Dossiê Cayman

Jornalista não deve indenizar por chamar empresário de delator

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6 de agosto de 2006, 7h00

O jornalista Leandro Fortes e a Editora Globo estão livres de indenizar por danos morais o empresário Paulo de Tarso. A decisão é do juiz Iberê de Castro Dias, da 26ª Vara Cível de São Paulo.

O empresário pediu indenização porque foi chamado de informante da polícia e delator na reportagem Lucros e perdas do Dossiê Cayman publicada na revista Época, onde o jornalista trabalhava, na edição de 21 de maio de 2001.

Tarso alegou que a reportagem insinuou que ele roubou documentos. Também argumentou que a fotografia dele próxima a de outro mencionado na reportagem deu a entender que estariam no mesmo local. Por isso, pediu R$ 150 mil de indenização por danos morais.

A Editora Globo, representada pelo advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, alegou que os fatos noticiados são verdadeiros e que a reportagem não causou danos à imagem do empresário.

Segundo o juiz, a liberdade de imprensa tem que ser preservada para “rechaçar qualquer possibilidade de retorno aos tempos sombrios de controle intelectual dos meios de comunicação”.

Para o juiz, a imprensa tem a função social de fiscalizar a prestação de serviços da sociedade e não se pode proibi-la de divulgar fatos. Principalmente quando as informações, baseadas em documentação, podem revelar falhas na administração pública ou crimes cometidos por funcionário público. No caso, como o jornalista escreveu a notícia fundamentada em documentos, não se pode falar em abuso da sua liberdade, afirmou.

Quanto ao fato de ter mencionado o nome do empresário como informante da polícia, o juiz entendeu que não houve dano moral. “Bem ao revés, demonstra que o autor teria contribuído positivamente para as investigações, voltadas a apurar fato criminoso de relevo para a política pátria. Os termos ‘informante’ e ‘delator’ não se prestam a desmerecer o autor, mas a revelar que auxiliou com os serviços policiais.”

Segundo o juiz, a reportagem só afirma que “Paulo de Tarso e Eduardo Passo forneceram papéis encontrados no escritório de Silva à Polícia Federal” e que mesmo que essa afirmação fosse falsa, isso não seria motivo para desaboná-lo. De acordo com o juiz, não há nenhuma menção na reportagem de que o empresário teria roubado documentos.

Com relação às fotografias, o juiz entendeu que “contém nítida divisão” entre as fotos de Paulo de Tarso e Eduardo Passo, “não havendo qualquer menção ou sugestão de que estivessem no mesmo local.” Assim, condenou Paulo de Tarso ao pagamento de custas processuais e honorários advocatícios fixados em R$ 15 mil.

O dossiê Cayman acusava, em 1998, o então presidente Fernando Henrique Cardoso e outros integrantes do PSDB de manterem uma conta clandestina em uma empresa no Caribe.

Outra tentativa

Em conseqüência da mesma notícia, Paulo de Tarso entrou com queixa-crime por calúnia, injúria e difamação contra o repórter Leandro Fortes. A primeira instância da Justiça Criminal rejeitou o pedido.

O juiz Décio de Moura Notarangeli, da 1ª Vara Criminal do Foro de Pinheiros, em São Paulo, entendeu que “embora fortes as expressões ‘informante’ e ‘delator’, usadas para qualificar o querelante, a elas não se recorreu imotivadamente, de forma gratuita e despropositada, fora do contexto da reportagem vista como um todo”.

Uma outra queixa-crime interposta pelo empresário contra o jornalista foi aceita pela Justiça Criminal de São Paulo.

Leia a íntegra da sentença:

PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Autos nº: 583.004.01.023352 – 4

I – RELATÓRIO

Cuida-se de procedimento ordinário movido por PAULO DE TARSO CÂNDIDO RIBEIRO em face de EDITORA GLOBO S/A e LEANDRO FORTES.

O autor alegou, na exordial, ter tido sua honra ofendida por matéria assinada pelo segundo réu e publicada em periódico editado pela primeira ré.

Afirmou que a reportagem teria empregado termos desabonadores de sua personalidade, tratando-o por informante da polícia, nas investigações referentes ao “Dossiê Cayman”.

