Erro de cálculo

Juiz pode reduzir multa por descumprimento de decisão

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22 de abril de 2006, 7h00

O juiz pode reduzir valor da multa por descumprimento de decisão judicial quando percebe que o montante gera enriquecimento indevido. O entendimento é do juiz Baltazar Miranda Saraiva, da 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais de Salvador.

De acordo com a decisão, a redução é possível porque “a função das astreintes, em nosso sistema jurídico, não é o de substituir às perdas e danos, ou punir a parte (tal como a multa prevista no artigo 14 do Código de Processo Civil), mas, sim, coagir ao cumprimento da decisão judicial”.

Até agora, a única orientação nesse sentido é o Enunciado 25 dos Juizados Especiais. Pela regra, “a multa cominatória não fica limitada ao valor de quarenta salários mínimos, embora deva ser razoavelmente fixada pelo juiz, obedecendo-se o valor da obrigação principal, mais perdas e danos, atendidas as condições econômicas do devedor”.

O juiz Baltazar Saraiva reduziu de R$ 27 mil para R$ 5 mil a multa que a Maxitel terá de pagar para Carlos Tadeu Fentanes. Ele ajuizou uma ação contra a empresa pedindo que seu nome fosse retirado do cadastro do SPC, sob pena do pagamento de multa diária no valor de R$ 100.

O pedido foi aceito, mas a Maxitel descumpriu a decisão. O valor da causa era de R$ 7,2 mil e a multa chegou em R$ 27,8 mil, fixada pela primeira instância. A empresa recorreu com Embargos à Execução. Baltazar Saraiva acolheu parte do pedido.

O juiz entendeu que o valor não poderia ser mantido, “posto que não se mostra condizente com o conteúdo econômico da demanda principal, ensejando enriquecimento sem causa do embargado [Carlos Tadeu]; ao mesmo tempo em que importa em redução drástica do patrimônio da embargante, sendo certo, portanto, que a manutenção de tal quantia acarretará na violação do Princípio da Proporcionalidade que deve reger a fixação e posterior execução das astreintes cominadas em sede de Juizados Especiais”.

Leia a decisão

SEGUNDA TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E CRIMINAIS

RECURSO No 46029-0/2001-2 – TURNO TARDE.

EMBARGOS À EXECUÇÃO

RECORRENTE: MAXITEL S/A

RECORRIDO: CARLOS TADEU FENTANES

RELATOR: JUIZ BALTAZAR MIRANDA SARAIVA

EMENTA: PROCESSO CIVIL. ASTREINTES. POSSIBILIDADE, PELO JUÍZO DA EXECUÇÃO, DE REVISÃO DA MULTA ORIGINÁRIA DE EXECUÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. ARTIGO 461, § 6º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. OFENSA À COISA JULGADA. INOCORRÊNCIA. UMA VEZ VERIFICADO QUE A MULTA NÃO CUMPRIU COM SUA FUNÇÃO COERCITIVA, OU QUE O RECEBIMENTO DA MESMA PODERÁ IMPLICAR NO ENRIQUECIMENTO INDEVIDO DA PARTE CONTRÁRIA, O JUIZ PODERÁ REDUZIR O CRÉDITO RESULTANTE DA INCIDÊNCIA DAS ASTREINTES, PARA A QUANTIA DE R$ 5.400,00 (CINCO MIL E QUATROCENTOS REAIS). APLICAÇÃO DOS ARTIGOS 644 E 461, § 6º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. A REDUÇÃO DA MULTA NÃO IMPLICA EM OFENSA À COISA JULGADA, POSTO QUE O CRÉDITO RESULTANTE DAS ASTREINTES NÃO INTEGRA A LIDE PROPRIAMENTE DITA E, PORTANTO, NÃO FAZ PARTE DAS “QUESTÕES JÁ DECIDIDAS, RELATIVAS À MESMA LIDE”. (ARTIGO 471, CPC). RECURSO PROVIDO, PARA REFORMAR A SENTENÇA. SEM ÔNUS DE SUCUMBÊNCIA, POR SE TRATAR DE RECORRENTE VENCEDORA.

