Vozes do Supremo

Entrevista: ministro Enrique Ricardo Lewandowski

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19 de abril de 2006, 7h00

Do salário mínimo ao teto salarial do serviço público; da cassação do deputado ao resultado do campeonato brasileiro de futebol, tudo hoje passa pelo Judiciário. Esse processo é o que se chama de “judicialização” da vida do país. Mas há um risco, alerta o ministro do Supremo Tribunal Federal, Enrique Ricardo Lewandowski: quando se judicializam as questões políticas, pode-se passar a impressão de que a Justiça esteja se politizando.

Essa situação pede cautela. “Os juízes não podem ser árbitros das questões político-partidárias”, diz Lewandowski, que estréia no Supremo no momento mesmo em que a campanha eleitoral começa a se aquecer. “O papel do Supremo é de emprestar racionalidade ao processo”, diz.

A função do STF, de árbitro principal das grandes questões nacionais, é um grande avanço, explica o ministro. Mostra o amadurecimento institucional, conseqüência do perfil civilista da Constituição de 1988, que abriu os olhos do cidadão para os seus direitos e para os direitos do meio onde vive.

Advogado que se tornou desembargador em São Paulo, em uma das vagas destinadas à Ordem dos Advogados do Brasil, Lewandowski chegou ao Supremo depois de um agitado processo seletivo. Temia-se que a vaga pudesse ser preenchida por um representante da classe política. Sua carreira profissional, formação acadêmica de professor da Universidade de São Paulo e atuação jurisdicional foram suficientes para afastar dúvidas a respeito da legitimidade e do acerto da escolha.

Lewandowski tem uma experiência de 15 anos de julgamento colegiado. Foi juiz no extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo e desembargador do Tribunal de Justiça do mesmo estado. Ultimamente o ministro está engajado no estudo da Filosofia Estóica, que se iniciou na Grécia por volta do ano 300 a.C. “Eu estou escrevendo um pouquinho sobre esta antiga arte de viver. De como o homem se insere dentro do cosmos, da natureza, e como se conforma com as adversidades da vida”, conta o ministro.

O mais recente componente Supremo Tribunal Federal mostra mais de suas idéias na entrevista que segue, a sétima de uma série com os ministros do Supremo feita pelo site Consultor Jurídico para o Estado.

ConJur — O Supremo é chamado a intervir com freqüência no processo político. Quais são os limites de sua atuação nessa área?

Ricardo Lewandowski — O Supremo trouxe para o debate político aquilo que se espera dele: um distanciamento institucional e temporal. Isso me parece sobretudo importante em um momento político como este, pré-eleitoral. É preciso emprestar uma certa racionalidade ao processo, subtraindo do debate político o imediatismo eleitoral. Nesse sentido, o Supremo tem exercido um papel moderador, ao submeter os conflitos entre os poderes ao crivo da Constituição. Recoloca a discussão meramente política em um plano político-institucional ou político-jurídico. O STF vem desempenhando um papel institucional importante quando enfrenta o chamado fenômeno da judicialização da política, sem engessar o processo político.

ConJur — O que significa isso?

Ricardo Lewandowski — Muitos problemas de caráter meramente político — desenvolvidos no âmbito do Executivo ou do Legislativo — não raro são trasladados de forma indevida para o Judiciário. Na Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, onde atuei, procurávamos, sempre que possível, devolver as questões de cunho político para os próprios políticos. O Judiciário deve evitar decidir questões estritamente políticas, que precisam ser resolvidas onde se originaram. Os temas político-partidários têm que ser discutidos no seio dos partidos, nas câmaras municipais, nas assembléias legislativas e no Congresso. Os juízes não podem ser árbitros de dissídios dessa natureza. E o que o Supremo tem feito historicamente nesse campo, ainda que muitas vezes não seja bem compreendido, é proteger os direitos fundamentais, com destaque para o direito à ampla defesa, ao contraditório, à intimidade, à honra. Nesse aspecto, ele não vê a pessoa que está no pólo ativo de uma demanda, não vê cara ou opção partidária, vê um cidadão que busca defender dos seus direitos.

ConJur — Mas existe também uma judicialização da sociedade em geral?

