Exemplo francês

Brasileiros deveriam lutar contra demissão imotivada

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21 de abril de 2006, 7h00

Os acontecimentos recentes que vêm tumultuando o território político na França retratam uma batalha que se contrapõe à grande vitória das classes dominantes obtida no final do século passado. Nestes anos, os corações e mentes da opinião pública foram embalados pelas cantigas neoliberais celebrando a perversidade do capital como produto de relações necessárias.

As pessoas vêm sendo convencidas de que a necessidade econômica concreta está por cima do campo dos sonhos e governos e as empresas devem fazer o que for preciso para preservar os interesses do mercado. Ao proclamar que é preciso ser realista, o capital legitima a banalização de uma razão perversa como perspectiva básica do sistema, iluminando tudo com o enganoso pressuposto de que não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos.

Somente no final do século é que começou a se esboçar a reação à predominância desta visão estruturando-se um pólo de opinião sob a bandeira do pressuposto de que um outro mundo é possível. Um novo lugar social em que a preocupação com as pessoas e não com os lucros venha a ser o parâmetro de referência das escolhas políticas e econômicas. Estas reflexões são essenciais para compreender o confronto que está levando centenas de milhares de pessoas aos protestos de rua nas cidades francesas.

Estudantes e sindicalistas batem-se contra uma nova lei, denominada de contrato de primeiro emprego1 que permite às empresas em geral contratar pessoas menores de 26 anos, com o direito de despedi-las sem motivação, durante o período dos primeiros dois anos.

Numa das matérias da imprensa francesa a respeito da polêmica, vemos2: “‘eu não quero uma sociedade que funcione sob o medo de ser despedido a qualquer momento’, diz Celina, estudante de História em Lille”. O sistema francês, como regra geral, privilegia o contrato por tempo indeterminado no qual não pode haver a dispensa imotivada. Embora existam 16 outras formas de contratação3, a demissão sem motivo somente havia sido admitida num anterior (e mais tímido) modelo de contrato de primeiro emprego4 limitado às empresas com menos de 20 empregados.

A lei que aprovou o chamado CPE universaliza para todas as empresas a possibilidade de dispensa imotivada do jovem empregado. O movimento estudantil, as centrais sindicais (CGT, CFDT, FO, CFE-CGC, CFTC, FSU, Solidaires, UNSA, Unef, Cé, UNL, FIDL) e 68% da opinião pública francesa5 estão reclamando a não implementação deste modelo. Esta resistência vislumbra que a suposta inovação é um passo decisivo na direção de suprimir a proteção do empregado no contrato por tempo indeterminado, caminhando para que a dispensa sem motivo venha a tornar-se uma forma predominante de terminação contratual.

A questão da dispensa imotivada é o tema central do debate. O empregador deve ter o direito absoluto de livrar-se do empregado a qualquer momento, sem qualquer explicação ou a terminação do contrato deve ser condicionada à existência de uma causa justa e real? É uma encruzilhada específica dentro da grande encruzilhada entre a razão perversa que subordina tudo à necessidade empresarial e a escolha por um outro mundo possível em que o ser humano seja a base de referência das organizações.

No Brasil, a doutrina interpreta a Constituição Federal no sentido de entender que a ordem jurídica escolheu privilegiar o direito de despedir sem motivo como pedra fundamental do sistema de rescisão dos contratos trabalhistas. A convenção 158 da OIT, que vigorou por aqui em pouco tempo, teria o efeito de restringir este suposto direito potestativo absoluto se não houvesse sido esterilizada rapidamente pelo Supremo Tribunal Federal que lhe negou tal efeito6. Recusados seus efeitos quanto à dispensa imotivada, ficou por ali como um espantalho de papel até que FHC deu término ao espetáculo melancólico, quando faltavam dois dias7 para o término do prazo para denúncia.

A rescisão contratual implica em fazer com que o trabalhador perca o seu sustento e o de sua família acarretando ao dispensado toda a sorte de sofrimentos. No entanto, o ato de despedir é transformado em produto inevitável de um conjunto de relações que apontam para um destino inexorável. Não há qualquer consideração a respeito do lado ético de produzir este mal a um ser humano porque se estabelece como premissa que a ética não produz lucros e a economia não leva em conta este tipo de parâmetro.

No Brasil, a classe média é o grande baluarte de apoio às relações de trabalho flexíveis e não percebe que está apoiando o sangramento em sua própria carne. Estudos recentemente divulgados8 demonstram que, “entre 1980 e 2000, sete milhões de pessoas que ocupavam essa faixa da sociedade perderam seus empregos e não conseguiram recuperá-los. Em conseqüência, tiveram seu poder de compra reduzido, o padrão de vida rebaixado e, assim, saíram forçadamente da classe B para passar a tomar parte na classe C.

