Dona da ação

STJ reconhece legitimidade de entidade para defender consorciados

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6 de agosto de 2006, 7h00

A Unicons — União Nacional em Defesa de Consumidores Consorciados e Usuários do Sistema Financeiro tem legitimidade para ajuizar ação coletiva na defesa de direitos individuais homogêneos. A decisão, em votação unânime é da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça seguindo voto da relatora, ministra Nancy Andrighi.

Em julgamento de Recurso Especial a 3ª Turma manteve acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul para reconhecer a legitimidade da Unicons e condenar as empresas Brozauto Administradora de Consórcio, Brozauto Veículos e Montreal Comercial de Automóveis a devolver aos consumidores dinheiro pago a mais na venda de veículos novos.

A decisão do STJ abre caminho para os consumidores que adquiriram carros da empresa e se sentiram lesados a procurar Justiça para reaver valores pagos a mais. “A questão jurídica processual referente à existência de legitimidade ativa de entidade associativa de defesa dos consumidores para a propositura de ação coletiva na tutela dos interesses e direitos individuais homogêneos, é matéria pacífica neste Tribunal”, afirma a ministra relatora em seu voto.

De acordo com a decisão do Tribunal de Justiça gaúcho, mantida pelo STJ, ficou comprovado nos autos a cobrança superfaturada nos fretes de veículos novos adquiridos por consumidores diretos e consorciados.

As empresas alegavam que a lei não obriga que o valor do frete pago pelas concessionárias de veículos e administradoras de consórcios seja idêntico ao cobrado dos consumidores compradores de veículos novos.

Considerando as provas apresentadas no processo, inclusive laudo pericial que atestou a cobrança indevida de valores pelas concessionárias de veículos e administradora de consórcio, a 3ª Turma do STJ manteve a decisão do TJ gaúcho.

“Admite-se a repetição simples do indébito, não importando a prova do erro, com o objetivo de vedar o enriquecimento ilícito do fornecedor em detrimento do consumidor”, conforme ementado no voto.

Leia o voto da relatora

RECURSO ESPECIAL Nº 761.114 – RS (2005/0060864-7)

RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI

RECORRENTE: UNICONS UNIÃO NACIONAL EM DEFESA DE CONSUMIDORES CONSORCIADOS E USUÁRIOS DO SISTEMA FINANCEIRO E OUTRO

ADVOGADO: ROBERTO OZELAME OCHOA E OUTROS

RECORRENTE: BROZAUTO ADMINISTRADORA DE CONSÓRCIOS LTDA E OUTROS

ADVOGADOS: CARLOS MÁRIO DA SILVA VELLOSO FILHO

SÉRGIO CARVALHO LEANDRO PINTO DE AZEVEDO E OUTROS

RECORRIDO:OS MESMOS

EMENTA

Direito do consumidor e processo civil. Recurso especial. Ação coletiva. Entidade associativa de defesa dos consumidores. Legitimidade. Possibilidade jurídica do pedido. Direitos individuais homogêneos. Cerceamento de defesa. Concessionárias de veículos e administradora de consórcio. Cobrança a maior dos valores referentes ao frete na venda de veículos novos. Restituição.

– A pertinência subjetiva da entidade associativa de defesa do consumidor para ajuizar ação coletiva bem como a possibilidade jurídica do pedido se manifestam pela natureza dos interesses e direitos tutelados – individuais homogêneos.

– Os direitos individuais homogêneos, por definição legal, referem-se a um número de pessoas ainda não identificadas, mas passível de ser determinado em um momento posterior, e derivam de uma origem comum, do que decorre a sua homogeneidade.

– A origem comum dos direitos individuais homogêneos versados neste processo consiste na cobrança indevida de valores referentes aos fretes dos veículos novos adquiridos das empresas concessionárias de veículos e administradora de consórcio por inúmeros consumidores.

– Não se abre a via especial se, com base no delineamento fático-probatório do processo constou do acórdão recorrido que não houve demonstração do prejuízo das partes ao não ter sido oportunizada a produção da prova testemunhal requerida, como também ao não ter sido concedido prazo para apresentação de razões finais antes da prolação da sentença, que julgou antecipadamente a lide.