Ricardo Lewandowski — Há um aspecto muito positivo nesse sentido. No Brasil, sobretudo depois da Constituição de 88, o cidadão começou a conhecer melhor e defender mais os seus direitos, seja no plano do consumo, do meio ambiente, do trabalho. Já na escola, a criança sabe que tem um mínimo de direitos: o direito à proteção, o direito de não ser castigada indevidamente, o direito a uma prestação de serviço adequada etc. O cidadão, ainda que pouco instruído formalmente, em geral, conhece os seus direitos básicos. Ele só não consegue torná-los efetivos, muitas vezes, porque o pleno acesso à Justiça ainda encontra obstáculos. Tivemos um grande avanço com os Juizados de Pequenas Causas, hoje Juizados Especiais, que abriram as portas do Judiciário às classes econômica e socialmente menos favorecidas. Nessa linha, entendo que a muito combatida proliferação de escolas de Direito pelo país tem um aspecto positivo: permite que mais e mais pessoas conheçam e defendam os seus direitos exercendo um efeito multiplicador na sociedade, mesmo que nem todos os seus estudantes se transformem em advogados, delegados, juízes ou promotores.


ConJur — O Supremo deve ter compromisso com a governabilidade do país?

Ricardo Lewandowski — O Supremo não deve levar em conta a governabilidade no varejo, mas deve sim ter em conta a estabilidade das instituições. O STF está no ápice da estrutura judiciária brasileira e tem uma visão política mais ampla no sentido de preservar e tornar viável o funcionamento das instituições.

ConJur — O Supremo governa?

Ricardo Lewandowski — O Supremo não governa, ele faz parte do governo. É indiscutivelmente um órgão de governo. Ele participa da formulação política no sentido mais nobre da palavra. O artigo segundo da nossa Constituição diz exatamente isso: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Fazem parte do governo, então exercem a política com P maiúsculo, sem dúvida nenhuma.

ConJur — O Supremo legisla?

Ricardo Lewandowski — Talvez seja um legislador negativo. O julgador, seja de primeira instância ou do STF, tem um papel pedagógico e didático. Quando o Supremo diz que alguma lei é inconstitucional está exercendo um papel pedagógico importante.

ConJur — Há leis demais?

Ricardo Lewandowski — No Brasil, temos a visão bacharelesca de achar que tudo se resolve através de uma lei. Quer se mudar a realidade por decreto, o que nem sempre é possível. Uma tendência que vem do tempo de Getúlio com o decreto-lei, passa por todo o período revolucionário e chega à abertura democrática, com um certo abuso das medidas provisórias. Isto acaba dificultando a prestação jurisdicional, porque essas questões deságuam no Poder Judiciário. As medidas provisórias são editadas em tal número que nem sempre se sabe qual está em vigor. Isso dificulta até a vida do homem comum, pois existe a presunção que ninguém pode descumprir a lei sob o pretexto de que a desconhece. Hoje nem mesmo os especialistas conhecem todas as leis e todos os meandros dessas leis.

ConJur — O Ministério Público tem competência para fazer investigação na esfera criminal ?

Ricardo Lewandowski — Sem querer adiantar minha opinião, porque não posso antecipar meu voto, acredito que os poderes e os órgãos públicos têm as suas limitações claramente delineadas na Constituição. O STF deve examinar até que ponto vai a competência de determinados órgãos, se há conflitos e em que medida. Porque a democracia fundamentalmente baseia-se nos limites da atuação dos cidadãos e também dos órgãos de poder. Não existe um poder sem limites. O poder tem que ser delimitado e é por excelência, delimitado na Constituição.

ConJur — O Ministério Público ganhou muitos poderes depois da Constituição de 88. O senhor acredita que ele extrapola os limites?

Ricardo Lewandowski — O Ministério Público presta um papel extraordinário em vários campos. Sobretudo na defesa do meio ambiente, do consumidor e no combate à improbidade administrativa. No geral, os ganhos com a atuação vigilante do Ministério Público superam em muito o eventual prejuízo que se dá no caso concreto. Em regra geral, o MP tem respeitado os seus limites.

Conjur — E quanto à advocacia, como o senhor avalia a atuação dos advogados?