Seguiu dizendo que a reportagem insinuaria roubo de documentos por ele perpetrado. Versou sobre fotografia de sua imagem, estampada na revista, dando a entender que estaria no mesmo local de outra pessoa retratada no mesmo espaço, o que não teria ocorrido.

Discorreu sobre abalos morais que teria experimentado. Requereu indenização no valor de R$ 150.000,00. Juntou documentos.

Validamente citados, os réus ofereceu contestação asseverando ausência de ilicitude na divulgação da matéria atacada.

Trataram da veracidade dos fatos noticiados, relacionados ao autor. Afastaram a suposta mácula à honradez do autor.

Entenderam, consequentemente, ter demonstrado a improcedência do pedido. Juntaram documentos.


Manifestando-se quanto à contestação, o autor bateu-se pela procedência do pedido inicial.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Uma vez que os pontos controvertidos limitam-se a questões de direito, cabível o julgamento antecipado do feito, em obediência ao artigo 330, I, da Lei Processual Civil.

Preambularmente, não se há falar em prescrição ou decadência.

É que o prazo previsto no artigo 56 da Lei 5250/67, de 90 dias, não foi recepcionado pela Constituição Federal, que dispõe sobre o direito à reparação de danos experimentados, ainda que por divulgação em órgão de imprensa, sem qualquer previsão limitadora.

Logo, o prazo prescricional é o previsto na Lei Civil. Para o mesmo Norte aponta a jurisprudência das Cortes pátrias, dentre as quais o Excelso Pretório, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça e o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“DANO MORAL – Indenização – Ofensa praticada por órgão da imprensa – Decadência – Inocorrência – Não recepção do art. 56 da Lei 5.250/67 pela Carta Magna – Matéria tratada de forma especial pela Lei Maior – Interpretação do art. 5.o, V e X, da CF.” (STF RT 831/191)

“DANO MORAL – Ação indenizatória – Lei de Imprensa – Decadência – Inocorrência – Art. 56 da Lei 5.205/67 que não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988.” (STF RT 829/131)

“AÇÃO INDENIZATÓRIA – Lei de Imprensa – Nulidade processual – Inocorrência – Falta de juntada do inteiro teor do periódico em que foi publicada a notícia ofensiva – Suficiência da exibição da folha impressa, mormente quando os réus não negam o conteúdo.

“DECADÊNCIA – Inocorrência – Dano moral – Lei de Imprensa – Lapso decadencial disciplinado na Lei 5.250/67, que não prevalece após a Constituição Federal de 1988.” (STJ RT 829/155)

“DANO MORAL – Ação indenizatória – Decadência – Inocorrência – Lei de Imprensa – Ofensa originada por veiculação de matéria jornalística – Prazo previsto no art. 56 da Lei 5.250/67 que não foi recepcionado pela Carta Magna – Hipótese em que deve ser aplicado o lapso decadencial mais elástico previsto pela legislação civil – Voto vencido.” (TJSP RT 832/219)

Presentes os pressupostos processuais e as condições da ação.

Para que se evidencie a ocorrência do ato ilícito civil, mister se verifiquem ação ou omissão contrárias à lei, prejuízo, nexo causal e culpa ou dolo do agente.

Os escombros do período ditatorial fizeram com que o legislador constitucional traçasse regras de comunicação social norteadas pela liberdade de pensamento, com vistas a rechaçar qualquer possibilidade de retorno aos tempos sombrios de controle intelectual dos meios de comunicação.

Assim é que, no artigo 220, deixou grafado que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.”

“O reconhecimento da função social dos meios de comunicação não é importante apenas para o fim de disciplinar as sanções ao seu abuso. Igualmente relevante é a consideração dessa função para disciplinar as garantias que se devem assegurar à imprensa para o escorreito desempenho de seus fins.”

O mesmo autor prossegue, tratando especificamente das hipóteses de notícia de interesse coletivo.

