Direito da nação

É um dever moral do Supremo julgar logo o mensalão

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25 de abril de 2006, 20h53

A denúncia oferecida ao Supremo Tribunal Federal pelo procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, contra a “organização criminosa” responsável pelo “mensalão”, comandada pelo ex-deputado e ex-chefe da Casa Civil José Dirceu, com auxílio da ex-cúpula do PT, começa efetivamente um processo de lavagem da alma nacional, como registramos dias atrás no NoBlog.

Com a isenção que lhe confere o posto de chefe do Ministério Público Federal, o procurador-geral, baseado em poderosa peça acusatória de 136 páginas, resultado de quase 10 meses de investigação, afirma taxativamente que o mensalão existiu, sim.

Tinha Dirceu como o chefe supremo, secundado pelos ex-dirigentes petistas José Genoino, Delúbio Soares e Silvio Pereira, e o objetivo da “quadrilha”, associada ao empresário Marcos Valério, era precisamente aquilo que CPIs do Congresso, parlamentares da oposição e boa parte da imprensa afirmavam ser: “garantir a continuidade do projeto de poder do PT, mediante a compra e o suporte político de outros partidos políticos e do financiamento futuro e pretérito de suas próprias campanhas [eleitorais]”.

A alma nacional começou a ser lavada, mas aí entra em cena a lentidão da Justiça. O próprio relator do inquérito do mensalão no Supremo Tribunal, ministro Joaquim Barbosa, já por duas vezes desde a divulgação da denúncia, no dia 11 passado, como que preveniu a opinião pública de que o caso, devido ao grande número de envolvidos (o procurador-geral denunciou 40 pessoas), vai andar lentamente. A decisão preliminar sobre se o tribunal irá ou não aceitar a denúncia — para que o processo efetivamente comece — talvez só saia em 2007, advertiu. E será só uma decisão preliminar.

Vale a pena resumir em itens alguns problemas operacionais que o ministro, a julgar por suas declarações, enxerga na trajetória da denúncia:

— Os advogados de todos os denunciados irão, naturalmente, pedir acesso aos autos do inquérito — cujo volume, qualificou o ministro Joaquim, “é imenso”, e do qual não existem cópias. Não haverá como advogados de 40 diferentes denunciados retirarem, cada um, todo o material para consulta simultaneamente. Assim, o Supremo prepara uma sala especial para que esse trabalho seja feito ali mesmo, com os advogados se revezando, e produzindo a demora que se pode imaginar.

— Mesmo com as possíveis facilidades que o tribunal oferecer ao trabalho dos advogados, essa situação certamente vai propiciar um pulular de recursos alegando dificuldades de acesso aos autos.

— Os denunciados precisam ser notificados um a um, pessoalmente, para que os advogados apresentem defesa. E há denunciados em várias cidades diferentes, como Brasília, Belo Horizonte, Salvador e São Paulo. Além das naturais dificuldades burocráticas, é certo que boa parte dos envolvidos (se não todos) vai dificultar ao máximo o ato de notificação, para empurrar os prazos com a barriga. Em pleno século 21, não existe forma legal no Brasil de contornar esse problema.

— Ocorrida a notificação (o despacho do ministro mandando notificar os acusados foi expedido no dia 11), os acusados têm, formalmente, o prazo de 15 dias para apresentar defesa. Diante do mencionado nos dois primeiros itens desta relação de dificuldades, porém, o próprio ministro Joaquim já levantou a possibilidade de autorizar prorrogações, de forma a garantir aos 40 denunciados “o pleno exercício do direito de defesa” e não submeter o processo, lá adiante, ao risco de nulidade.

Se o ministro Joaquim imagina que a mera decisão sobre a denúncia só será possível em 2007, o que podemos esperar da solução final do processo? Não custa lembrar que tudo o que se relatou até agora se refere a uma fase pré-processual. Na fase seguinte, de instrução da ação penal — caso o Supremo aceite a denúncia e o processo propriamente dito se inicie —, ainda será necessário realizar o interrogatório de todos os 40 réus e das 41 testemunhas arroladas até agora (outras poderão ser acrescentadas a pedido do MP ou dos advogados).

Só depois dessas etapas, a respeito das quais cabem inúmeros recursos, pedidos de Habeas Corpus e vários atos protelatórios admitidos pela legislação brasileira, é que começará o julgamento propriamente dito.

Quando é que a opinião pública, então, poderá saber se os suspeitos são culpados, e se os culpados por um dos maiores escândalos da vida pública brasileira em todos os tempos serão punidos? E se o presidente Lula tem como ser juridicamente responsabilizado? Em 2008? Em 2009? Em dois mil e quantos?

É possível, para o país, para a opinião pública informada e para as instituições aguardar tanto, sem um dano irreparável à credibilidade da própria democracia?

O Supremo Tribunal Federal, por ser o órgão de cúpula de um dos três Poderes do Estado, é também um tribunal político — tanto da grande politique, que leva em conta o interesse público e os destinos da nação, como da política propriamente dita. Interpretar a Constituição, em suas nuances e levando em conta suas conseqüências — a principal tarefa do Supremo —, é, em muitas circunstâncias, e inescapavelmente, uma tarefa política.

Não é por acaso que tantos de seus membros desde a proclamação da República, há mais de 116 anos, passaram a envergar as vetustas togas negras vindos diretamente da vida política, ou vice-versa. Nem é preciso recorrer a casos da República Velha, como o do presidente Epitácio Pessoa (1919-1922), que passou 10 anos no Supremo antes de chegar ao Palácio do Catete.

Victor Nunes Leal (ministro de 1960 a 1969) foi chefe da Casa Civil do presidente Juscelino Kubitschek. Hermes Lima (1963-1969), primeiro-ministro de João Goulart sob o efêmero regime parlamentarista (1961-1963). Aliomar Baleeiro (1965-1975), Adauto Lúcio Cardoso (1967-1971) e Bilac Pinto (1970-1978) exerceram vários mandatos de deputado federal pela velha UDN, bem como, mais recentemente, Célio Borja (1986-1992) pela Arena e Nelson Jobim (1997-2006) pelo PMDB, e Paulo Brossard (1989-1994) e Maurício Corrêa (1994-2004) mandatos de senador, respectivamente pelo PMDB e o PDT.

Até por sua composição, em várias oportunidades ao longo de sua história, o Supremo soube conciliar o estrito cumprimento à Constituição e às leis com a sensibilidade política e os anseios nacionais. Apesar das ponderações do ministro Joaquim Barbosa, o Supremo Tribunal Federal precisa encontrar uma forma de, sem ferir os direitos dos acusados, dar uma satisfação à opinião pública, sobre um caso tão profundamente grave e daninho, num prazo razoável.

Andar mais depressa, nesse caso, é um dever moral do Supremo diante da nação.

(Artigo originalmente publicado no site No Mínimo)

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