Ricardo Lewandowski — Historicamente a advocacia tem sido um dos baluartes na defesa da democracia. Teve um papel fundamental na transição do regime autoritário para o democrático e continua abraçando as grandes causas. A advocacia, de modo geral, tem potencializado a sua ação com os novos instrumentos que a Constituição de 88 colocou à disposição da cidadania.

ConJur — Como o senhor vê a atuação da advocacia pública?

Ricardo Lewandowski — Toda uma parte da advocacia muitas vezes é esquecida pelo grande público. É aquela formada pelos advogados das empresas públicas e autarquias que defendem o erário público, valores e princípios. Os advogados públicos são menos visíveis do que os privados. Com relação à advocacia privada, ressalto um aspecto que tem ocupado um espaço cada vez mais importante, que é a advocacia pro bono. É uma advocacia que defende as causas daqueles que não podem pagar. Isto é uma coisa muito bonita e moderna.

ConJur — Os advogados têm criticado o endurecimento do Judiciário na concessão de Habeas Corpus para réus presos. O senhor concorda com essas críticas?

Ricardo Lewandowski — Pode ser que haja certa inflexão nesse sentido, como uma reação natural do establishment judiciário à violência em que vivemos. Mas de modo geral, os juízes brasileiros são muito respeitadores da lei e têm um grande senso de justiça. Estando evidentes os pressupostos para que o acusado ou réu preso responda em liberdade, assim é decidido.

ConJur — Esse princípio pode ser aplicado também em relação à lei dos crimes hediondos de forma geral?

Ricardo Lewandowski — No caso dos hediondos, o legislador, respondendo a um sentimento da sociedade, entendeu que determinados crimes, pela repulsa que causam, merecem uma pena mais rigorosa e um sistema de cumprimento de pena mais duro. Entretanto, como a pena tem como pressuposto a ressocialização do condenado, devendo ser aplicada de forma individualizada, não se pode admitir que alguém seja encarcerado indefinidamente em um regime totalmente fechado, sobretudo tendo em vista a situação subumana em que se encontra a maioria de nossos estabelecimentos penitenciários. A recente decisão do Supremo, ao autorizar a progressão de regime, no caso da prática de crimes hediondos, levou em consideração esses princípios, que derivam da própria Constituição.


ConJur — Agiu certo o juiz de Minas Gerais que mandou soltar os presos por que as condições prisionais afrontavam a dignidade humana?

Ricardo Lewandowski — O juiz é, por definição, membro de um Poder do Estado que, ao julgar, leva em consideração não apenas a letra fria da lei, mas também o interesse público, especialmente quando ingressa na seara administrativa. Tendo em conta as condições precárias de uma prisão, o magistrado pode mandar evacuar os detentos, não sem antes encetar gestões com a administração penitenciária. Isso porque, além da saúde e do bem-estar dos presos, há que se cogitar também da segurança da sociedade, que não pode ficar à mercê de condenados muitas vezes de alta periculosidade. Uma providência drástica somente é admissível em situações extremas.

ConJur — Onde está a fronteira entre o direito à honra e à intimidade e o direito à liberdade de expressão?

Ricardo Lewandowski — Sempre que há colisão de valores, deve-se levar em conta os grandes princípios constitucionais. É a visão da moderna hermenêutica constitucional, que vem da doutrina alemã e dos julgados do Tribunal Constitucional Federal Alemão, que prestigia os princípios fundantes da Constituição. Não se pode dizer, em termos meramente abstratos, que um princípio é mais importante que outro. É preciso sopesá-los em face de um caso concreto. Assim, somente numa dada situação de fato é possível avaliar se a liberdade de expressão tem ou não precedência sobre a defesa da honra, da intimidade. Os princípios constitucionais só podem ser interpretados à luz da realidade fática subjacente, que definirá os contornos que eles assumirão num certo momento.

ConJur — O segredo de Justiça vincula o jornalista?