– A pretensão condenatória de serem restituídos valores pagos indevidamente comporta a aplicação do prazo prescricional previsto no art. 205 do CC/02, ante a incidência da regra de transição do art. 2.028 do CC/02.

– Se o Tribunal estadual, com base nos fatos e provas apresentados no processo, inclusive laudo pericial, atestou a ocorrência de cobrança indevida de valores pelas concessionárias de veículos e administradora de consórcio, é vedado reexaminar, em sede de recurso especial, o delineamento fático-probatório posto, porque ao STJ só é dado fixar a jurisprudência acerca da interpretação de lei federal.

– Admite-se a repetição simples do indébito, não importando a prova do erro, com o objetivo de vedar o enriquecimento ilícito do fornecedor em detrimento do consumidor.

– A reversão do produto da indenização para o fundo criado pela Lei n.º 7.347/85 é possível, desde que, decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, tenha a entidade associativa de defesa dos consumidores promovido a liquidação e execução da indenização devida (art. 100 do CDC).

– Aplicável a regra prevista no § 4º do art. 20 do CPC quando a condenação não evidencia um conteúdo econômico imediato.

– Sendo o pedido genérico, a condenação não se particulariza em valores líquidos, razão pela qual é preciso proceder à sua liquidação e, posteriormente, à sua execução.


Recursos especiais não conhecidos.

ACÓRDÃO

Brasília (DF), 03 de agosto de 2006 (Data do Julgamento).

MINISTRO CASTRO FILHO

Presidente

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

Relatora

RELATÓRIO

Dois recursos especiais:

1º) interposto por UNICONS – UNIÃO NACIONAL DE DEFESA DE CONSUMIDORES CONSORCIADOS E USUÁRIOS DO SISTEMA FINANCEIRO e outro, com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional;

2º) interposto por BROZAUTO ADMINISTRADORA DE CONSÓRCIOS LTDA e outros, com fundamento na alínea “a”.

Ação: coletiva de reparação de danos ajuizada pela UNICONS e Atacado Kamer – Comércio de Brinquedos LTDA, em face das empresas Brozauto Administradora de Consórcio Ltda, Brozauto Veículos Ltda e Montreal Comercial de Automóveis Ltda.

Aludem que, após denúncias dos consorciados, ficou constatado que as empresas ocupantes do pólo passivo estavam lesando os consumidores ao adotarem como preço dos bens comercializados quantias irreais, como também ao cobrarem valores a título de “frete” superiores àqueles pagos às transportadoras, por ocasião da venda dos veículos aos consumidores, consorciados ou não da Brozauto.

Foi requerido, portanto, que a administradora de consórcio fosse condenada “a restituir a cada integrante dos grupos de consórcio que administra ou que tenha administrado, as importâncias relativas ao Seguro de Vida, Fundo de Reserva e Taxa de Administração, indevidamente cobradas sobre a diferença entre o valor real do frete cobrado pelas transportadoras e o valor efetivamente cobrado pelas concessionárias ou, na falta de especificação do valor do frete na Nota Fiscal, como manda a lei, a diferença entre o valor real (que consta do conhecimento de transporte a ser trazido aos autos) e aquele constante na tabela de frete organizada e adotada pelas revendas” (fl. 29).

Pleitearam, também, pela condenação das concessionárias a “restituírem a todos os consumidores consorciados e não consorciados do Consórcio BROZAUTO e que tenham adquirido veículos novos das concessionárias Rés, o ágio cobrado sobre o valor real do frete, ágio este expresso pela diferença entre o valor real do frete cobrado pelas transportadoras e o valor efetivamente cobrado pelas concessionárias” (fl. 29).

Pugnaram, ainda, pela fixação das indenizações em valor equivalente ao dobro do que foi indevidamente cobrado, nos termos do art. 42 do CDC, como também pelo estabelecimento de multa diária por descumprimento, no valor de R$ 1.000,00 (mil reais).