Segundo o IBGE, em 1980, os assalariados que participavam do estrato social respondiam por 31,7% da PEA — População Economicamente Ativa. Vinte anos depois, porém, essa participação caiu para 27,1%.”.

A mídia a serviço do pensamento neoliberal, no entanto, inculca nestas vítimas a convicção de que “os europeus chegaram a uma situação em que, sem cortar direitos de alguns, não há como estender a todos os benefícios da prosperidade econômica”9. Faz parte da estratégia do andar de cima convencer as vítimas de que suas desgraças fazem parte de um processo inevitável e necessário para o bem estar da economia. Os meios de comunicação de massa, como as emissoras de televisão e certas revistas semanais, fazem este trabalho sujo todo o tempo com extrema competência.

A inovação tecnológica e organizacional tem produzido enormes ganhos de produtividade e vale lembrar que10: “Medida pelo número de produtos que cada empregado fabrica por ano, a produtividade da mão-de-obra cresceu a uma taxa anual de 8%. O desempenho é cerca de 20 vezes superior ao da década de 80″. Estes ganhos de produtividade, contudo, não são apropriados pela sociedade ou pela “economia”, mas pelas pessoas do andar de cima da sociedade. Não existem aquelas coisas que a mídia chama de mercado ou capital. O capital é uma relação entre pessoas mediada por coisas. Assim, são pessoas que se apropriam destes ganhos em detrimento de outras que simplesmente afundam-se mais no sofrimento do desemprego ou subemprego.

A demissão imotivada como direito potestativo absoluto assume, neste cenário, o papel de alavanca jurídica que permite desincorporar rapidamente a massa que vai se tornando desnecessária. Toda a correção de rota da empresa capitalista implica em livrar-se de pessoas e não há a menor preocupação com o destino das mesmas.

Por outro lado, a Convenção 158, repudiada por FHC, sugere um mundo em que a demissão tenha de ser socialmente motivada. E se esta motivação tiver a ver com a necessidade das empresas, exige-se a prévia consulta e negociação com o governo e os sindicatos.

A França, onde vigora esta norma, apresenta o maior índice de produtividade da comunidade européia e ostenta um produto nacional bruto por hora de trabalho bem maior do que países onde vigora a dispensa imotivada, tais como a Inglaterra e Estados Unidos.

No vazio deixado pela denúncia deste padrão internacional de Justiça, o Brasil precisa urgentemente de uma modificação legislativa assentando que o emprego é um direito fundamental do ser humano porque é o que materializa o exercício de seu direito ao trabalho. A perda deste direito fundamental não pode decorrer de uma prerrogativa de caráter potestativo não subordinada ao interesse social.

A resistência dos franceses à introdução, ainda que parcial, desta proposta perversa deveria servir de exemplo para os brasileiros lutarem pela revogação da demissão imotivada. Isto não acontece porque a mídia serviçal que bajula as classes dominantes joga todo seu peso para pintar a resistência como burrice, egoísmo, conservadorismo, de jovens cegos por não perceber como é “necessário” despir as relações de trabalho de qualquer conteúdo ético. Precisamos romper o fogo de barragem desta mídia serviçal e sem pudor para convencer o povo brasileiro da necessidade de exigir a motivação social para a dispensa de qualquer empregado.

Notas de rodapé

1 – Contrat première embauche (CPE): reservado aos menores de vinte e seis anos contratados por empresas com mais de 20 empregados, possibilitando a dispensa imotivada do empregado nos primeiros dois anos.

2 – http://www.humanite.presse.fr/journal/2006-03-20/2006-03-20-826605

3 – http://permanent.nouvelobs.com/social/20060307.OBS9700.html

4 – Contrat nouvelles embauches (CNE): entrou em vigor em outubro de 2005 e é reservado às empresas que contratem empregados com menos de vinte e seis anos, com um período de “consolidação” (experiência) por dois anos, durante o qual, pode haver dispensa sem motivo, com pagamento de indenização correspondente a 8% da remuneração.

5 – http://www.lemonde.fr/web/article/0,1-0@2-734511,36-753047@51-725561,0.html

6 – ADI-MC 1480 / DF – DISTRITO FEDERAL MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a): Min. CELSO DE MELLO Tribunal Pleno Publicação: DJ 18-05-2001 PP-00429 EMENT VOL-02031-02 PP-00213

7 – WANDELLI, Leonardo Vieria “Despedida Abusiva”, Editora LTr , 2004, pág. 326

8 – http://www.terra.com.br/istoe/1899/economia/1899_sete_milhoes_

deixam_a_classe_media.htm

9 – Veja, edição 1949, 29/03/2006

10 – VEJA edição Internet, capturado em 12/12/2002 in http://www2.uol.com.br/veja/111202/p_128.html

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