Indepedência dos poderes

Judiciário é o órgão de sustenção da democracia

Autor

  • Walter Nunes da Silva Júnior

    é juiz federal ex- presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil doutor em teoria constitucional do processo penal e professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

2 de agosto de 2006, 13h05

Se é certo que a separação dos poderes constitui-se em postulado indispensável da democracia, torna-se imperativo estabelecer que a independência do Judiciário, órgão de sustentação desse sistema de governo, é a espinha dorsal da engrenagem. Não foi por outro motivo que na desconstrução do Estado absolutista e conseqüente edificação das democracias modernas, declarou-se, sob a categoria de direito inerente à condição humana, que toda e qualquer sociedade há de ser estruturada tendo como premissas os direitos humanos e a separação dos poderes, cabendo ao Judiciário, no exercício da jurisdição constitucional, a tutela dos direitos fundamentais.

O Estado Democrático Constitucional é estrutrurado de acordo com a técnica da separação do poder político, assegurando-se a independência necessária aos órgãos para o desempenho das três funções clássicas do Estado: legislativa, administrativa e judiciária. Eis a essência da teoria da separação dos poderes: obstar a concentração de poder sem deixar de dar as competências necessárias para que os poderes guardem autonomia entre si.

O exame da independência do Poder Judiciário aqui levado a efeito terá como foco dois aspectos fundamentais, quais sejam, a autonomia quanto à função judicante ou judicial e o autogoverno, nas esferas administrativa, legislativa e financeira, o que enseja a compreensão da função propriamente dita que é reservada ao Poder Judiciário, forma de recrutamento dos juízes e modo de organização do Poder Judiciário.

Sem embargo de o Judiciário brasileiro, reconhecidamente, prestar serviço da mais alta qualidade, servindo de órgão fundamental no amparo dos direitos fundamentais dos cidadãos, há imperfeições no sistema, notadamente em relação à preservação de sua independência, que precisam ser destacadas, não como forma de crítica pela crítica, mas de contribuir para o seu aprimoramento.

Processo de seleção

A estrutura política do Poder Judiciário começou a ser desenhada com a influência das Ordenações Filipinas, cuja característica era a hierarquização dos órgãos judiciais, modelo fielmente seguido pela Constituição Imperial. Após a Constituição de 1891, adotou-se o modelo americano, de modo que o Judiciário passou a exercer o controle de constitucionalidade. Porém, conservou-se o autocratismo, o hermetismo e a hierarquização organizativa dos órgãos jurisdicionais. Manteve-se a concepção da magistratura como carreira em um formato autocrático, campo aberto para o carreirismo.

É verdade que o concurso de provas e títulos para o ingresso na magistratura de base dá igualdade de condições na disputa e, por outro lado, preserva a independência individual do juiz, na medida em que ele não deve favores para ocupar o cargo. Todavia, a progressão na carreira por meio do merecimento é aferida por critérios sobremaneira subjetivos, exclusiva e autocraticamente pelos órgãos de cúpula, quando se trata da ascensão horizontal, e com o apoio do Legislativo e, especialmente do Executivo, nos casos da progressão vertical.

A organização hierarquizada, a forma de progressão na carreira e o autocratismo nas eleições para os cargos diretivos são os entraves maiores à efetiva democratização do Judiciário e, de outro lado, comprometem a concretização de sua independência.

Autonomia

A autonomia funcional do Judiciário é descortinada pela essência da atribuição que lhe é confiada em nosso sistema. Destaque-se que, a partir da primeira Constituição Republicana (1891), a principal função do Judiciário brasileiro, em todas as suas instâncias, reside no controle de constitucionalidade das leis.

No exame histórico da concepção política do Poder Judiciário brasileiro, nota-se que esse segmento do Estado nunca confundiu-se como órgão auxiliar dos Poderes Executivo ou Legislativo, apresentando-se sempre como expressão da soberania da nação, tendo como principal função o controle de constitucionalidade das leis, o que lhe dá a competência para controlar o poder político em si do Estado, atuando como espécie de poder constituinte permanente, na feliz expressão cunhada por Francisco Campos.

A República brasileira foi engendrada nos moldes do constitucionalismo americano, de modo que o Judiciário desempenha, como sua função principal, o controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos emanados dos três poderes, com a particularidade de fazê-lo por meio dos controles concentrado e difuso. Observe-se que, consoante a tradição constitucionalista brasileira, a única Constituição na qual não ficou ressaltada a função de controle de constitucionalidade pelo Judiciário foi a Imperial.

