Incentivo à ilegalidade

Com a nova lei sobre drogas o crime compensará

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5 de agosto de 2006, 19h43

Uma preocupação de boa parte da comunidade jurídica voltada à repressão ao crime tornou-se frustração: será enviado ao Presidente da República para sanção ou veto, nos próximos dias, o Projeto do Senado 115, de 2002 (7.134/2002, na Câmara dos Deputados), que, dentre outras, prescreve medidas para prevenção do uso indevido de drogas, bem como define crimes e penas relacionadas ao tráfico.

Se por um lado louva-se o esforço do legislador em superar distorções e propor medidas de maior eficácia no tratamento e recuperação de viciados, por outro pecou seriamente em diversos pontos.

Alguns destes, ínsitos ao cotidiano dos órgãos de repressão às drogas e que menor dano social potencializam, referem-se, por exemplo, à imprecisão de inserção de dados estatísticos (artigo 17 do PL 115); à imprevisão de permissão de destruição, in loco, de produtos químicos apreendidos em áreas de difícil acesso ou risco; à omissão em estipulação da conversão cautelar de valores apreendidos em títulos da dívida pública; e ao engessamento e conseqüente inviabilidade prática de procedimentos de investigação como infiltração policial (artigo 53, I, do PL 115/02) e ação controlada (artigo 53, II), haja vista o retrocesso em se impedir o controle judicial a posteriori de tais diligências.

Outros pontos, no entanto, merecem conhecimento e discussão públicos urgentes, uma vez que o desprezo legislativo do aspecto pragmático, tão relevante em leis regentes da segurança pública, conduzirá ao aumento da criminalidade e ao sentimento e realidade de injustiça.

O primeiro que se pode citar é a questão da punição ao usuário de drogas.

A par da discussão se o uso de droga ilícita agride bem jurídico penal de modo relevante a ponto de justificar a intervenção do direito penal (princípios da intervenção mínima e da lesividade do direito penal), e se o usuário, por uma questão de lógica, proporcionalidade e de política criminal, é um fomentador do tráfico e das outras formas de violência que lhe são indissociáveis, e, portanto, deva sofrer sanção de natureza penal, o fato é que o artigo 28 do PL 115/02, tratador do porte para uso, insere-se no “Capítulo III — Dos crimes e das Penas”, levando à conclusão de que o consumo (ou formas análogas: porte, depósito, transporte para uso próprio) é crime sim, e não mera infração civil ou administrativa.

Porquanto crime, deve acarretar sanção penal de caráter aflitivo, consistente na restrição ou privação de um bem jurídico em retribuição punitiva, visando não só à sua readaptação social, mas também à prevenção intimidatória a toda a sociedade e ao próprio agente.

Com efeito, enquanto crime — independentemente da teoria analítica bipartite (crime é fato típico e antijurídico), tripartite (crime é fato típico, antijurídico e culpável), ou outra que se adote – há de ser um fato punível, ou seja, há que se cominar uma punibilidade em abstrato.

E o legislador fez isso? Fez mal.

Sabe-se que o ordenamento jurídico nacional (artigo 32 do Código Penal) prevê três espécies de pena, subdivididas em: a) privativas de liberdade (reclusão, detenção e prisão simples — artigo 33 do CP), b) restritivas de direito (prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos, limitação de fim de semana, perda de bens e valores e prestação pecuniária – artigo 43 do CP) e c) pecuniária (multa – artigo 49). Em todas as espécies acima se percebem as finalidades da pena, quais sejam: retribuição de um mal injusto, prevenção especial (readaptação e segregação para impedir nova delinqüência) e prevenção geral a toda a sociedade; bem como a principal característica da pena: proporcionalidade ao crime.

Nesse contexto, apenar alguém que comete um crime com uma “advertência sobre os efeitos da droga” é pífio e pragmaticamente indevido. “Advertir” não é apenar; não se reveste das características da pena; não é proporcionar justa sanção a quem comete o maior social mau: o crime. E tampouco não satisfaz a qualquer finalidade da pena, pois uma pessoa que consome e planta droga para seu consumo e toda a sociedade não se intimidariam com a possibilidade de virem a ser simplesmente “advertidas” em juízo. Ademais, é de ter por certo que toda pessoa capaz penalmente, independentemente do país, do nível cultural ou social, tem plena ciência de que drogas ilícitas são nocivas à saúde humana.

A se somar a tais, está ainda uma forte razão pragmática. Não é razoável, diante das tantas limitações das instituições policiais, de suas grandes e urgentes preocupações, atribuições e trabalhos contra a violência, bem como do abarrotamento de processos no Poder Judiciário, venha um usuário de droga a ser conduzido a uma delegacia, lavrar-se um auto circunstanciado (artigo 48, parágrafo 2º do PL 115/02), marcar-se data e audiência num juizado especial, para, após toda essa dispendiosa movimentação da máquina estatal, vir a ser simplesmente “advertido” pelo juiz acerca dos males da droga.

Se a preocupação do legislador era impedir que o usuário vá para a cadeia (artigo 48, parágrafo 2º), desnecessárias as mudanças iminentes. Não há um só usuário preso pelo crime de porte para uso. Todos se valem de benefícios legais como proposta de aplicação imediata da pena (Lei 9.099/95), suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95), sursis (artigo 77 do Código Penal), substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direito e/ou multa etc.