Sentença (fls. 825/834): o pedido foi julgado parcialmente procedente para:

a) condenar as concessionárias a discriminar em suas notas fiscais de venda de veículos novos o valor exato da despesa com o frete, em simetria com o que for efetivamente despendido a esse título, sob pena de multa igual ao dobro do valor sonegado ou superestimado;

b) condenar as concessionárias a restituir aos adquirentes de veículos novos a diferença recebida a maior referente ao valor do frete;

c) condenar a administradora de consórcios a restituir aos consorciados as diferenças recolhidas a maior a título de taxa de administração, seguro e fundo de reserva;

d) condenar, tanto as concessionárias como a administradora de consórcio, a publicar os dispositivos da sentença (letras “a” até “c”) em jornais de ampla circulação estadual, em momentos alternados, no prazo de até trinta dias contados do trânsito em julgado, na forma de aviso;

e) condenar, por fim, as empresas rés ao pagamento integral das custas, honorários periciais, e honorários advocatícios, estes fixados nos termos do art. 20, § 4º, do CPC.

Acórdão (fls. 959/1.013): o TJ/RS negou provimento ao recurso de apelação interposto pelas empresas rés e conferiu parcial provimento ao apelo das autoras para declarar que o prazo prescricional aplicado à espécie está regulado no art. 177 do CC/16 e reconhecer a legitimidade ativa extraordinária da UNICONS para o procedimento de liquidação e execução do julgado coletivo.

Embargos de declaração interpostos pelas empresas rés: rejeitados, com aplicação da multa prevista no art. 538 do CPC, equivalente a 1% sobre o valor da causa atualizado.

Recurso especial interposto por UNICONS – UNIÃO NACIONAL EM DEFESA DE CONSUMIDORES, CONSORCIADOS E USUÁRIOS DO SISTEMA FINANCEIRO e ATACADO KAMER COMÉRCIO DE BRINQUEDOS LTDA: alegam violação ao art. 20, § 4º, do CPC e dissídio jurisprudencial, por entenderem que deveria ter sido aplicado o regramento estabelecido no § 3º do referido dispositivo.

Recurso especial interposto por BROZAUTO ADMINISTRADORA DE CONSÓRCIOS LTDA, BROZAUTO VEÍCULOS E PEÇAS LTDA e MONTREAL COMERCIAL DE AUTOMÓVEIS LTDA: alegam as recorrentes:


a) preliminarmente:

i) violação ao art. 535, inc. II, do CPC, e divergência jurisprudencial, por negativa de prestação jurisdicional;

ii) violação aos arts. 330, inc. I, e 454, do CPC, e divergência jurisprudencial, por ter havido cerceamento de defesa ao não ter sido oportunizada a produção da prova testemunhal requerida e não ter sido concedido prazo para apresentação de razões finais antes da prolação da sentença;

iii) violação aos arts. 81, caput, e parágrafo único, 82, inc. IV, e 91, do CDC; 2º-A da Lei 9.494/97, sustentando a ilegitimidade ativa da UNICONS, porque a sua legitimação extraordinária depende da delimitação de seus filiados e expressa autorização destes, asseverando ainda que a entidade associativa só pode defender interesses e direitos de seus associados; aduzem ainda a impossibilidade jurídica do pedido por considerar que não foram configurados interesses individuais homogêneos;

b) no mérito:

iv) violação aos arts. 177, 178, § 9º, inc. V, do CC/16, e 27 do CDC, defendendo que o prazo prescricional na hipótese deve ser o de 4 (quatro) anos ou o qüinqüenal previsto no CDC, e não o vintenário, com entendeu o TJ/RS;

v) violação aos arts. 13, caput, §§ 1º e 2º, da Lei 6.729/79; 4º, inc. III, e 51, inc. IV, do CDC, por ter o Tribunal de origem “reconhecido a impossibilidade da cobrança do frete de consumidor final (…) pelas recorrentes em contratos de compra e venda de automóveis” (fl. 1.081);