“Pode suceder, no entanto, que a mera revelação da existência de indícios seja de relevância para o interesse geral. Como regra geral, isso não se dá. Se existem boatos ou rumores de que tal ou qual indivíduo praticou tal ou qual ato desonroso ou está em tal ou qual situação vexatória, em princípio a revelação desses boatos ou rumores, de per si maculadores do bom nome, não se reveste de interesse social ou público; mas situações há em que a mera suspeita é relevante e pode e deve ser ventilada. Imagine-se, por exemplo, a suspeita, fundada em alguns importantes indícios, de que o chefe do Executivo estadual estaria favorecendo determinadas empresas em uma licitação, cujo resultado é iminente. Pôr à luz esses indícios é de vital importância numa democracia, porque facilita o convencimento de outras autoridades de que é necessário investigar a acusação. Quando a suspeita passa a ser verdadeiramente notícia relevante, não se vê por que um meio de comunicação não a poderia difundir; mas é claro que se difunde a existência de suspeita enquanto suspeita, ou então, se foi o caso, a existência de uma acusação enquanto acusação.”

E, adiante, arremata:

“Nesse sentido, o critério proposto tende a aplicar-se, prevalentemente, a pessoas que ocupam cargos públicos, o que estaria amparado pelo próprio sentido político da ‘função social dos meios de comunicação. (…) Se à imprensa incumbe o papel de fiscalizar o bom serviço da sociedade, não se pode acoimar de abusiva sua ação de divulgar fatos dos quais tinha tomado conhecimento e que poderiam revelar a existência de falhas na administração pública ou mesmo crime cometido por funcionário público, desde que não estivesse a acusar ninguém, mas só a apontar, fundada em fatos já constatados, a existência de obscuridades que deviam ser esclarecidas pelas autoridades competentes. É como se torna possível conciliar a liberdade de imprensa com a boa fama das pessoas exercentes de cargos públicos”


Extrai-se da narração da exordial, confirmada pela resposta, que os réus, em matéria publicada em semanário nacional, discorreram sobre o que se convencionou denominar “Dossiê Cayman”, conjunto de documentos tendentes a demonstrar suposto envolvimento do Ex-Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, além de outras três personalidades do mesmo partido (PSDB), com remessa ilegal de divisas a paraíso fiscal, no Caribe.

Da longa matéria jornalística, vê-se que o foco principal está em demonstrar que os documentos que formavam o dossiê seriam falsos, além de indicar, dentre personagens do cenário político nacional, aqueles que obtiveram vantagens e prejuízos, tanto na órbita pecuniária, quanto na esfera eleitoral.

A atuação do autor, frise-se, de importância secundária na trama enunciada pelo réu, foi retratada em breve passagem alusiva ao modo como a Polícia Federal teria obtido informações que contribuíssem com as investigações de falsidade do teor do dossiê.

Nesta esteira, a página 42 da edição do semanário, acostado a fls. 23 dos autos, contém menção de que o autor seria um dos informantes da Polícia Federal, além de desafeto de Honor da Silva, também envolvido nos fatos.

O fato de ser mencionado como informante da polícia não consubstancia razão bastante a ensejar gravame moral ao autor.

Bem ao revés, demonstra que o autor teria contribuído positivamente para as investigações, voltadas a apurar fato criminoso de relevo para a política pátria.

Os termos “informante” e “delator” não se prestam a desmerecer o autor, mas a revelar que auxiliou com os serviços policiais.

Aliás, somente nos meandros da criminalidade, de pessoas que guardam estreito convívio com quem se veja constantemente às voltas com intercorrências policiais, é que o delator de crime às autoridades policiais é tomado por figura espúria.

E a situação do autor, conforme seus próprios relatos, é diametralmente oposta.

De outra parte, o texto é claro ao grafar que Eduardo Passo é quem “teria roubado do escritório de Silva alguns documentos que entregou à PF.”

Não há, ao longo de toda a reportagem, qualquer imputação ao autor de roubo dos documentos em pauta. Tampouco a legenda da foto contém-na.

Limita-se a asseverar que “Paulo de Tarso e Eduardo Passo forneceram papéis encontrados no escritório de Silva à Polícia Federal”, informação que, ainda que se revelasse falsa, nada de desabonador traz ao autor, capaz de lhe manchar a honra ou a dignidade.