Um segundo aspecto refere-se ao crime de associação para financiamento ou custeio do tráfico, definido no parágrafo único do artigo 35 do PL 115/02 da seguinte forma: Nas mesmas penas do ‘caput’ deste artigo incorre quem se associa para prática reiterada do crime definido no artigo. 36 desta Lei. A falta de inclusão das conjunções alternativa-negativa “ou não” contraria a essência desta modalidade criminosa, espécie do gênero quadrilha ou bando. Ademais, a relação de tipicidade (adequação do fato à letra da lei) é elemento da tipicidade formal do conceito de crime. De fato, se já é missão difícil à polícia judiciária lograr êxito no levantamento de provas dos grandes financiadores do tráfico, dadas as limitações de prerrogativas legais, mais difícil ainda será demonstrar a habitualidade desta prática.

O terceiro aspecto a ser tratado respeita à estranha distinção criada entre o colaborador do crime e o associado ao crime, promovida no preceito primário do art. 36 do PL 115/02 (Artigo 36 Colaborar, como informante, com grupo, organização ou associação destinados à prática de qualquer dos crimes previstos nos artigos 33, ‘caput’ e §1º, e 34 desta Lei). O Código Penal adotara, em regra, no que tange ao concurso de pessoas (Titulo IV, Parte Geral), a teoria restritiva – segundo a qual autor do crime é só aquele que realiza a conduta principal contida no núcleo do tipo, ao passo que partícipe é o que concorre para a sua realização sem realizar a conduta típica – e, pertinente à natureza jurídica do concurso de agentes, a teoria unitária ou monista – pregadora da idéia de que todos os contribuintes para a prática do delito cometem o mesmo crime, não havendo distinção quanto ao enquadramento típico entre autor e partícipe. Assim, tratar juridicamente de modo diverso a associação prevista no art. 34 e a colaboração inserta no art. 36 é violar o princípio monista ou unitário regente, em regra, do concurso de pessoas. Isso conduzirá, na prática forense, a uma indesejada alegação, por parte de algumas defesas técnicas, de que os mesmos apenas colaboraram ao grupo ou organização criminosa, nunca tendo a ele/ela se associados.

Mais adiante, no artigo 59 (PL 115/02), estipula-se que o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, salvo se for primário e de bons antecendentes, assim reconhecido na sentença condenatória. Isso, na prática, significará que não menos de oitenta por cento dos condenados em primeira instância recorrerão em liberdade e aguardarão livres durante anos o trânsito em julgado de seus processos.

Trata-se de imenso incentivo, um verdadeiro “salvo-conduto” para a primeira prática de tráfico, pois os delinqüentes estarão cientes que recorrerão em liberdade, podendo retardar processos em anos, sobretudo no lamentável estágio iminente de vedação, pelo Supremo Tribunal, da execução provisória da pena antes de transitados os recursos constitucionais.

Além disso, é verdadeiro contra-senso que uma pessoa, presa em flagrante por tráfico de drogas, responda a todo o processo detida (mesmo constitucionalmente presumida inocente) e, condenada, venha a ser solta para recorrer em liberdade, já existindo um título executivo que lhe reconheça o crime e a culpabilidade.

Finalmente, a maior de todas as aberrações está no parágrafo 4º do art. 33 do PL 115/02 (Nos delitos definidos no ‘caput’ e no §1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa).

É que a grande maioria dos traficantes presa não é reincidente e goza de bons antecedentes. Assim, inexoravelmente a fixação da pena base (artigo 59 do Código Penal) muito pouco afastar-se-á do mínimo (cinco anos) do preceito secundário, que sofrerá, ainda, a redução da causa especial de diminuição, que redundará em penas de um ano e sete meses. O que isso significa na prática? Significa que, doravante, oitenta por cento dos traficantes presos diariamente pelas polícias brasileiras não irão para a cadeia, pois farão jus à suspensão da pena (sursis), na forma do artigo 77 do Código Penal.

E nem se diga que a concessão do sursis é incompatível com a execução de pena por crime equiparado a hediondo ou que sua vedação expressa no projeto de lei a impedirá (artigo 44 do projeto). Com efeito, aquela jurisprudência era sustentada pela imposição (Lei 8.072/90) do cumprimento de pena integralmente no regime fechado, o que restou superado ante o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal (HC 82.959), da possibilidade da progressão de regime de pena no caso. Já no que tange à vedação do sursis imposta no projeto, a alegação de violação aos princípios da individualização da pena e dignidade da pessoa humana inexoravelmente a vencerão.

Portanto, o cidadão brasileiro precisa saber que, ao invés de os traficantes cumprirem penas em presídios por um crime tão nocivo, tão grave, equiparado a hediondo, simplesmente poderão ser proibidos de freqüentar determinados lugares, de se ausentar da comarca sem autorização do juiz e de comparecer mensalmente à justiça para informar de suas atividades.

A sociedade deve estar preparada para, sancionada nos atuais termos o projeto de lei em debate, assistir a um vertiginoso aumento da indústria do tráfico.

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