Deve-se destacar, nessa discussão, que Francisco Campos, em discurso histórico proferido no ano de 1941, na abertura dos trabalhos do Supremo Tribunal, examinando a função do Poder Judiciário frente à Constituição de 1937, que tornava defeso o pronunciamento jurisdicional sobre matéria exclusivamente política, afirmou que, como a Carta Política tinha reservado aos órgãos judicantes a possibilidade de exercer o controle de constitucionalidade, o Judiciário era o o juiz dos limites do poder do Governo, daí por que estava inserida na sua competência todo o domínio da política.


O renomado jurista chamou a atenção para um detalhe: o Judiciário tem, ao interpretar a Constituição, a possibilidade de reformulá-la conceitualmente, o que faz com que aconteça aqui o mesmo que se dá nos Estados Unidos, ficando a Constituição em elaboração permanente nos órgãos jurisdicionais encarregados de aplicá-la. Em outras palavras, tal como ocorre nos Estados Unidos, a função política de guarda da Constituição, implica, necessariamente, a de poder constituinte e é esta a responsabilidade conferida ao Poder Judiciário brasileiro.

Súmula vinculante

A ampla liberdade para decidir do juiz conhece limites internos. A decisão do Supremo Tribunal Federal nas ações direta de inconstitucional e declaratória de constitucionalidade vincula os demais órgãos jurisdicionais quanto ao entendimento sufragado.

Ademais a Emenda Constitucional 45, de 2004, após acirrada discussão, introduziu, em nosso sistema, o instituto da súmula vinculante (artigo 103-A). Com isso, no exercício do controle difuso, a edição de súmula pelo Supremo Tribunal Federal em decisão tomada pela maioria de dois terços dos seus membros tem efeito vinculante em relação aos demais órgãos jurisdicionais. Muito se debateu sobre o maltrato desse instituto ao livre arbítrio do julgador.

Contudo, antes de infirmar a independência do juiz, a súmula vinculante constitui-se instituto jurídico imprescindível em países com histórico de excesso de demanda judicial, como é o caso do Brasil. Serve para unificar a jurisprudência, o que é de salutar importância, até mesmo para evitar a consolidação de situações díspares que reclamam a mesma solução. Além de ter o condão de validar e uniformizar a interpretação sobre normas que acarretam indesejável e profunda insegurança jurídica, a súmula vinculante evita a desnecessária multiplicação de processos sobre questões idênticas.

Registre-se, ainda, que a Emenda Constitucional 45, acolhendo sugestão da Ajufe, estabeleceu que a força obrigatória da súmula deve fazer-se sentir não apenas perante o julgador, mas igualmente diante dos órgãos públicos em geral, integrantes da administração direta e indireta, das esferas federal, estadual e municipal, o que é o mais importante, pois, sob outra perspectiva, cria espaço para que o jurisdicionado tenha acesso à justiça perante o Executivo, sem a necessidade de socorrer-se diretamente do Judiciário.

Influências externas

A experiência brasileira denota que o Legislativo e o Executivo gozam de ampla penetração no Judiciário, principalmente perante os tribunais, uma vez que lhes é reservada participação decisiva no processo de recrutamento dos membros que devem atuar nas instâncias superiores. Quanto maior o poder de decisão do Legislativo e do Executivo na forma de seleção dos magistrados, inegavelmente, mais intensa será a força coercitiva perante o Judiciário.

É até de boa ordem que o Legislativo e o Executivo, de alguma forma, intervenham no processo de recrutamento dos integrantes dos tribunais, a fim de que se dê a materialização do princípio da co-responsabilidade dos Poderes constituídos. Contudo, a técnica a ser utilizada merece consideração especial, no desiderato de evitar o comprometimento da autonomia do Judiciário.

Esse é um ponto sensível que, infelizmente, não mereceu tratamento adequado por parte do constituinte de 1988, nem dos reformadores do Poder Judiciário, significativamente em se tratando do modelo engendrado para a seleção dos membros do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais trabalhistas, em que tanto o Legislativo quanto o Executivo se constituem em vozes determinantes no processo.

Influências internas

A independência do juiz prevista na Constituição, para ser efetiva, pressupõe não só a independência externa, porque reúne, ao lado dela, a independência interna, que se traduz na autonomia perante os órgãos que congregam a organização judiciária. Mas o modelo piramidal do Judiciário brasileiro e o estilo carreirista sistema que remonta a época das Ordenações Filipinas que a Constituição estabelece é sobremaneira nefasto, tornando a primeira instância vulnerável à cooptação interna.