Não foi outra a conclusão alcançada pelo ínclito magistrado Décio de Moura Notarangeli, ao rejeitar queixa-crime movida pelo autor em face do réu Leandro Fortes, por suposta prática de crimes previstos na Lei 5250/67 (fls. 266/271, ao qual me reporto, para evitar longa transcrição de texto já encartado aos autos).

Em síntese, concluiu o julgador que “embora fortes as expressões ‘informante’ e ‘delator’, usadas para qualificar o querelante, a elas não se recorreu imotivadamente, de forma gratuita e despropositada, fora do contexto da reportagem vista como um todo, mesmo porque o próprio querelante não nega seu envolvimento com Honor Rodrigues da Silva (fls. 24/26), de modo que em face da controvérsia existente não há como considerá-las ofensiva à honra.” (fls. 270/271)

De outro bordo, é de rigor frisar que as fotografias do autor e de Eduardo Passo contém nítida divisão, não havendo qualquer menção ou sugestão de que estivessem no mesmo local.

Depreende-se, pois, que matéria jornalística não aviltou a moral do autor.

Consoante os magistérios de Humberto Theodoro Jr., referindo-se a Carlos Alberto Bittar:

“Danos morais são os danos de natureza não-econômica e que se traduzem em turbações de ânimo, em reações desagradáveis, desconfortáveis e constrangedoras, ou outras desse nível, produzidas na esfera do lesado. (…) De maneira mais ampla, pode-se afirmar que são danos morais os ocorridos na esfera da subjetividade, ou no plano valorativo da pessoa na sociedade, alcançando os aspectos mais íntimos da personalidade humana (o da intimidade e da consideração pessoal) ou da própria valoração da pessoa no meio em que vive e atua (o da reputação ou da consideração social).” (Dano Moral, p. 2, Oliveira Mendes, 1998)

Com a previsão do artigo 5º, inciso X, da Carta Magna a indenização por danos de aspecto moral tornou-se palco de infindáveis querelas doutrinárias e jurisprudenciais, mormente com a proliferação de demandas acerca do tema.

Tem-se buscado, é bem de ver, coibir a utilização do instituto como meio de enriquecimento sem causa, atitude louvável e que deve ser reforçada.

Curiosamente, tem-se a impressão de que, após o advento da Constituição de 1988, os jurisdicionados tornaram-se psicologicamente mais sensíveis aos contratempos inerentes à vida social.

Passou-se a pleitear ofensa à honra com freqüência infinitamente superior à de outrora, muito embora a previsão da indenização por danos morais já estivesse consagrada legal e doutrinariamente há tempos.

Como afirmou José Ozório de Azevedo Júnior, eminente Desembargador e Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em palestra proferida na AASP, o dano moral “não tem por objetivo amparar as suscetibilidades exageradas”.

Somente o fato excepcional, anormal, que refoge a problemas cotidianos ordinários, maculando as honras objetiva ou subjetiva do autor de modo sério, pode ensejar indenização por danos extrapatrimoniais.

Diverso o caso dos autos, em que não se vislumbra violação da honra do autor.

Como já assentou o Excelso Pretório: “A dor indenizável é aquela que afeta sobremaneira a vítima, que atinge sua esfera sua esfera legítima de afeição, que agride seus valores, que a humilha, expõe, fere, causando danos, na maior parte das vezes irreparável, devendo a indenização ser fixada apenas como forma de aplacar a dor.” (STF RT 829/128)

Desta feita, ausentes os pressupostos do ato ilícito, o pedido inicial não colhe foros de prosperidade.

III – DISPOSITIVO

Por todo o aduzido alhures, julgo improcedente o pedido inicial.

Condeno o autor ao pagamento de custas processuais e honorários advocatícios, fixados em R$ 15.000,00, equivalentes a 10% do valor pedido a título de indenização.

Note-se que, se procedente o pedido, este seria o valor devido pelos réus ao patrono do autor, não se admitindo diferenciar a verba honorária conforme a sorte do julgamento, sob pena de quebra da isonomia.

P.R.I.

São Paulo, 25 de julho de 2006.

Iberê de Castro Dias

Juiz de Direito

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