Concurso público

Cotas para afro-descendentes não violam princípio da igualdade

Autor

1 de agosto de 2006, 15h53

“A deflagração de políticas pró-ativas, de ações afirmativas frente à questão da segregação racial, de forma a apaziguar os prejuízos impingidos a determinados grupos, excluídos de certos segmentos sociais, econômicos e culturais e com o gozo de direitos humanos e liberdades fundamentais mitigados, não revela violação ao princípio da igualdade.”

O entendimento do desembargador Paulo de Tarso Sanseverino, relator de um caso sobre o tema, serviu de base para a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reconhecer a constitucionalidade e a possibilidade de implantação de cotas destinadas a grupos raciais em concursos públicos. As informações são do site Espaço Vital.

Um concurso público no município de Montenegro, Rio Grande do Sul, previu que 12% das vagas seriam destinadas a quem se declarasse afro-descendente. No entanto, após debates, o município entendeu ser inconstitucional a lei. Assim, deixou de nomear alguns candidatos destinatários das vagas. Por conta da atitude, a concursada Mara de Lima, que concorreu a uma vaga de assistente de serviços escolares, entrou com mandado de segurança.

Na primeira instância, o juiz Ruy Simão Filho negou o Mandado de Segurança. Ele entendeu que a lei municipal e o edital do concurso feriram o princípio constitucional da igualdade. Ela apelou ao TJ gaúcho, que reformou a sentença e reconheceu a constitucionalidade da lei e do edital. Cabe recurso.

Leia integra da decisão

SENTENÇA DENEGATÓRIA REFORMADA.

apelação provida.

Apelação Cível – Terceira Câmara Cível

Nº 70013034152 – Comarca de Montenegro

MARA DE LIMA – APELANTE

PREFEITO MUNICIPAL DE MONTENEGRO – APELADO

JAQUELINE CARIN LEOTE SEGOVIA – APELADO

MÁRCIA ELIANE RAMOS – APELADO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Magistrados integrantes da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento à apelação.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des. Nelson Antonio Monteiro Pacheco (Presidente) e Dr. Mário Crespo Brum.

Porto Alegre, 25 de maio de 2006.

DES. PAULO DE TARSO VIEIRA SANSEVERINO,

Relator.

RELATÓRIO

Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino (RELATOR)

Trata-se de apelação interposta por MARA DE LIMA, irresignada com a sentença que denegou o mandado de segurança por ela impetrado contra ato do Prefeito Municipal de Montenegro.

Sustentou, a apelante, desde a exordial, ter-se inscrito no Concurso público nº 01/2004 para o preenchimento do cargo de assistente de serviços escolares, em vaga reservada aos afro-brasileiros, consoante o item 4.5 do Edital nº 01/2004 e a Lei Municipal nº 4.016/2004.

Salientou ter-se classificado na 12ª colocação geral e na 1ª colocação especial, sendo que a 6ª nova vaga aberta no concurso deveria ter sido para si reservada. Asseriu que a LM nº 4.016/2004 é ação afirmativa voltada à concretização do direito constitucional à igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial.

Postulou, assim, liminarmente, a suspensão da posse das candidatas Márcia Eliane Ramos e Jaqueline Carin Leote Segovia, nomeadas em 6º e 7º lugares no certame, e, ao final, a concessão definitiva da segurança a fim de que lhe seja garantida a 6ª nova vaga aberta. Juntou documentos.

A liminar restou indeferida (fls. 32/35).

Jaqueline Carin Leote Segovia manifestou-se às fls. 41 e ss. Asseriu haver impossibilidade jurídica do pedido em face da já efetivação da sua nomeação e posse e diante da impossibilidade de o Judiciário alcançar os atos administrativos da nomeação e do empossamento. Tendo-se formulado apenas o pedido de suspensão da posse, não se poderá transmudá-lo para anulação da classificação, o que configuraria um a sentença extra petita.