A organização interna do Judiciário, portanto, é de fundamental importância para a autonomia funcional dos juízes. No Brasil, contudo, o processo de escolha dos juízes arranha a autonomia interna. Essa forma de estrutura judiciária está, repita-se, em descompasso com a principiologia do Estado Democrático Constitucional, pois retrata um modelo de organização autocrática, em que a grande maioria dos integrantes da magistratura não tem a oportunidade de participar dos assuntos políticos e decisórios da economia interna do Judiciário.


Autonomia administrativa

Nos termos da noção constitucional em vigor, na seara administrativa, assegura-se ao Judiciário a competência para organizar e manter os seus serviços, eleger os integrantes dos órgãos diretivos, elaborar os concursos públicos para ingresso na magistratura, bem assim dos seus servidores, e dar-lhes provimento, propor a criação de novos órgãos e varas, apurar as faltas funcionais dos juízes e serventuários e aplicar as sanções correspondentes, sem prejuízo de outros atos necessários à administração da Justiça.

Em verdade, a autogestão administrativa no Judiciário brasileiro não tem se mostrado saudável, porquanto os juízes da magistratura de base, conquanto não possam ser eleitos para os cargos diretivos das instâncias superiores, não participam do processo sequer na qualidade de eleitores. Os ocupantes dos cargos de presidente, vice-presidente, corregedor e de diretor da escola judicial são eleitos em votação da qual só participam os membros do respectivo colegiado.

Autonomia legislativa

De acordo com a arquitetura constitucional brasileira, as matérias de interesse direto da magistratura, e que dizem respeito a sua autogestão, devem ser normatizadas pelo próprio Judiciário. Nas hipóteses em que o assunto depende de regulamentação por lei no sentido material e formal, a iniciativa do processo legislativo cabe ao órgão judicante.

A norma fundamental do Judiciário é o Estatuto da Magistratura, diploma legal de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, que tem foros de lei complementar e serve para estabelecer as normas gerais para todos os órgãos judicantes e esmiuçar os direitos, deveres, as sanções, o recrutamento, a promoção, remoção etc, dos juízes. Cabe ao Judiciário, por outro lado, a iniciativa legislativa para a fixação dos subsídios, criação e extinção de cargos, ou que importem na definição ou alteração da organização e da divisão judiciárias (lei de organização judiciária).

De qualquer maneira, essa autonomia legislativa, especialmente quando se trata de proposta que origina aumento de despesa, sofre severa restrição, diante dos limites orçamentários que lhe são impostos. Cite-se como exemplo o projeto de lei de criação de mais 400 varas federais, de iniciativa do Superior Tribunal de Justiça. Remetida para a Câmara dos Deputados após aprovação do Conselho Nacional de Justiça, a proposta foi reduzida para 230 varas, em virtude da necessidade de adequação orçamentária.

Autonomia financeira

A par da gestão administrativa, para o efetivo funcionamento da máquina administrativa, ao Judiciário é concebida dotação orçamentária própria a fim de que disponha de recursos financeiros suficientes para o autogoverno, que vai de verbas para despesas com o melhoramento das instalações físicas e aquisição de equipamentos a gastos com pessoal e material de expediente.

Essa era antiga aspiração da classe jurídica, alcançada com a Constituição de 1988, ao dispor, no art. 99, que a autonomia financeira existe e se exterioriza com a competência deferida aos tribunais para eles próprios elaborarem suas propostas orçamentárias.

Mas o Executivo detém o trunfo de efetuar os cortes nas propostas dos tribunais, exercendo, com eficiência, o controle da propagada autonomia financeira do Judiciário. Com isso, na prática, o Executivo, ao argumento de adequar a proposta aos parâmetros da lei de diretrizes orçamentárias, promove cortes profundos na proposta de despesa do Judiciário.

Como se isso não bastasse, a primeira instância não possui dotação orçamentária específica. A dotação orçamentária é do respectivo tribunal, sendo nele centralizados os recursos financeiros do judiciário, a fim de que ele, como órgão gestor, faça a devida distribuição.

Controle pelo CNJ

O tema da autonomia administrativa do Poder Judiciário no Brasil ganhou fôlego quando da Reforma Judiciária implementada pela Emenda Constitucional no. 45/2004, diante da discussão referente à criação de um controle externo institucional para o Judiciário, no pressuposto de que isso viria a otimizar a prestação da atividade jurisdicional, escoimando-lhe a imagem de órgão impenetrável, em que a independência das decisões se confunde com a atuação arbitrária, acima de todos e, até mesmo, da própria lei.