RELATÓRIO:

Adoto integralmente o relatório da sentença de fl 99, a qual julgou improcedentes os embargos à execução interpostos pelo MAXITEL S/A.

Inconformada com a decisão, a demandada interpôs recurso para as Turmas Recursais, nos termos dos arts. 41 e seguintes da Lei 9.099/95, efetuando o preparo às fls. 106/111.

Em suas razões (fls 100/105), sustentando, novamente, os argumentos da inicial dos embargos, alega equívoco do decisum, cuja reforma integral pede, porquanto, assegura ser elevada a quantia da execução.

Em resposta (fls.112/120), o recorrido concorda quanto a argüição de erro de cálculo de fl 70, qual seja, a inclusão de honorários advocatícios que incidiu sobre a multa, enquanto que deveria incidir apenas quanto ao valor da condenação principal, refuta os argumentos expendidos pela recorrente quanto ao pedido de diminuição da multa cominatória e requer a condenação de honorários advocatícios, com a manutenção parcial da sentença, por entendê-la justa.

Os autos foram distribuídos para esta 2a Turma Recursal, cabendo-me por sorteio a função de relator. Após examiná-los, submeto aos demais membros desta E. Corte o meu

V O T O:

Presentes os pressupostos de admissibilidade do recurso, passo a julgá-lo.

Ao rejeitar os embargos à execução, asseverou o Magistrado de piso:

“O cálculo efetuado pelo setor competente deste Juizado está livre de qualquer mácula, visto que computou como dia do início da incidência da multa 48 horas após a data da assentada instrutória(24/09/02), isto é 27/09/2002, o que está implícito que a ré teve acesso aos autos e ficara ciente da determinação contida na medida antecipatória da tutela concedida, tendo como termo ad quem o último dia em que a parte consultou os seus dados e ainda continuava negativado, conforme depreende o doc. de fl. 05 dos autos em apenso, portanto corretos os cálculos e inexiste o excesso apontado, bem como a multa estipulada não pode sofrer limite, nem reduzida por ato posterior, se a executada, sem justo motivo, deixou de cumprir a ordem judicial.

Portanto, à vista do exposto, rejeitos os presentes embargos e julgo-os improcedentes.”


Creio assistir razão à recorrente.

Respeitado o convencimento do ilustre Magistrado, dele se diverge.

Avisto que um fato passou despercebido pelo Juízo de piso. Conforme reconhecido pelo embargado, os cálculos de fl 70 foram elaborados com erro material, considerando que computou os honorários advocatícios de 15%, incidente, também, sobre o valor arbitrado a titulo de multa, quando deveriam incidir apenas em relação à condenação principal.

Por outro lado, o embargado já levantou o principal, conforme cálculos de fl 72, no total de R$ 6.234,91 (seis mil, duzentos e trinta e quatro reais e noventa e um centavos), levantamento feito através da guia de fl 95, enquanto que os presentes Embargos só dizem respeito à execução da multa cominatória.

A questão posta nos autos é a seguinte: Uma vez verificado que a multa não cumpriu com sua função coercitiva, ou que o recebimento da mesma poderá implicar no enriquecimento indevido da parte contrária, o juiz poderá reduzir ou extinguir o crédito resultante da incidência da astreintes?

A resposta é positiva.

Isso se dá pelo fato que a função da astreintes, em nosso sistema jurídico, não é o de substituir às perdas e danos, ou punir a parte (tal como a multa prevista no artigo 14 do Código de Processo Civil), mas, sim, coagir ao cumprimento da decisão judicial.