vi) violação ao art. 5º da Lei 5.768/71, porque a orientação sufragada pelo Tribunal de origem acarretou o rompimento do “equilíbrio da equação própria do sistema de consórcio no qual o que deve servir de base de cálculo para a incidência das taxas contratadas é o valor do crédito efetivamente outorgado ao consorciado e não um suposto correto valor do bem pelo mesmo adquirido” (fl. 1.087);

vii) violação aos arts. 11 do Dec. 22.626/33; 18, inc. II, 19, inc. IV, 20, inc. II, 41, 51, § 2º, do CDC; por entenderem que não se está diante de hipótese que justifique a possibilidade de repetição do indébito;

viii) violação aos arts. 97, 98 e 100, do CDC, e 13 da Lei 7.347/85, por ter o Tribunal de origem permitido a reversão da indenização para o fundo de que trata o art. 100 do CDC, na hipótese de os efetivos titulares dos interesses individuais homogêneos não habilitarem seu crédito.

Contra-razões: às fls. 1.107/1.112 e 1.115/1.120.

Parecer do MPF: o i. Subprocurador-Geral da República, Pedro Henrique Távora Niess, opinou pelo não conhecimento do recurso especial interposto pela UNICONS e, pelo parcial conhecimento mas na parte em que conhecido pelo não provimento, do recurso especial interposto pela BROZAUTO e outros.

É o relatório.

VOTO

A temática preponderante trazida a debate consiste na possibilidade de condenação de administradora de consórcios e concessionárias de veículos à restituição das diferenças entre os valores dos fretes pagos às transportadoras e os valores dos fretes efetivamente cobrados dos consumidores adquirentes de veículos novos.

– Do recurso especial interposto por BROZAUTO ADMINISTRADORA DE CONSÓRCIOS LTDA, BROZAUTO VEÍCULOS E PEÇAS LTDA e MONTREAL COMERCIAL DE AUTOMÓVEIS LTDA

Na ordem da prejudicialidade que comportam, serão julgados os tópicos trazidos a debate pelas recorrentes.

i) Da violação ao art. 535, inc. II, do CPC, e do dissídio

(da negativa de prestação jurisdicional)

Sustentam as recorrentes que o TJ/RS deixou de se pronunciar a respeito:

i) do cerceamento de defesa diante da impossibilidade de oferta de memoriais, ocasionando violação aos arts. 454, caput, e § 3º, e 456, do CPC;

ii) da ilegitimidade ativa da UNICONS, redundando em ofensa ao art. 2º-A da Lei n.º 9.494/97, como também “da impossibilidade de liquidação e de execução do julgado por parte da UNICONS, com a conseqüente reversão da indenização ao fundo previsto pelo artigo 100 da Lei nº 8.078/90” (fl. 1.071), invocando ofensa aos arts. 13 da Lei n.º 7.347/85, e 5º, inc. XXII, da CF.

As matérias jurídicas acima referidas foram apreciadas da seguinte forma pelo Tribunal estadual:

i) do cerceamento de defesa:

(fl. 970) – (…) quanto à supressão dos memoriais escritos, não houve qualquer nulidade processo-procedimental na causa, seja porque ocorreu o julgamento da causa conforme o estado do processo (art. 330, inc. I, 2a. hip., do C.P.C.), seja porque as questões nucleares litigadas já haviam sido objeto de prova pericial e, após a juntada do seu respectivo laudo aos autos, as partes tiveram a oportunidade de debatê-lo e contraditá-lo amplamente, assim esgotando-se a fase de instrução da lide, consoante acima referido. Assim, a oportunização de memoriais a ambos os pólos litigantes teria um efeito processual meramente retardatário, repetitivo e tautológico na lide, porque o que havia para ser comentado, em termos probatórios, já o havia sido pelas partes. Nada mais consentâneo, por conseguinte, que tenha sobrevindo o julgamento antecipado da lide, conforme o estado do processo. Para mais disto, registre-se que as AA. também não apresentaram memoriais escritos e as RR., no 2º. apelo, novamente limitaram-se a alegar, mas não provaram, o seu pretenso prejuízo.


ii) da ilegitimidade ativa da UNICONS e reversão da indenização:

(fl. 971) – É cristalina a legitimidade ad causam extraordinária concorrente e disjuntiva da co-A. UNICONS para a propositura da ação civil coletiva ora examinada, pois trata-se de uma associação nacional de defesa de consumidores sem fins lucrativos, regularmente constituída desde 1994 (docs. fls. 34/39), cujo estatuto prevê expressamente, nos seus artigos 1º. e 2º., alíneas “a” a “f” (fl. 34), que os seus fins sociais dirigem-se à promoção da defesa dos interesses e direitos individuais homogêneos de consumidores signatários de contratos adesivos (de e por) junto a empresas administradoras de consórcios e demais agentes do mercado privado, inclusive instituições financeiras, securitárias, etc. Portanto, sob o prisma da sua qualificação orgânica e instrumental, a UNICONS comprovou, modo induvidoso, o seu credenciamento para a lide.

(fl. 980) – Na esteira dessa legitimação ativa ad causam extraordinária concorrente e disjuntiva da associação nacional de defesa de direitos de consumidores para a ação civil pública (lide de cognição ampla), nada mais consentâneo e sistemático, de lege lata, do que a sua legitimação ativa ad causam – também concorrente e disjuntiva – para o procedimento de liquidação e o processo de execução do julgado que deu pela procedência das pretensões nela deduzidas, a partir do que dispõem peculiarmente os artigos 97, 98, caput (1a. hip.), 100 e 103, inc. III, todos do C.D.C.

(fl. 982) – (…) ocorrendo a hipótese prevista no art. 100, caput (decurso de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano), do C.D.C., os entes e pessoas discriminados no art. 82 estão legitimados à reparação global, ou residual, se for o caso, dos danos apurados na liquidação do julgado. (…) Por fim, na esteira do preceituado no caput do art. 100, a regra mandatória disposta no seu parágrafo único dispõe que o produto da indenização pelo dano globalmente causado destina-se ao Fundo criado pela Lei nº. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública). (grifos conforme o original)

Dos trechos do acórdão recorrido acima reproduzidos, depreende-se que o Tribunal de origem conferiu a prestação jurisdicional, sem omissões no julgado, em decisão devidamente fundamentada, embora em sentido contrário aos interesses das recorrentes, o que não configura violação ao art. 535, inc. II, do CPC.

ii) Da violação aos arts. 81, caput, e parágrafo único, 82, inc. IV, e 91, do CDC; 2º-A da Lei 9.494/97 (da ilegitimidade ativa e da impossibilidade jurídica do pedido)

A questão jurídica processual referente à existência de legitimidade ativa de entidade associativa de defesa dos consumidores para a propositura de ação coletiva na tutela dos interesses e direitos individuais homogêneos, é matéria pacífica neste Tribunal.

A pertinência subjetiva do órgão público de defesa do consumidor para ajuizar ação coletiva se manifesta pela natureza dos interesses e direitos tutelados – individuais homogêneos, que, por definição legal, têm indivíduos como centro de imputação, isto é, referem-se a um número de pessoas ainda não identificadas mas passível de ser determinado em um momento posterior, e trazem em seu bojo a derivação de uma origem comum, do que decorre a sua homogeneidade.

Dentre os inúmeros precedentes acerca do tema, cite-se os seguintes: REsp’s 681.872/RS, DJ de 23/5/05, e 579.096/MG, DJ de 21/2/05, ambos de minha relatoria; REsp 132.502/RS, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ de 10/11/03; REsp 226.803/SP, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ de 18/11/02; REsp 313.364/SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 6/5/02; REsp 140.097/SP, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJ de 11/9/2000; REsp 157.713/RS, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJ de 21/8/2000, este último, assim ementado:

Ação coletiva. Direitos individuais homogêneos. Associações. Legitimidade. As associações a que se refere o artigo 82, IV do Código de Defesa do Consumidor têm legitimidade para pleitear em juízo em favor de quantos se encontrem na situação alcançada por seus fins institucionais, ainda que não sejam seus associados.