Ricardo Lewandowski — Não. Em princípio, o jornalista tem a mais ampla liberdade de expressão e de investigação. Tal, a meu ver, constitui um dos principais postulados do Estado democrático, sobretudo do Estado Democrático de Direito. O povo precisa estar amplamente informado para que possa tomar as decisões políticas. Isso é fundamental, crucial. Mas não se pode deixar de lado a idéia de que a mídia tem de se pautar por um código de ética, que não pode ser imposto pelo legislador, mas deve resultar da própria atividade jornalística. Existem certos limites que a ética não permite sejam transgredidos, sob pena de se colocar em risco a própria vida em sociedade. Caso sejam transgredidos, pode haver uma reação do corpo social, prevista em lei, de natureza civil ou criminal. Antes que os órgãos que colocam a lei em prática atuem, é desejável que os jornalistas pratiquem uma auto-restrição com base num código de conduta desenvolvido por eles mesmos.

ConJur — Cabe à Justiça fazer parte desse instrumental de restrição?

Ricardo Lewandowski — Absolutamente, não. Não pode haver nenhum tipo de censura prévia numa democracia, seja pelo Judiciário, seja por parte de algum outro órgão governamental. Entretanto, numa avaliação a posteriori, é lícito aos juízes, sempre atentos ao caso particular e à realidade concreta, avaliar se houve violação ao direito subjetivo de alguém, isto é, verificar se alguém foi ofendido em sua honra, privacidade ou intimidade, estabelecendo a sanção ou reparação correspondente, se for o caso.

ConJur — O senhor vem de um estado em que a Justiça se encontra em péssima situação, com demanda e congestionamento muito altos. Qual a saída para essa crise?

Ricardo Lewandowski — O estado de São Paulo é um verdadeiro país dentro do país. O Judiciário paulista decide desde questões econômicas mais sofisticadas, como aquelas relativas a patentes, royalties, transferência de tecnologia, até as mais simples disputas de vizinhos. Então é natural que haja um congestionamento processual, diante da complexidade dos assuntos submetidos aos seus magistrados. Além disso, depois da Constituição de 88 — com o seu enorme rol de direitos e os novos instrumentos processuais colocados à disposição dos cidadãos — ocorreu uma explosão de litigiosidade: as portas do Judiciário se abriram para o homem comum. E não é apenas em São Paulo que isso ocorre. O Judiciário brasileiro, de um modo geral, não tem meios materiais e humanos para atender à crescente demanda dos jurisdicionados. E não podemos esquecer que a prestação jurisdicional é um serviço público como a saúde, a educação, o transporte, a habitação, as comunicações. Infelizmente no Brasil não há recursos suficientes para atender a todos. Seria estranho que apenas o Judiciário, nessa crise fiscal generalizada, fosse uma ilha de excelência isolada.

ConJur — Mas temos problemas também do ponto de vista estrutural?

Ricardo Lewandowski — Diria que temos problemas especialmente do ponto de vista processual para os quais é possível entrever algumas soluções, especialmente no tocante à racionalização do sistema recursal. Hoje a decisão do juiz de primeiro grau é muito pouco prestigiada. A solução de um litígio ocorre somente após muitos anos de iniciado, com o esgotamento de todos os recursos, que não raro aportam no STF, após transitarem pelo STJ e pelos tribunais estaduais ou regionais. Estou espantado com o enorme número de processos que julgamos aqui no Supremo. A maior parte deles está restrita aos interesses das partes litigantes, quando a grande vocação da Corte é a interpretação de temas constitucionais de repercussão nacional. Da decisão dos Juizados Especiais, por exemplo, cabe recurso para as Turmas Recursais e depois diretamente ao STF. Isto é uma distorção, sem dúvida nenhuma. Por isso, além de aumentar os meios materiais, humanos e tecnológicos para agilizar o Judiciário é preciso diminuir drasticamente o número de recursos, sobretudo para dar efetividade às decisões do juiz de primeira instância. A meu ver, duas decisões judiciais são suficientes para atender ao princípio do devido processo legal, que compreende o direito ao duplo grau de jurisdição. Uma terceira e uma quarta instância recursal como nós temos no Brasil inviabilizam qualquer possibilidade de uma prestação jurisdicional rápida.


ConJur — Dentro desse ponto de vista, o Supremo deveria se tornar uma Corte estritamente constitucional?