Desse modo, uma vez verificado que a multa não cumpriu a sua função coercitiva, ou que o seu valor, além de guardar uma desproporção com o valor da lide principal, enseja um enriquecimento sem causa da parte contrária, mostra-se imperioso o seu redimensionamento, nos termos dos artigos 644 e 461, § 6º, do Código de Processo Civil, sem infringência ao instituto da coisa julgada, conforme adiante se verá.

Nesse sentido leciona LUIZ GUILHERME MARINONI1:

“Ora, se a multa já assumiu valor despropositado, e assim não se constituiu mais em meio de pressão sobre a vontade do réu, não há razão para não admitir a redução do seu valor, tornando-o compatível com a situação concreta posta em juízo. Reduzindo-se o valor da multa que se tornou despropositado, e dando-se ao inadimplente nova oportunidade de adimplir a sua obrigação, reafirma-se a função da multa, que é a de compelir o demandado a adimplir, e não de retirar patrimônio do demandado para – o que é pior – permitir o enriquecimento sem qualquer justificativa ao autor” .

Nesse mesmo sentido já decidiu este Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul :

“Ora, não é a função da astreinte, em nosso sistema jurídico, o substituir-se às perdas e danos. Trata-se de simples meio para induzir o cumprimento. Na espécie, por razões bem conhecidas, revelou-se mecanismo inoperante. Logo, manter a condenação retroativa implicaria, sobretudo, transferir expressiva quantia de recursos públicos, afetados ao povo de Uruguaiana, para um fundo geral, em proveito ou benefício para os diretamente atingidos pelo ilícito. É preferível, nesta contigência, manter a condenação no capítulo principal – perdas e danos -, mas absolver o réu do pagamento da astreinte. De resto, semelhante mecanismo se destina, precipuamente, a assegurar o cumprimento e o prestígio das decisões judiciárias. Sua frustação e inconveniência, no caso concreto, bem revelam quão difícil é o primeiro e quão escasso é o segundo… Descumprida a liminar, sem qualquer iniciativa do autor para vê-la realizada, no plano prático, frustrou-se sua finalidade. E cabe ao órgão judiciário, conforme resulta do art. 644, parágrafo único, do Cód. de Proc. Civil, à semelhança do que ocorreu no sistema jurídico francês (René Savatier, Traité de la responsabilité civile em droit français, v. 2, n.º 598, p. 173, 2ª Ed., Paris, LGDJ, 1951), diminuir e suprimir a multa. (Reexame Necessário n.º 70003274230, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 4ª Câmara Cível, Rel. Des. Araken de Assis, j. em 14/11/2001).

Portanto, perfeitamente possível, pelo juízo da execução, a modificação do valor da astreinte quando verificada a sua insuficiência ou excesso.

Registre-se que a redução da multa não implica em ofensa à coisa julgada. Por certo que nos termos do artigo 471, do Código de Processo Civil, nenhum juiz decidirá novamente as questões decididas, relativas à mesma lide. Todavia, o crédito resultante das astreintes não integra a lide propriamente dita e, portanto, não faz parte das “questões já decididas, relativas à mesma lide”. Assim, conforme bem anotado por GUILHERME RIZZO AMARAL2, “a imutabilidade da coisa julgada recai sobre a pretensão que foi acolhida, e não sobre as técnicas de coerção utilizadas no decorrer da demanda ou sobre seus resultados. Por esta razão, admite-se a redução, e até a supressão, do valor da multa”.


No caso dos autos, é imprescindível a avaliação do conteúdo da demanda principal de onde se originaram as astreintes em exame.

O Embargado ajuizou uma “QUEIXA” contra a Embargante, requerendo liminar para que esta fosse compelida a promover a imediata retirada do nome do seu nome do cadastro do SPC, sob pena de pagamento de multa diária no valor de R$ 100,00.

Não obstante, levando-se em consideração que a Embargante não atendeu a determinação judicial, bem como considerando o valor da causa, R$ 7.200,00, mostra-se flagrante a discrepância entre o valor da lide e o valor da multa (R$ 27.800,00 em 03/03/2004) fl 73, sendo imperiosa a sua minoração.