No processo em julgamento, a entidade associativa veio a juízo promover a defesa coletiva dos interesses individuais homogêneos cuja origem comum consiste na cobrança indevida de valores referentes aos fretes dos veículos novos adquiridos das empresas recorrentes por inúmeros consumidores, o que impõe a salvaguarda dos interesses mencionados, para a preservação da boa-fé objetiva e do equilíbrio nas relações contratuais.

Está, portanto, legitimada a UNICONS para litigar na tutela dos interesses individuais homogêneos dos consumidores, assim como resta configurada a possibilidade jurídica do pedido, dada a natureza dos direitos que fundamentam o pleito.


iii) Da violação aos arts. 330, inc. I, e 454, do CPC

(do cerceamento de defesa)

O Tribunal de origem bem examinou a questão referente ao cerceamento de defesa alegado pelas recorrentes, conforme já posto no item “i” deste voto. Com base no delineamento fático-probatório do processo, ademais, constou do acórdão recorrido que não ficou demonstrado o prejuízo das recorrentes ao não ter sido oportunizada a produção da prova testemunhal requerida, como também ao não ter sido concedido prazo para apresentação de razões finais antes da prolação da sentença.

Ressalte-se que, ao juiz, soberano na apreciação dos fatos e provas apresentados no processo, assiste a decisão de acolher ou não, justificadamente, a produção probatória, o que, induvidosamente, ocorreu de forma adequada no processo sob julgamento.

Não vigora, pois, a tese jurídica de violação aos arts. 330, inc. I, e 454, do CPC.

iv) Da violação aos arts. 177, 178, § 9º, inc. V, do CC/16,

e 27 do CDC (da prescrição)

Aludem as recorrentes, a respeito da regra de prescrição a ser aplicada ao processo em debate, alternativamente, que o prazo aplicável é o quatrienal, previsto no art. 178, § 9º, inc. V, alínea “b”, do CC/16, e, na eventualidade do desacolhimento de tal tipificação, que incide à espécie o prazo qüinqüenal, disposto no art. 27 do CDC.

Ao analisar o tema, o TJ/RS declarou que a prescrição é vintenária conforme disciplinado no art. 177 do CC/16, sob a seguinte motivação:

(fl. 994) – (…) o que as AA. denunciam na lide e pretendem nuclearmente cobrar de cada uma das RR. é a restituição, em dinheiro, da diferença existente entre o valor que as RR. revendedoras de veículos respectivamente pagaram aos transportadores por frete realizado e o valor a maior (ágio ou superfaturamento) por elas respectivamente cobrado dos consumidores adquirentes de veículos novos a este título (frete), seja nas suas vendas diretas ao público, seja (e/ou) nos encargos consortis em que esse sobrevalor foi repercutido pela administradora de consórcios (vendas intermediadas). Trata-se, portanto, de pretensão condenatória à restituição do indébito, no caso materializada no quantum objeto do superfaturamento realizado pelas RR., respectivamente, sobre o efetivo valor real, in natura, de cada frete de veículos zero quilômetros, por elas ao depois negociados com consumidores, seja na forma direta e/ou via fornecimento consorcial (grifos conforme o original).

Primeiramente há de se definir que a ação coletiva, na qual origina-se o presente debate, não objetiva a anulação, tampouco a rescisão de contratos por motivo de erro, dolo, simulação ou fraude, na perspectiva inserta no art. 178, § 9º, inc. V, alínea “b”, do CC/16.

De igual forma, não se configura aqui a pretensão de reparação de danos causados por fato do produto ou do serviço, para atrair a regra de prescrição prevista no art. 27 do CDC.

O que se tem em discussão é a cobrança de valores indevidos, que devem ser restituídos aos consumidores lesados, imperando, portanto, a regra geral de prescrição, inserta no art. 177 do CC/16 (correspondência: art. 205 do CC/02).