No mérito, disse afrontado o incis. VI, do art. 119, da CF, pela LM nº 4.016/04, impondo-se reconhecer eficácia contida à lei em questão. Ademais, disse que o percentual de vagas a ser reservado aos afro-brasileiros seria o de 12% sobre as vagas existentes no edital, que, na oportunidade, eram 2. A lei municipal referida é posterior à ao referido edital, não podendo retroagir seu efeitos para abarcá-lo, o que, aliás, foi previsto em seu art. 6º, dispositivo que somente foi suprimido em 19/03/2004. Não se podendo computar as vagas originárias (2), o percentual de 12% somente incidiria sobre as primeiras três vagas abertas, o que não daria direito a reserva, o mesmo ocorrendo às duas últimas vagas, em ambos os casos não se ultrapassando a fração de 0,5.

Finalmente, salientando a lisura do certame e os prejuízos que adviriam no caso de concessão do mandamus, postulou a denegação da segurança.


Márcia Eliane Ramos também apresentou manifestação (fls. 46/47). Salientando o direito a permanecer na posse de seu cargo, a desistência de emprego outro para a sua admissão e a não configuração do requisito legal para a garantia de uma vaga, o que somente ocorreria com a disponibilização de 10 vagas.

A autoridade coatora apresentou suas informações. Inaugurou salientando a ausência dos requisitos legais para a concessão da liminar postulada. Disse ausente o direito líquido e certo e inexistente qualquer ilegalidade, impondo-se o indeferimento da inicial. No mérito, asseriu que, interpretando a LM nº 4.016/04, a Administração passou a adotar o percentual de 12% sobre o número de vagas oferecido no edital e ao número de novas vagas abertas, não se logrando, em qualquer dos cálculos, a superação do balizador mínimo para arredondamento previsto na lei.

Após a juntada do parecer do Ministério Público, postulou a impetrante a colação do documento de fl. 75.

Sobreveio sentença, denegando-se a segurança postulada (fls. 77/87).

Apelou a impetrante. Reeditando as razões defendidas na inicial, postulou a reforma da sentença, concedendo-se a segurança pretendida.

Foram oferecidas contra-razões por Jaqueline Carin Leote Segovia e pelo Prefeito Municipal.

A Procuradoria de Justiça pugnou pelo desprovimento do recurso.

É o relatório.

VOTOS

Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino (RELATOR)

Eminentes Colegas. A controvérsia estampada nos autos diz com o direito da impetrante à nomeação em vaga de candidata com melhor classificação geral, valendo-se, para tanto, da reserva de 12% das vagas existentes no concurso para os que se declaram afro-brasileiros.

Cumpre, antes de tudo, ressaltar que a impetrante fora nomeada pela Administração Municipal para o cargo de assistente de serviços escolares, isto em 10/05/2005, o que se destaca do documento acostado à fl. 117.

Remanesce, no entanto, o interesse em ver declarado o seu direito à nomeação e posse em vaga que teria sido preenchida ainda em julho de 2004, razão pela qual não reconheço a perda de objeto do mandamus.

Note-se que, se o seu direito líquido e certo restasse declarado na sentença, este o seria a partir da nomeação da candidata Márcia Eliane Ramos, na sexta colocação, ocorrida nos idos de julho de 2004, exsurgindo, assim, o interesse no julgamento do presente recurso.

Passo ao exame do mérito.

Não há inconstitucionalidade na LM nº 4.016/04 (fl. 15), que garantiu a reserva de vagas para afro-brasileiros em concursos públicos para provimento de cargos na administração municipal de Montenegro.

O princípio da isonomia não deve ser analisado em seu aspecto formal, mas em perspectiva material.

A deflagração de políticas pró-ativas, de ações afirmativas frente à questão da segregação racial, de forma a apaziguar os prejuízos impingidos a determinados grupos, excluídos de certos segmentos sociais, econômicos e culturais e com o gozo de direitos humanos e liberdades fundamentais mitigados, não revela violação ao princípio da igualdade.

Configura apenas mais uma alternativa para viabilizar o seu hegemônico alcance, indo ao encontro da instituição do tão almejado Estado Democrático de Direito, como sabidamente está dito no preâmbulo da Constituição Federal: “(…) destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias (…)”

A assertiva de que, diante da acepção formal do princípio da igualdade, a assunção das ações afirmativas configuraria quebra da isonomia, uma vez que os candidatos do certame constituem-se, antes de tudo, em pessoas, sendo, portanto, iguais perante a lei, não é a mais acertada na espécie.

