hoje também está presa. Ela alegou que seu cliente sofria constrangimento ilegal por ser mantido no regime severo.

De acordo com a defesa, haveria duas determinações de internação cautelar, pelo prazo de 90 dias, contra Marcola, sobre as mesmas alegações e pelo mesmo fato.

De acordo com o processo, em 17 de maio o então Secretário da Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa, representou pela internação cautelar de Marcola em RDD. A justificativa foi a de que o preso teria feito ameaças contra o então secretário e o governador, além de desafiar autoridades policiais, durante a onda de rebeliões dos dias 13,14 e 15 de maio.

No entendimento da 1ª Câmara, o RDD ofende “mortalmente” a Constituição Federal. Os desembargadores afirmaram que a Resolução 026/2001 da Secretaria da Administração Penitenciária, que criou o regime, foi ato de secretário de Estado, a quem não cabe legislar sobre matéria penal, nem penitenciária.

“Assim, a inexistência de procedimento legislativo e da necessária edição de lei federal, é que deveria bastar para demonstrar a inviabilidade de sua efetivação, configurando evidente constrangimento ilegal”, afirmou o relator. Para ele, não cabe a ninguém, nem mesmo ao juiz da execução, determinar ou legitimar regressão (ou transferência) a regime penitenciário inexistente em lei.

Leia a íntegra do voto do relator

“HABEAS CORPUS” – Processo nº 978.305.3/0-00

Impetrante: MARIA CRISTINA DE SOUZA RACHADO

Paciente: MARCOS WILLIANS HERBAS CAMACHO

Voto nº 5714

A Advogada MARIA CRISTINA DE SOUZA RACHADO impetra o presente “habeas corpus”, com pedido liminar em benefício de MARCOS WILLIANS HERBAS CAMACHO, apontando como autoridade coatora o Exmº. Sr. Dr. Juiz de Direito Corregedor da Vara das Execuções Criminais da Capital, nos autos do pedido de desinternação em regime disciplinar diferenciado (processo nº C-127/2006), ao determinar a internação cautelar do paciente pelo prazo de noventa dias, em regime disciplinar diferenciado – RDD – e contra ato do MM. Juiz de Direito da Vara das Execuções Criminais da Capital. 1. Ao contrário do que argumenta o lúcido parecer do D. representante da Procuradoria Geral de Justiça, a ordem deve ser conhecida.

Argumenta a d. impetrante, em síntese, que o paciente está sofrendo constrangimento ilegal consistente no acolhimento de representação formulada pela autoridade administrativa e pelo MM. Juiz de Direito Corregedor da Vara das Execuções Criminais de São Paulo, que determinou a internação cautelar do paciente pelo prazo de 90 dias. Ressalta que, enquanto o MM. Juízo de Direito Corregedor da VEC determinava a internação cautelar pelo prazo de 90 dias, o órgão do Ministério Público também peticionava no mesmo sentido para o Juízo da VEC, que também determinou a internação cautelar sobre as mesmas alegações, entendendo que o ora paciente foi apenado com duas internações cautelares pelo mesmo fato, o que reputa ilegal. Alega que as decisões judiciais que determinaram a internação cautelar do paciente em RDD nos autos de números C-08/06 e nº C-127/06, não demonstram o necessário fumus boni juris ou a verossimilhança das alegações dos Órgãos Representantes, levando a conclusão de que resta configurada como verdadeiro ato coator, vício este sanável pelo presente writ. Entende que o ato judicial impugnado peca por ilegalidade e abuso, vez que a decisão foi proferida sem qualquer manifestação do MP ou da Defesa. Insurge-se contra as notícias juntadas aos autos, dizendo que as mesmas não possuem qualquer valor probante. Alega que a imposição de qualquer restrição de direitos ao paciente, mesmo que cautelar, por imputar-se a ele a autoria intelectual de tais atos criminosos, constitui verdadeiro arrepio aos princípios do devido processo legal e da ampla defesa, representando inafastável abuso de autoridade. Aduz sofrer o paciente constrangimento ilegal traduzido em sua inclusão no RDD sem a comprovação de prática de delito ou falta grave, nos termos da lei, sendo necessária a concessão do writ, a fim de que se garanta ao paciente sua permanência em estabelecimento penal destituído de regime mais gravoso. Culmina por pleitear liminarmente, a transferência do paciente para outro presídio da sede estatal, destituído do gravoso RDD.

A liminar foi indeferida (fls. 33/35), e a d. autoridade apontada como coatora prestou informações às fls. 38/40.

A douta Procuradoria Geral de Justiça opinou às fls. 54/60, opinou pelo não conhecimento da ordem ou, se conhecida, por sua denegação.

RELATADOS.

Com efeito, toda afronta aos Direitos Individuais dos cidadãos brasileiros, independentemente de raça, credo, condição financeira etc, desde que cause constrangimento ilegal, é, e sempre deverá ser passível de “habeas corpus”.

É de se observar, inclusive, que a impetrante questiona não só a ilegalidade RDD, como também pleiteia a transferência do detento para outro presídio da rede Estatal.