Destaque-se, no particular, julgado que traz base empírica semelhante à do processo em julgamento, cuja ementa segue reproduzida somente na parte que interessa à questão ora em apreço:

Ação civil pública. Direitos individuais homogêneos. Cobrança de taxas indevidas. (…) Prescrição. (…)

1. O PROCON – Coordenadoria de Proteção e Defesa do Consumidor, por meio da Procuradoria Geral do Estado, tem legitimidade ativa para ajuizar ação coletiva em defesa de interesses individuais homogêneos, assim considerados aqueles direitos com origem comum, divisíveis na sua extensão, variáveis individualmente, com relação ao dano ou à responsabilidade. São direitos ou interesses individuais que se identificam em função da origem comum, a recomendar a defesa coletiva, isto é, a defesa de todos os que estão presos pela mesma origem. (…)

2. A prescrição é vintenária, na linha de precedentes da Terceira Turma, porque não alcançada a questão pelo art. 14 do Código de Defesa do Consumidor.

(…)

(REsp 200.827/SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 9/12/02)

Da leitura da inicial, verifica-se que houve constatação de cobranças indevidas a partir do ano de 1995. Como a ação foi ajuizada em 25/3/1998 e, tendo sido citadas as recorrentes de forma válida e regular, é certo que, nos termos do art. 219, § 1º, do CPC, houve a interrupção da prescrição, a qual retroagiu à data da propositura da ação. Portanto, aplicando-se a regra de transição prevista no art. 2.028 do CC/02, deve incidir o prazo prescricional previsto no art. 205 do CC/02.

v e vi) Da violação aos arts. 13, caput, §§ 1º e 2º, da Lei 6.729/79; 4º, inc. III, e 51, inc. IV, do CDC; 5º da Lei 5.768/71 (da restituição dos valores referentes ao frete cobrados a maior)


Entendem as recorrentes que a lei não obriga que o valor do frete pago pelas concessionárias de veículos e administradoras de consórcios seja idêntico ao cobrado dos consumidores adquirentes de veículos novos.

Ao analisar a temática ora posta, o Tribunal estadual concluiu, com base no delineamento fático-probatório dado ao processo, da seguinte forma:

(fl. 1.002) – Em conseqüência, sob o prisma jurídico, há nos autos a comprovação plena, de um lado, da cobrança superfaturada (ágio), na rubrica “frete”, do valor in natura do frete de veículo novo, pelas empresas revendedoras demandadas, nas vendas realizadas a consumidores diretos e consorciados, bem assim da cobrança repercussiva, por parte da administradora de consórcios demandada e também na rubrica “frete”, do valor superfaturado (ágio) do frete de veículos novos sobre encargos mensais típicos (taxa de administração, fundo de reserva e seguro de vida) dos contratos de adesão a grupos de consórcio de veículos novos, deste modo gerando um segundo superfaturamento e um duplo prejuízo aos consorciados nestes lindes.

(fl. 1.003) – Daí também decorre a atestação cabal, à causa da prova pericial contábil produzida, da materialidade, autoria (individual e concursada) e injuridicidade civil dos atos de violação sistemática, pelas duas empresas revendedoras e a administradora de consórcios coligada, a direitos individuais homogêneos certos e definidos de consumidores de veículos novos, mediante práticas em abuso de poder econômico, quebra do princípio da boa-fé objetiva e excesso de onerosidade no ponto relativo às cobranças superfaturadas do valor in natura do frete (grifos conforme o original).

Com base nessas observações, a modificação do julgado conforme pleiteiam as recorrentes, demandaria a incursão no quadro fático probatório do processo e ao STJ só é dado fixar a jurisprudência relativa à interpretação de lei federal, devendo considerar os fatos tais como delineados no acórdão recorrido, insuscetíveis, portanto, de reexame.

vii) Da violação aos arts. 11 do Dec. 22.626/33; 18, inc. II, 19, inc. IV, 20, inc. II, 41, 51, § 2º, do CDC (da repetição do indébito)

No que concerne à possibilidade da repetição simples do indébito, segue a fundamentação do acórdão impugnado:

(fl. 1.011) – (…) é de referir que a orientação jurisprudencial vigente nesta Câmara, quanto à concessão em dobro da repetição do indébito, tem sido condicionada à existência de dolo jusmaterialístico, no caso sob exame ocorrente nos termos retro materializados. No entanto, considerando que as AA. se conformaram, no ponto, com a sentença recorrida, a repetição do indébito deve dar-se na modalidade simples.