A vedação do enriquecimento ilícito através da execução de astreintes que atingem valores desarrazoados vem sendo seguidamente combatida pelas Turmas Recursais, especialmente com a aplicação do art. 461, § 6º, do CPC, como revela o julgamento do processo nº 71000632893, da relatoria da DRA. MARIA JOSÉ SCHMITT SANT ANNA, JUÍZA DA TERCEIRA TURMA RECURSAL CÍVEL – JEC – COMARCA DE PORTO ALEGRE, julgado em 24/05/2005, cuja ementa vai a seguir, in verbis:

“EMBARGOS À EXECUÇÃO. LIMITAÇÃO DAS ASTREINTES.

A limitação do valor das astreintes somente pode-se dar em função dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade; isso quando se verificam nos autos motivos razoáveis para que ocorra o atraso no cumprimento da ordem judicial, o que não se configura nos autos.

A quantia devida a título de astreintes não sofre as restrições dos arts. 3º, I, da Lei 9.099/95, e 412, do NCC. Todavia, sendo o valor fixado excessivo cabível a redução de ofício, conforme a norma do art. 461, § 6º, do CPC.

RECURSO PROVIDO.” (grifou-se)

Embora a astreinte deva ser expressiva, a ponto de coagir o devedor a cumprir o preceito, não pode configurar-se como ônus excessivo, sob pena de se estar olvidando, com isso, as noções de eqüidade que devem pautar as decisões judiciais3.

No que concerne ao valor arbitrado pelo magistrado “a quo”, R$ 27.800,00, o mesmo não deve ser mantido, posto que não se mostra condizente com o conteúdo econômico da demanda principal, ensejando enriquecimento sem causa do Embargado; ao mesmo tempo em que importa em uma redução drástica do patrimônio da Embargante, sendo certo, portanto, que a manutenção de tal quantia acarretará na violação do Princípio da Proporcionalidade que deve reger a fixação e posterior execução das astreintes cominadas em sede de Juizados Especiais.

No caso concreto, não razoável o valor fixado pelo magistrado singular, qual seja, R$ 27.800,00 (vinte e sete mil reais e oitocentos reais), pois expressivo e abusivo.

Destarte, vislumbro a aplicação ao caso em tela do quanto disposto no § 6º do art.461 do Código de Processo Civil, que assim estabelece, in verbis:

“Art.461 – Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

(…)

§ 6º – O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva.”

Portanto, tendo o cálculo das astreintes alcançado a exorbitante quantia de R$ 27.800,00 (vinte e sete mil reais e oitocentos reais), vislumbro a incontestável aplicação do dispositivo legal acima transcrito, diante do excessivo valor alcançado, e, visando, precipuamente, evitar o enriquecimento sem causa do Embargado, reduzindo-a para a quantia de R$ 5.400,00 (cinco mil e quatrocentos reais).

Diante do exposto, VOTO no sentido de DAR PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO, apenas para reduzir o crédito resultante da incidência das astreintes para a quantia de R$ 5.400,00 (cinco mil e quatrocentos reais), autorizando o levantamento da diferença depositada em favor da Embargante.(fl 94).

Sem ônus de sucumbência, por se tratar de recorrente vencedora.

É como voto.

Salvador, Sala das Sessões, 11de abril de 2006.

DR. BALTAZAR MIRANDA SARAIVA

JUIZ RELATOR

Notas de rodapé

[1] MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela específica: arts. 461, CPC e 84, CDC. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 112/113.

[2] AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro: multa do artigo 461 do CPC e outras. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 227.

[3] NEGRÃO, Theotonio Negrão; GOUVÊA, José Roberto F. Gouvêa. Código de Processo Civil e Legislação Processual Em Vigor. 37ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva. p. 504. (JTJ 260/321)

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