2. No que pertine ao mérito do pedido, razão assiste à impetrante.

É de se observar inicialmente não se poder deixar de considerar o grave momento vivido pelas instituições públicas, fruto de dezenas de anos de descaso para com as causas sociais, originando o nascimento de verdadeiro Estado Paralelo, que a medida ora questionada visa enfrentar.

Segundo consta dos autos, em 17 de maio de 2006, o Secretário da Administração Penitenciária de São Paulo representou pela internação cautelar do paciente em regime disciplinar diferenciado diante da necessidade e urgência da medida.

De acordo com a representação do Secretário, o paciente teria proferido ameaças contra ele e contra o Governador de São Paulo, desafiou as Autoridades Policiais e, juntamente com outros integrantes da facção criminosa, comandou os ataques e rebeliões ocorridas nos dias 13, 14 e 15 de maio na cidade de São Paulo constando, ainda, que o paciente se mantém líder da facção ameaçando e reprimindo a população prisional.

Segundo a d. autoridade apontada como coatora, o Secretário também representou pela posterior internação definitiva pelo prazo máximo previsto em lei e foi instaurada sindicância pela Secretaria para apurar os fatos, a qual será remetida ao Juízo quando concluída, sendo certo que também se aguardam as informações das Autoridades Policiais acerca dos fatos imputados ao ora paciente.

Ainda de acordo com as informações prestadas pela d. autoridade inquinada de coatora, em 18 de maio de 2006 foi deferida pelo Juízo, pelo prazo de noventa dias, a internação cautelar do ora paciente, nos termos do artigo 60 da lei de Execuções Penais.

Trata-se, no entanto, de medida inconstitucional, como se sustenta a seguir:

O chamado RDD (Regime disciplinar diferenciado), é uma aberração jurídica que demonstra à saciedade como o legislador ordinário, no afã de tentar equacionar o problema do crime organizado, deixou de contemplar os mais simples princípios constitucionais em vigor.

A questão já foi abordada por está 1ª Colenda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo:

Na ocasião, como muito bem asseverou o E. Des. Marco Nahum, no Habeas Corpus nº 893.915-3/5-00 – São Paulo (v.u), “o referido “regime disciplinar diferenciado” determina que o preso seja recolhido em cela individual, com saídas diárias de 02 horas para banho de sol, o que significa dizer que a pessoa fica isolada por 22 horas ao dia. Sua duração é de um ano, sem prejuízo de que nova sanção seja aplicada em virtude de outra falta grave, podendo o prazo de isolamento se estender até 1/6 da pena. Ainda é proibido ao preso que ouça, veja, ou leia qualquer meio de comunicação, o que significa dizer que não recebe jornais, ou revistas, assim como não assiste televisão, e não ouve rádio. Independentemente de se tratar de uma política criminológica voltada apenas para o castigo, e que abandona os conceitos de ressocialização ou correção do detento, para adotar “medidas estigmatizantes e inocuizadoras” próprias do “Direito Penal do Inimigo”[1], o referido “regime disciplinar diferenciado” ofende inúmeros preceitos constitucionais”.

E continua o insigne Magistrado, “trata-se de uma determinação desumana e degradante (art. 5º, III, da CF), cruel (art. 5º, XLVII, da CF), o que faz ofender a dignidade humana (art. 1º, III, da CF). Por fim, note-se que o Estado Democrático é aquele que procura um equilíbrio entre a segurança e a liberdade individual, de maneira a privilegiar, neste balanceamento de interesses, os valores fundamentais de liberdade do homem. O desequilíbrio em favor do excesso de segurança com a conseqüente limitação excessiva da liberdade das pessoas implica, assim, em ofensa ao Estado Democrático”.

E não é só.

O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, ao entender como inconstitucional o citado regime disciplinar, ainda deixou evidente que a medida “é desnecessária para a garantia da segurança dos estabelecimentos penitenciários nacionais e dos que ali trabalham, circulam e estão custodiados, a teor do que já prevê a Lei 7.210/84”.[2]

Se o acima narrado já não bastasse, o próprio Ministério da Justiça afirmou que “o isolamento não é boa prática; …; um modelo de gestão muito mais positivo é o de abrigar os presos problemáticos em pequenas unidades de até dez presos, com base de que é possível proporcionar um regime positivo para presos que causam transtorno, confinando-os em ‘isolamento em grupos’, em vez da segregação individual”.[3]

Assim, por toda a inconstitucionalidade inerente ao “RDD”, impõe-se o reconhecimento da ilegalidade da medida adotada contra o paciente, e a concessão do “writ”, a fim de que o reeducando seja imediatamente removido do “regime disciplinar diferenciado” a que foi transferido.

Comunique-se, incontinenti, a Vara das Execuções da Comarca em que se localiza o presídio para onde o paciente foi transferido a fim de cumprir o “RDD”.

Pelo exposto, concederam a ordem com o fim de determinar a imediata remoção do paciente do “regime disciplinar diferenciado”, com recomendação.

