Lealdade processual

Inovação na tréplica no júri é estratégia desonesta

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19 de abril de 2006, 16h17

No procedimento do júri, mais precisamente na tréplica, pode a defesa trazer ao debate tese jurídica até então inédita? Vamos supor que a linha defensiva venha se desenvolvendo no sentido da negativa de autoria. Poderia a defesa, já na tréplica, inovar a fim de sustentar a legítima defesa?

A doutrina mais antiga não cuidou da matéria e a mais moderna mostra-se dividida. Também na jurisprudência a matéria não é tranqüila. Pela impossibilidade de se inovar, na tréplica, a tese defensiva, confiram-se: RT 602/393, 485/299. Em sentido contrário, admitindo a inovação: RT 696/331, 661/269, 630/303.

Embora reconhecendo o debate que se desenvolve em torno da questão, entendo ser mesmo incabível deferir-se à defesa a possibilidade de, na tréplica, invocar tese nova, até então não ventilada nos debates.

Os argumentos em sentido contrário ao meu entendimento são:

a) o princípio do contraditório, de índole constitucional, garante a possibilidade da parte contrária se manifestar a respeito de alguma prova nova ou fato novo surgido no transcurso do processo, mas não obriga a oitiva do ex adverso se a novidade se referir a teses jurídicas. Tanto, argumentam os que admitem a inovação, que no procedimento comum, com o julgamento afeto a um juiz togado, se surgir nova tese invocada pela defesa em suas alegações finais, cumpre ao magistrado proferir a sentença e não determinar o pronunciamento do órgão acusatório;

b) vigora no procedimento do júri o princípio da plenitude da defesa, de maior abrangência do que a mera ampla defesa. Por conta disso, nenhum obstáculo deve ser tolerado capaz de afrontar esse princípio, que autoriza a sustentação de qualquer tese, a qualquer momento, desde que em favor do réu. Chegou-se a afirmar que “o Ministério Público, sim, tem que abrir o jogo. O réu pode surpreender o Ministério Público” (STJ, RE 5.329-GO, 6a. T., voto do min. Vicente Cernicchiaro, j. em 31.8.1992). Porém, é salientado que, o juiz percebendo que a tese nova, por ilógica, é capaz de prejudicar o réu, deve dá-lo por indefeso, dissolvendo o conselho de sentença;

c) a possibilidade de apartes concedidos ao órgão acusatório restabelece o contraditório;

d) cabe ao promotor de Justiça sustentar o libelo e não rebater os argumentos da defesa, sendo que, por isso, qualquer intervenção na tréplica formulada pela acusação seria inócua;

e) a acusação jamais poderá alegar ter sido tomada de surpresa, pois cabe a ela prever os argumentos que serão utilizados pela defesa (RT 693/331).

Com a devida vênia, parece equivocada essa argumentação. É preciso, inicialmente, averiguar o alcance do princípio constitucional do contraditório. Segundo ensina a doutrina, o contraditório se constitui na “ciência bilateral dos atos e termos processuais e a possibilidade de contrariá-los”, na exata lição de Joaquim Canuto Mendes de Almeida (Princípios fundamentais do processo penal, p. 80). Vê-se, portanto, que a preocupação desse princípio é de garantir a igualdade entre as partes. A mesma arma que se concede a uma parte deve também ser concedida a outra, de modo a garantir a absoluta igualdade entre ambas.

Com efeito, como ensina Vicente Greco Filho, no contraditório “todos os atos do processo devem ser realizados de modo que a parte contrária possa deles participar ou, pelo menos, possa impugná-los em contramanifestação” (Manual de processo penal, p. 63). Daí discordamos de que a necessidade da audiência bilateral, tão cara aos romanos (audiatur et altera pars), se refira apenas a fatos ou provas novas e não a teses jurídicas novas.

Uma tese jurídica, até então inédita, surgida no plenário apenas na tréplica, não deixa de ser um fato novo e, assim, deveria permitir a manifestação da parte contrária. Máxime quando se sabe que, no júri, os jurados julgam, basicamente, questões de fato e não de direito. Daí a oportuna lição de Giovanni Leone, citado por Demercian e Maluly, para quem “o princípio do contraditório consiste no dever imposto ao juiz de ouvir todas as partes, assegurando-lhes que intervenham e exponham suas razões de convencimento” (Curso de processo penal, p. 46).

Repita-se: o princípio do contraditório determina não apenas a audiência da parte contrária sobre fato ou prova, indo além para garantir a ampla manifestação a respeito de qualquer ponto do debate, quer se trate de questão fática ou jurídica. Aresto do STJ em que foi relator o ministro Sálvio de Figueiredo, coloca bem a matéria: “o principio do contraditório, com assento constitucional, vincula-se diretamente ao princípio maior da igualdade substancial, sendo certo que essa igualdade, tão essencial ao processo dialético, não ocorre quando uma das partes se vê cerceada em seu direito de produzir prova ou debater a que se produziu” (Informativo do STJ 1/378). Se não há possibilidade dessa manifestação, sob pena de tornar-se infindável o debate, então que não se admita sua utilização, evitando, assim, tomar de surpresa a acusação.