O princípio da isonomia deve ser analisado em perspectiva material, pois a aplicação pura e simples da igualdade formal permitiria a perpetuação de heranças discriminatórias históricas, que vêm desde a abolição da escravatura.

Por isso, a necessidade de se analisar a isonomia sob a ótica de sua acepção material, buscando-se, através da promoção de oportunidades, principalmente profissionais e educacionais, expressas em políticas públicas declaradas e por intermédio da legislação ordinária, compensar os grupos menos favorecidos, no caminho da erradicação da pobreza e da marginalização, além da redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III, da CF), objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, que é repetido quando da disciplina dos princípios gerais da atividade econômica (art. 170, VII, da CF). J. J. Gomes Canotilho (in Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3a ed. Coimbra:


Almedina, 1999, p. 385) bem resume as referidas acepções do princípio sob exame, magistério que me permito reeditar:

“Uma das funções dos direitos fundamentais ultimamente mais acentuada pela doutrina (sobretudo a doutrina norte-americana) é a que se pode chamar de função de não-discriminação. A partir do princípio da igualdade e dos direitos de igualdade específicos consagrados na constituição, a doutrina deriva esta função primária e básica dos direitos fundamentais: assegurar que o Estado trate seus cidadãos como cidadãos fundamentalmente iguais. (…) Alarga-se [tal função] de igual modo aos direitos a prestações (prestações de saúde, habitação). É com base nesta função que se discute o problema das quotas (ex.: parlamento paritário de homens e mulheres) e o problema das affirmative actions tendentes a compensar a desigualdade de oportunidades (ex.: quotas de deficientes).”

Deve-se, assim, rejeitar a tese da inconstitucionalidade da LM nº 4.016/04 do Município de Montenegro.

Note-se, aliás, que o Município tem dado efetividade ao propalado édito, conclusão a que se chega com um simples lançar de olhos no Jornal de nome “Fato Novo” acostado pela parte autora à fl. 75, edição em que se torna público o provimento de multifários cargos por afro-brasileiros junto à Administração local.

O segundo ponto controvertido situa-se na interpretação que fora dada às disposições dos §§ 1º, 2º e 3º do art. 1º, da LM nº 4.016/04, que é o motivo da divergência entre a impetrante e a administração municipal.

Cumprindo o disposto na legislação municipal, o edital de concurso disciplina a reserva de vagas para os afro-brasileiros no concurso público em questão, consoante se observa no item 4.5 e ss. do edital nº 01/2004 (fls. 20 e ss.).

Permito-me reeditar os dispositivos do referido édito, melhor ilustrando a controvérsia:

Art. 1º – Ficam reservados aos afro-brasileiros e afro-brasileiras 12% (doze por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos efetuados pelo Poder Público Municipal para provimento de cargos efetivos.

§1º – A fixação do número de vagas reservadas aos afro-brasileiros e afro-brasileiras e respectivo percentual far-se-á pelo total de vagas no edital de abertura do concurso público e efetivar-se-á no processo de nomeação.

§2º – Preenchido o percentual estabelecido no edital de abertura, caso a Administração ofereça novas vagas durante a vigência do concurso em questão, a reserva de 12% (doze por cento) aos afro-brasileiros(as) deverá ser mantida.

§3º – Quando o número de vagas reservadas aos afro-brasileiros(as) resultar em fração, arredondar-se-á para número inteiro, imediatamente superior em caso de fração igual ou maior a 0,5 (zero vírgula cinco), ou para número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5 (zero vírgula cinco por cento).

§4º – A observância do percentual de vagas reservadas aos afro-brasileiros(as) dar-se-á durante todo o período de validade do concurso e aplicar-se-á a todos os cargos oferecidos.

Art. 2º O aceso (sic) dos candidatos à reserva de vagas obedecerá ao pressuposto do procedimento único de seleção.

Art. 3º Na hipótese de não preenchimento da quota prevista no artigo 1º, as vagas remanescentes serão revertidas para os demais candidatos qualificados no certame, observada a respectiva ordem de classificação.