BORGES PEREIRA

Relator

 

Habeas Corpus nº 893.915-3/5-00 – São Paulo

Impetrante: Bel. Luís Henrique Marques

Paciente: Priscila Rodrigues de Souza

Voto nº 9048 – Relator MARCO NAHUM

“’Habeas Corpus’. Regime Disciplinar Diferenciado – RDD. Inconstitucionalidade. Ofensa a princípios fundamentais constantes da Constituição Federal. Ordem concedida.”

O advogado da FUNAP Luís Henrique Marques impetra “habeas corpus” em favor da detenta Priscila Rodrigues de Souza, matrícula 347.754, execução 624.129, em virtude de ter sido recolhida em “regime disciplinar diferenciado” por ato do MM. Juiz de Direito das Execuções Criminais de São Paulo.

Alega ausência de contraditório no procedimento disciplinar que acabou por punir a paciente, assim como a inconstitucionalidade do referido regime de execução de pena (fls. 02/05).

Foram prestadas informações (fls. 18/19).

A Procuradoria de Justiça é pela denegação da ordem (fls. 38/41).

É o relatório.

A paciente cumpria pena na Penitenciária Feminina do Butantã, quando ocorreu rebelião entre as detentas.

Segundo a inicial, com o fim da rebelião, que durou algumas horas, a Direção do Presídio indicou 52 reeducandas como participantes ativas do movimento e, após autorização judicial, houve a transferência de todas para o “regime disciplinar diferenciado”, inclusive a paciente.

O referido “regime disciplinar diferenciado” determina que o preso seja recolhido em cela individual, com saídas diárias de 02 horas para banho de sol, o que significa dizer que a pessoa fica isolada por 22 horas ao dia. Sua duração é de um ano, sem prejuízo de que nova sanção seja aplicada em virtude de outra falta grave, podendo o prazo de isolamento se estender até 1/6 da pena.

Ainda é proibido ao preso que ouça, veja, ou leia qualquer meio de comunicação, o que significa dizer que não recebe jornais, ou revistas, assim como não assiste televisão, e não ouve rádio.

Independentemente de se tratar de uma política criminológica voltada apenas para o castigo, e que abandona os conceitos de ressocialização ou correção do detento, para adotar “medidas estigmatizantes e inocuizadoras” próprias do “Direito Penal do Inimigo”[1], o referido “regime disciplinar diferenciado” ofende inúmeros preceitos constitucionais.

Trata-se de uma determinação desumana e degradante (art. 5º, III, da CF), cruel (art. 5º, XLVII, da CF), o que faz ofender a dignidade humana (art. 1º, III, da CF).

Por fim, note-se que o Estado Democrático é aquele que procura um equilíbrio entre a segurança e a liberdade individual, de maneira a privilegiar, neste balanceamento de interesses, os valores fundamentais de liberdade do homem.

O desequilíbrio em favor do excesso de segurança com a conseqüente limitação excessiva da liberdade das pessoas implica, assim, em ofensa ao Estado Democrático.

Neste sentido, o próprio Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, ao entender como inconstitucional o citado regime disciplinar, ainda deixou evidente que a medida “é desnecessária para a garantia da segurança dos estabelecimentos penitenciários nacionais e dos que ali trabalham, circulam e estão custodiados, a teor do que já prevê a Lei 7.210/84”.[2]

Ainda sobre o referido excesso da medida, o próprio Ministério da Justiça afirmou que “o isolamento não é boa prática; …; um modelo de gestão muito mais positivo é o de abrigar os presos problemáticos em pequenas unidades de até dez presos, com base de que é possível proporcionar um regime positivo para presos que causam transtorno, confinando-os em ‘isolamento em grupos’, em vez da segregação individual”.[3]

Assim, por toda a inconstitucionalidade inerente ao “RDD”, impõe-se o reconhecimento da ilegalidade da medida adotada contra a paciente, e a concessão do “writ”, a fim de que a reeducanda seja imediatamente removida do “regime disciplinar diferenciado” a que foi transferida.

Ficam prejudicados os demais argumentos da paciente.

Comunique-se, incontinenti, a Vara das Execuções da Comarca em que se localiza o presídio para onde a paciente foi transferida a fim de cumprir o “RDD”.

Pelo exposto, concederam a ordem com o fim de determinar a imediata remoção da paciente do “regime disciplinar diferenciado”, com recomendação.

MARCO NAHUM

 


 

[1] Sobre o tema ver nosso artigo “O retorno dos conceitos de periculosidade, e de inocuização, como “defesa” da sociedade globalizada”; Boletim do IBCCRIM 161; abril/2006. p. 14/15.

[2] Parecer publicado no Boletim do IBCCRIM 155; outubro/2005. p. 14/15.

[3] Andrew Coyle. Administração Penitenciária: Uma abordagem de Direitos Humanos – Manual para Servidores Penitenciários: Londres: International Center for Prision Studies. King´s College London, Ministério da Justiça do Brasil e Embaixada Britânica – Brasília, 2004. p. 91/92; citado no Parecer do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

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