A comparação que se pretende estabelecer entre o procedimento comum no qual o juiz não deve abrir vista à acusação para se manifestar sobre tese jurídica nova suscitada pela defesa e o procedimento do júri é absolutamente equivocada. Na prática, quase sempre os juizes, preocupados com a igualdade processual, facultam sim a acusação a possibilidade de se manifestar sobre questão jurídica nova trazida pela defesa em suas alegações finais. Além disso, em virtude de que uma decisão da lavra de um juiz togado revela contornos completamente diversos daquela proferida pelo conselho de sentença.

Ora, os jurados, leigos que são nas coisas do Direito, decerto se impressionarão muito mais com uma tese jurídica nova trazida pela defesa, mormente quando apresentada por último e sem a possibilidade de contestação pela acusação. Já ao juiz togado o ineditismo não acarretará qualquer alteração em sua convicção. É, portanto, incabível a analogia que se pretende estabelecer entre as duas situações, posto que fincadas em pressupostos distintos.

Também não aproveita o segundo dos argumentos elencados em favor da possibilidade de inovação, que se funda no princípio da plenitude de defesa, de maior abrangência se comparado à ampla defesa. Vale atentar, de início, que os constitucionalistas, em sua maioria, não identificam qualquer distinção entre os princípios da plenitude de defesa, previsto para o procedimento do júri e o da ampla defesa, exigido para os demais procedimentos judiciais.

Assim, Cretella Júnior ensina que “a plenitude de defesa do réu, ou acusado, diante do conselho de sentença e do juiz que preside ao julgamento, é princípio que, fixado no início do artigo 5º, XXXVIII, ‘a’, desta Constituição de 5 de outubro de 1988, mais adiante se repete, em inciso do mesmo artigo 5º sob nº LIV (‘ninguém será privado da liberdade sem o devido processo legal’) e sob número LV (‘aos acusados, em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa’)” (Comentários à constituição de 1988, vol. I, p. 469).

O preclaro Alexandre de Moraes, de sua parte, ensina que “a plenitude de defesa encontra-se dentro do princípio maior da ampla defesa, previsto no artigo 5º, LV, da Constituição Federal. Além disso, conforme salienta Pontes de Miranda, na plenitude de defesa inclui-se o fato de serem os jurados tirados de todas as classes sociais e não apenas de uma ou de algumas” (Constituição do Brasil interpretada, p. 307).

Já o mestre Tourinho Filho, comentando esse princípio ao tratar do júri, relaciona várias de suas manifestações, como a impossibilidade de alguém ser processado sem defensor, da necessidade da pena ser aplicada apenas por um juiz, da possibilidade que se confere ao réu de interpor recursos, de ser ouvido após a acusação, de ser intimado das decisões, etc.. (Processo penal, vol. 2, p. 21).

Ora, todos esses exemplos de exercício da plenitude de defesa se aplicam, igualmente, ao princípio da ampla defesa. Aliás, não se entende por qual razão o constituinte teria optado por uma defesa plena para o júri e, para os demais procedimentos, se contentaria apenas com uma defesa ampla, ferindo o princípio da isonomia em nítido prejuízo para o réu que não cometeu um crime doloso contra a vida.

Mas admitamos que o constituinte não pretendeu apenas reforçar a idéia de ampla defesa quando cogitou da plenitude da defesa. Que tenha, efetivamente, se preocupado em garantir uma defesa absoluta, sem qualquer restrição, muito mais abrangente de que a mera ampla defesa, que guardou para os demais procedimentos. Mesmo que tenha sido essa a ratio legis, será válida a inovação na tréplica? Continuo entendendo que não.

De sorte que estabelecer-se a plenitude de defesa não significa dizer que a intenção do constituinte tenha sido de livrar o réu de todo e qualquer regramento processual. A plenitude de defesa não deve jamais importar no estabelecimento de um verdadeiro vale-tudo, desprovido de qualquer disciplina e em franca violação às normas processuais. A se privilegiar tal entendimento, se deveria permitir, por exemplo, que a defesa ocupasse a tribuna por quatro ou cinco horas, já que qualquer limitação contida no artigo 474 feriria o principio da plenitude da defesa.

Sob essa ótica, ainda, não obstante o teor do artigo 475, jamais poderia se impedir a defesa de apresentar documento novo em plenário, mesmo que tomando a acusação de surpresa. Também não seria plena a defesa se o juiz indeferisse o requerimento defensivo que pretendesse ouvir dez testemunhas em plenário, apesar do disposto no parágrafo único do artigo 421. Ora, já o STF já decidiu que “os princípios constitucionais que garantem o livre acesso ao Poder Judiciário, o contraditório e a ampla defesa, não são absolutos e hão de ser exercidos, pelos jurisdicionados, por meio das normas processuais que regem a matéria, não se constituindo negativa de prestação jurisdicional e cerceamento de defesa a inadmissão de recursos quando não observados os procedimentos estatuídos ns normas instrumentais” (STF – Pleno – Ag. Rg. Nº 152.676/PR – Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ, Seção I, j. em 3.11.1995).