Nada há para retocar, portanto, no acórdão recorrido no particular, porquanto adotou entendimento consonante com a pacífica jurisprudência do STJ conforme exemplificado nos REsp 630.985/RS, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 8/5/06; e REsp 401.589/RJ, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ de 4/10/04.

viii) Da violação aos arts. 97, 98 e 100, do CDC, e 13 da Lei 7.347/85 (da reversão da indenização ao fundo)

No que comporta à reversão da indenização ao fundo previsto no art. 100 do CDC, conforme já tratado no item “i” deste voto, é certo que tal só ocorrerá nos moldes e limites estabelecidos em lei, não havendo se falar em violação aos arts. 97, 98 e 100, do CDC; e 13 da Lei 7.347/85.

– Do recurso especial interposto por UNICONS – UNIÃO NACIONAL EM DEFESA DE CONSUMIDORES, CONSORCIADOS E USUÁRIOS DO SISTEMA FINANCEIRO, ATACADO KAMER COMÉRCIO DE BRINQUEDOS LTDA, bem como pelos procuradores PAULO RENÊ ESTEVES SOARES, ROBERTO OZELAME OCHOA e JORGE ALBERTO HARM KRIEGER

i) Da violação ao art. 20, § 4º, do CPC e do dissídio

Sustentam os recorrentes que “a sentença e o acórdão, muito embora condenando as demandadas a devolverem aos consumidores o ágio cobrado sobre o preço do frete e a repercussão destes valores sobre as parcelas consorciais, na questão sucumbencial insistiram na aplicação do parágrafo 4º do art. 20, apesar do feito não se enquadrar em nenhuma das hipóteses ventiladas no referido dispositivo. A ação coletiva demonstrou a existência de lesão significativa, apesar do laudo não ter englobado todo o período abarcado pelo lapso temporal prescricional, razão pela qual não comporta enquadrá-la como sendo de pequeno valor, muito menos de valor inestimável. Também não restou condenada a Fazenda Pública” (fl. 1.061).

Pugnam, dessa forma, pela incidência do § 3º do art. 20 do CPC.

O Tribunal de origem manteve o valor fixado na sentença, nos termos do art. 20, § 4º, do CPC, aos seguintes fundamentos:

(fl. 1.032) – O 1º. apelo não prospera neste ponto, dada a correta aplicação ao caso, conforme os comentários aduzidos no item “A.4.b.”, retro, dos parâmetros definidos no art. 20, § 4º., c/c art. 21, parágrafo único, ambos do C.P.C., âmbito em que a verba honorária de sucumbência foi quantificada com razoável eqüidade retributiva de caso concreto (200 URH). Por outra banda, também é inviável a fixação da verba honorária de sucumbência imputada às rés sobre bases ilíquidas e aleatórias, das quais pode resultar retribuição iníqua ou escandalosa.

Com efeito, traço marcante das ações que tutelam direitos individuais homogêneos é o de que o pedido é genérico, e, por conseqüência, a condenação não se particulariza em valores líquidos, razão pela qual é preciso proceder à sua liquidação e, posteriormente, à sua execução.

Retira-se da lição de Yussef Said Cahali (Honorários Advocatícios, 3ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 481) que “não há incompatibilidade entre o art. 20, § 4.º, do CPC, e a ação condenatória, desde que a condenação pretendida não evidencie um conteúdo econômico imediato”.

No presente debate, avulta da condenação a relevância econômica. Contudo, por ser genérica, e encerrar um grande feixe de consumidores lesados que poderão vir a habilitar seu crédito, a iliquidez sobressai, retirando o caráter imediato do conteúdo econômico.

Dessa forma, não se verifica a alegada violação ao art. 20, § 4º, do CPC, tampouco resta demonstrado o dissídio jurisprudencial acerca do tema.

Forte em tais razões, NÃO CONHEÇO de ambos os recursos especiais.

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