Ricardo Lewandowski — Idealmente seria isto, mas determinadas matérias são historicamente da competência do Supremo. Não me parece que a sociedade brasileira, no atual estágio de sua evolução institucional, esteja preparada para que se retire do STF as competências que lhe foram atribuídas ao longo da história. Claro que o papel central do Supremo é o de exercer a jurisdição constitucional. As decisões do STF são, por definição, paradigmáticas, devendo, depois de perpassar todo o sistema judiciário, repercutir na sociedade em geral. Por essa razão, o Supremo não pode abrir mão da competência de julgar determinados Habeas Corpus, Mandados de Segurança e outras ações que, conquanto digam respeito a interesses de particulares, muitas vezes são importantes do ponto de vista doutrinário e jurisprudencial.

ConJur — Qual sua posição a respeito da tese do ativismo judicial, apresentada como um antídoto contra as brechas e falhas da legislação?

Ricardo Lewandowski — No Brasil há o controle concentrado, mas também o controle difuso. Qualquer juiz que integra a estrutura do Poder Judiciário brasileiro é guardião da Constituição. Não cabe apenas ao ministro do Supremo fazer o controle de constitucionalidade. Além disso, a interpretação constitucional, hoje, é menos dogmática e menos formalista. A Constituição criou um instrumento muito importante, que é o Mandado de Injunção. Quando a Constituição outorga um direito que depende de regulamentação, ele pode se fazer cumprir pelo Mandado de Injunção. Segundo uma leitura mais direta da Constituição, seria cabível o Mandado de Injunção onde o juiz pudesse fazer valer esse direito reivindicado. Mas o STF, em uma primeira leitura, não deu a esse instituto todas as potencialidades que ele merece. A tendência é dar mais efetividade a esse instrumento importante.

Conjur — O Mandado de Injunção está em hibernação?

Ricardo Lewandowski — Está em transformação. É um instrumento muito importante que foi concebido para dar efetividade aos direitos fundamentais. A grande contribuição da Constituição de 88 foi colocar um rol especificado e bastante extenso de direitos e garantias fundamentais, como jamais se viu no país. É uma Constituição muito avançada para o seu tempo, inclusive com relação às Constituições que, naquele momento histórico, haviam sido promulgadas. É o caso da portuguesa, por exemplo.

Conjur — Como o senhor vê o processo de incorporação da Constituição de 88 na vida brasileira?

Ricardo Lewandowski — O Poder Judiciário detém hoje instrumentos muito importantes para tornar efetivos os direitos fundamentais que estão consignados na Carta Magna. Os direitos de primeira geração, conhecidos como direitos individuais — o direito à vida, à liberdade, à propriedade — são facilmente protegidos por meio das ações previstas na nova Constituição. Já os chamados direitos de segunda geração, que correspondem aos direitos econômicos, sociais e culturais, nem sempre podem ser reivindicados através da via jurisdicional. O direito à educação, à saúde, à habitação, à previdência social, por exemplo, são direitos que são implementados por meio de políticas públicas. A Constituição, nesse sentido, logrou um avanço muito significativo no que respeita ao aperfeiçoamento das instituições democráticas. Nós passamos de uma democracia meramente representativa para uma democracia participativa. Ou seja, a Constituição de 88 permite à cidadania participar diretamente do processo político, sem a intermediação de representantes, em determinadas situações. A iniciativa legislativa popular, contemplada no texto constitucional, é um instrumento importante para a materialização das reivindicações populares, embora ainda pouco utilizado.

ConJur — Faz sentido a Constituição ter já 50 emendas antes mesmo de completar 20 anos?

Ricardo Lewandowski — A Constituição brasileira foi editada no final do século XX, num momento de grandes transformações. O mundo se preparava para a queda do muro de Berlim; aproximava-se o fim da Guerra Fria; o fenômeno da globalização começava a se intensificando tremendamente. Os Estados nacionais tendem a conviver com a produção internacionalizada e os limites da soberania começam a ficar desfocados. Dentro desse contexto, evidentemente, nós tínhamos que ter uma Constituição mais minuciosa, para uma sociedade em transformação rápida, inserida dentro de um processo de globalização. A Constituição tem que acompanhar este mundo extremamente dinâmico em que vivemos. Cabe a nós, aqui no Supremo, verificar os limites das emendas constitucionais e dar a interpretação dessa dinâmica mutação constitucional.


ConJur — Como o senhor compara a doutrina do Supremo de hoje com a de dez anos atrás?