Dizia-se que o controle externo com integrantes alheios aos quadros da magistratura não se acomodava no modelo de Estado Democrático de Direito desenhado na Constituição de 1988, padecendo de vício de inconstitucionalidade iniciativa dessa natureza, uma vez que atentatória ao princípio fundamental do sistema presidencialista, que é a separação dos poderes políticos.

Proposta defendida desde a primeira hora pela Associação dos Juízes Federais do Brasil, a criação do Conselho Nacional da Justiça (CNJ), órgão estratégico da magistratura, foi prevista pela Emenda Constitucional 45, de 2004 (artigo 103-B), como órgão integrante do Poder Judiciário, vinculado ao Supremo Tribunal Federal, com competência fundamental para exercer o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, com poderes correcionais.


Trata-se, por conseguinte, de órgão administrativo integrante da própria magistratura, não ocorrendo, assim, ofensa à independência do Judiciário. O que ele não pode, evidentemente, até porque se trata de órgão administrativo, é revisar as decisões judiciais ou apreciar o seu mérito, nem muito menos censurar o juiz por ter adotado esta ou aquela tese.

Outra importante atribuição conferida ao CNJ é o de dar parecer técnico nos anteprojetos de lei de iniciativa do STJ que importem em aumento de despesa. Com essa função, o CNJ fiscaliza e limita a autonomia legislativa do STJ.

A experiência brasileira tem sido bem sucedida, merecendo destaque duas grandes decisões adotadas pelo CNJ: a que vedou o nepotismo, com o estabelecimento de prazo para que fossem exonerados todos os parentes de juízes até o terceiro grau que exerciam cargo de confiança sem vínculo efetivo e a que estabeleceu a vedação da percepção de remuneração superior ao teto remuneratório, fixado em 24.500,00, ambas medidas embasadas nos princípios republicanos da moralidade e transparência do serviço público.

Controle pelo TCU

Conquanto tenha dotação orçamentária própria, o Judiciário, assim como os demais Poderes, tem as suas despesas, todas elas, examinadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) que é órgão integrante do Poder Legislativo. O Parlamento, por meio do Tribunal de Contas, exerce o controle externo das despesas públicas, operando ampla fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, seguindo orientação dos princípios da legalidade, legitimidade e economicidade. Por conseguinte, quanto aos seus gastos, os ordenadores de despesa do Judiciário, anualmente, prestam contas ao Legislativo.

A esse respeito, o art. 70, caput, da Constituição de 1988, de forma clara e precisa, expõe que a fiscalização das contas públicas da União, a despeito do controle interno de cada Poder, “… será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo …”, acrescentando à cabeça do artigo seguinte, que, para esse fim, receberá o auxílio do Tribunal de Contas da União, sistema simétrico seguido pelos Estados-Membros, por imposição do art. 75 e seu parágrafo único.

Porém, as decisões do Tribunal de Contas são suscetíveis de revisão judicial. Merece destaque, outrossim, que os efeitos concretos da decisão do TCU, em relacão ao gestor público que tem a prestação de contas de sua gestão financeira desaprovada, é obrigá-lo ao ressarcimento ao poder público da despesas indevida e torná-lo inelegível.

Conclusão

Como se vê, malgrado bem elaborada a Constituição no sentido de dotar o Judiciário das garantias necessárias para a sua independência, na prática, o modelo hierarquizado dos órgãos jurisdicionais, a forma de progressão na carreira e o autocratismo estabelecido nos processos eletivos internos, comprometem sobremaneira as independência funcional, administrativa e legislativa, diante da abertura de flancos férteis para influências negativas internas como externas.

A Ajufe tem propostas encaminhadas aos órgãos estratégicos da magistratura — Conselho Nacional da Justiça e Conselho da Justiça Federal — em busca do aperfeiçoamento desse modelo.

A efetivação da independência do Judiciário passa, necessariamente, por profunda modificação de sua organização, mediante a democratização interna desse segmento do poder, adequando ao perfil do Estado Democrático Constitucional, modelo de Estado definido na Constituição de 1988.

A despeito das imperfeições do sistema judicial aqui apontadas, pode-se dizer que o Judiciário brasileiro, com a estrutura que lhe é estabelecida na Constituição, vem desempenhando papel dos mais relevantes na consolidação de nossa incipiente democracia, manifestando-se como o espaço de defesa intransigente dos direitos fundamentais dos cidadãos.

*O artigo aborda os temas de palestra do presidente da Ajufe em Guiné-Bissau.

Autores

  • Brave

    é juiz federal, ex- presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil, doutor em teoria constitucional do processo penal e professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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