Art. 4º Para efeitos desta lei, considerar-se-á afro-brasileiro(a) aquele(a) que assim se declare, expressamente, identificando-se como de cor negra ou parda, pertencente à raça/etinia negra, prevista no inciso II do artigo 3º do Decreto nº 13.961 de 14 de Novembro de 2002.

Parágrafo único. Tal informação integrará os registros cadastrais de ingresso de servidores.

Art. 5º Detectada a falsidade na declaração a que se refere o artigo anterior, sujeitar-se-á às penas da Lei e ainda:

I-se candidato, à anulação da inscrição no concurso público e de todos os atos daí decorrentes;

II-se já nomeado no cargo efetivo para o qual concorreu na reserva de vagas aludidas noart. 1º, utilizando-se da declaração inverídica, à pena disciplinar de demissão.

Parágrafo único. Em qualquer hipótese, ser-lhe-á assegurada ampla defesa.

Art. 6º As disposições desta Lei não se aplicam àqueles concursos públicos cujos editais de abertura foram publicados anteriormente à sua vigência.

(…)”

Sustentou o Prefeito municipal, nas informações acostadas às fls. 50 e ss., ter-se feito incidir o percentual de 12% previsto no “caput”, do art. 1º, sobre o número de vagas oferecido no edital e, posteriormente, aos lotes isolados de novas vagas abertas, não se logrando, em qualquer dos cálculos, verificar a superação do balizador mínimo para arredondamento previsto na lei, garantia da vaga ora discutida.

Melhor ilustrando a exegese da Administração, é necessário ter em mente o número de vagas inicialmente oferecido: 2 (duas). Calculado o percentual de 12% (§1º, do art. 1º) sobre referidas vagas, o resultado: 0,24, por ser menor que 0,5 (§3º, do art. 1º), não faria a pretendente lograr nomeação com base na LM nº 4.016.

Posteriormente, abertas novas três vagas para o cargo de assistente de serviços escolares (fl. 27), novamente o resultado da aplicação do percentual de 12% (0,36) não se mostrou suficiente para garantir-se a vaga da impetrante, o mesmo ocorrendo com as últimas duas vagas oferecidas até o ajuizamento da demanda (fl. 28).

A linha interpretativa adotada pela administração municipal representa indevida restrição ao direito fundamental regulamentado pela LM nº 4.016/04.

Ora, bastaria que o Administrador com intervalos ínfimos de tempo, ao seu puro alvedrio, parcelasse a oferta de vagas para que restasse sonegada a eficácia do édito legal.

A interpretação oficial, assim, não se sustenta.

Embora devasse reconhecer que a redação do texto legal não foi a mais clara, a interpretação que melhor se afeiçoa aos objetivos legais, evitando-se que, eventualmente, a sua eficácia seja tolhido, é a de que o §3º, do art. 1º, previu o direito de contagem de novas vagas cumulativamente às já oferecidas, fato que levaria, invariavelmente, ao acolhimento da pretensão da impetrante, uma vez que, ao considerar-se a abertura da 6ª vaga, aplicando-se o percentual de 12%, lograr-se-ia coeficiente superior a 0,5, passando-se a contar como uma vaga.

Essa é a interpretação mais razoável a ser aplicada ao caso concreto, razão pela qual merece provimento a apelação, concedendo-se a segurança postulada a fim de que a impetrante tenha os seus assentos funcionais alterados para a data da posse da candidata Márcia Eliane Lemos, procedendo-se, assim, às retificações subseqüentes.

Diante da concessão da segurança, inverto a condenação ao pagamento das custas processuais, as quais serão de responsabilidade da autoridade impetrada. Não há condenação em honorários advocatícios por se tratar de mandado de segurança.

Enfim, voto no sentido do provimento da apelação para conceder a segurança pleiteada, determinando a retroação dos efeitos da nomeação da candidata impetrante ao dia 02/07/2004.

Este é o voto.

Dr. Mário Crespo Brum (REVISOR) – De acordo.

Des. Nelson Antonio Monteiro Pacheco (PRESIDENTE) – De acordo.

DES. NELSON ANTONIO MONTEIRO PACHECO – Presidente – Apelação Cível nº 70013034152, Comarca de Montenegro: “DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. UNÂNIME.”

Julgador de 1º Grau: RUY SIMOES FILHO

Processo 700.130.341-52

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!