Ricardo Lewandowski — O Supremo teve que enfrentar a transição de um Estado de exceção para um Estado democrático. A jurisprudência do Supremo operou essa transição com bastante sucesso. Inicialmente, como não tinha paradigmas nos quais podia se inspirar, a produção do STF, do ponto de vista jurisprudencial, se baseou muito nos precedentes da Constituição de 1946. O Supremo teve o grande mérito de servir de ponte entre a Constituição de 1946 e a de 1988, interregno em que houve um verdadeiro eclipse institucional. A Corte teve o papel de consolidar uma nova hermenêutica constitucional gerando uma fertilíssima jurisprudência. Daqui por diante, creio que o Supremo vai viver uma nova fase, justamente a da concreção dos princípios fundamentais da Constituição.

ConJur — Quais são as influências da Constituição de 88 sobre o Supremo?

Ricardo Lewandowski — Num primeiro momento, o Supremo fez um grande esforço para dar efetividade aos direitos e garantias arrolados na nova Constituição, bem como para conferir operacionalidade aos novos instrumentos processuais por ela criados. Creio que agora talvez tenha chegado o momento de dar concreção aos valores sobre os quais se assenta o Estado brasileiro, arrolados nos artigos 1º e 3º da Carta Magna, com ênfase especial na cidadania e na dignidade da pessoa humana.

ConJur — As recentes mudanças na composição do Supremo devem acarretar alterações na produção da Corte?

Ricardo Lewandowski — É chegado o momento de o Supremo dar efetividade aos princípios constitucionais. Na medida em que já existe uma jurisprudência consolidada no sentido de verificar como esses instrumentos funcionam, é chegado o momento de fazê-los funcionar a serviço dos princípios fundamentais. Temos um plantel de novos juízes com origens sociais, acadêmicas e profissionais diferenciadas, que certamente darão uma inflexão nos julgamentos do Supremo.

ConJur — O presidente Lula pode nomear até sete ministros para o STF. Isso pode dar uma conotação partidária à Corte?

Ricardo Lewandowski — Os ministros indicados pelo presidente Lula não tinham maior proximidade pessoal ou política com ele. Estou convencido de que o modo de indicação e nomeação dos ministros do Supremo é o mais acertado. Num primeiro momento há a indicação pelo presidente, mas depois é preciso passar pelo crivo do Senado. Eu passei por uma sabatina bastante rigorosa. Me fizeram perguntas importantes sobre o que eu imaginava do meu papel no Supremo e da eventual participação política dos juízes. É um mecanismo que realmente estabelece um equilíbrio entre os poderes. O presidente não está livre para nomear qualquer pessoa. Ele deve nomear uma pessoa que preencha os requisitos constitucionais que serão aferidos pelo Senado.

Conjur — Quais foram os ministros que contribuíram fundamentalmente nessa fase de transição? Qual foi a contribuição do ministro Moreira Alves?

Ricardo Lewandowski — O julgamento coletivo tem a beleza de representar exatamente a síntese de pensamentos diversos de pessoas de origens e formações diversas. O julgamento coletivo é uma obra de todos, é a síntese do pensamento da Corte em um determinado momento histórico. O ministro Moreira Alves é um grande jurista, professor, doutrinador. O grande papel dele foi realmente dar uma densidade acadêmica e doutrinária para os debates do Supremo Tribunal Federal. Foi muito importante ao procurar dar aos aspectos práticos que estavam sendo discutidos uma dimensão teórica doutrinária.

ConJur — Quem são os ministros mais influentes da Corte?

Ricardo Lewandowski — Não acho que existam ministros mais ou menos influentes. Existem argumentos que convencem mais do que outros. Em determinados momentos alguns ministros têm argumentos mais consistentes, alguns recorrem muito aos precedentes. Nesse sentido o ministro Sepúlveda Pertence é uma das memórias vivas do Supremo. É alguém que se lembra dos precedentes e dos leading cases prestando um papel importante. Certamente se sair, como está anunciando, Pertence vai fazer muita falta. Os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio são grandes juízes. Trazem uma grande experiência junto com a memória histórica do Tribunal. Nesse aspecto levam uma certa vantagem em relação aos demais.

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