Vê-se, portanto, que o mandamento constitucional que trata da plenitude de defesa não deve ser interpretado a ponto de isentar a defesa de submissão às regras do processo, sob pena de se estabelecer a balbúrdia, obstando, inclusive, o esgotamento da prestação jurisdicional.

Tampouco de isentar o defensor de um outro princípio que é típico do processo, o que prega a lealdade processual. Com efeito, na lição de Cintra, Grinover e Dinamarco, “sendo o processo, por sua índole, eminente dialético, é reprovável que as partes se sirvam dele faltando ao dever de verdade, agindo com deslealdade e empregando artifícios fraudulentos. Já vimos que o processo é um instrumento posto à disposição das partes não somente para a solução de suas lides, como também para a atuação do direito. Diante desta sua finalidade, deve ele revestir-se de uma dignidade que corresponda a seus fins. O princípio que impõe esses deveres de moralidade e probidade a todos aqueles que participam do processo denomina-se princípio da lealdade processual” (Teoria geral do processo, pp. 38-9).

Indaga-se, então, agora com uma visão prática, tirada do cotidiano do júri: qual a tese que, até então ignorada pela defesa, seria capaz de surgir apenas na tréplica? Que poder sobrenatural é esse que, assolando abruptamente o defensor, o inspiraria a ponto de cogitar de uma versão até então inédita? Ora, a experiência revela que a inovação na tréplica implica, isso sim, em estratégia desonesta cujo objetivo é de ludibriar a acusação que, a essa altura, já não mais encontrará tempo hábil para refutá-la. Para se valer da mesma figura de linguagem utilizada no julgamento do STJ, cuja ementa foi acima transcrita, trata-se de carta que a defesa, astuciosamente, tira do bolso do colete, movida por intensa má-fé, capaz de quebrar a regra do jogo.

Curiosa, outrossim, a solução preconizada pelos que sustentam a possibilidade de inovação quando a tese surgida à última hora for prejudicial ao réu, por ser, v.g., ilógica. Suponha-se que a legítima defesa tenha sido sustentada durante o processo e, na tréplica, venha o advogado com a negativa de autoria. Alegam que cumpre ao juiz, nesse caso, impedir tal espécie de argumentação, negando sua inclusão no questionário e, na insistência, dar o réu por indefeso, na forma do artigo 497, V. Parece contraditório tal posicionamento. Ou bem vigora a plenitude de defesa e, portanto, deve ser objeto da votação a tese inédita ou, como pensamos, essa possibilidade não deve ser cogitada e, assim, sua apreciação pelos jurados impedida. Imaginar, entretanto, que a inovação deve antes passar pelo crivo do juiz implica, inclusive, em afronta à soberania do júri, impedido de julgar livremente.

Em nada enfraquece nosso posicionamento aventar-se com a possibilidade de apartes, suficientes para que a acusação contestasse a tese inédita. Primeiro, porque a possibilidade de apartes não é aceita por uma corrente doutrinária. Outra, os admitem, mas apenas quando concedidos pelo detentor da palavra. Ora, bastaria que o orador se negasse à concessão de apartes para que a possibilidade de refutação restasse completamente prejudicada. Segundo, em virtude de que, para aqueles que admitem os apartes é unânime a opinião que eles devam ser curtos, precisos, limitando-se quase que a uma única frase. De que forma poderia a acusação, tomada de surpresa pela nova versão, respondê-la a altura, valendo, quando muito, de uma ou duas intervenções?

São também equivocados os dois últimos argumentos favoráveis à inovação, quando se alega, primeiramente, que à acusação cumpre sustentar o libelo e não contrariar o discurso defensivo. Afinal, é típico do júri e constitui-se mesmo uma de suas características marcantes a possibilidade de confronto entre as teses, da argumentação e contra-argumentação, no mais pleno exercício da dialética processual. Imaginar-se que o acusador deve, única e exclusivamente, preocupar-se com o libelo e ignorar todo o discurso defensivo revela, no mínimo, desconhecimento da instituição.

O segundo argumento, preconizado em um julgado (RT 693/331), pelo qual deve o promotor de Justiça prever os argumentos que serão utilizados pela defesa, somente pode ser interpretado seriamente quando se impede, exatamente, a possibilidade de apresentação da tese inédita. Claro: se a defesa mantiver uma linha de coerência, construída desde a fase do sumário de culpa, saberá a acusação, de antemão, qual a tese defensiva. Ao contrário, se surgir com nova tese, apenas na tréplica, se retira da acusação a possibilidade de adivinhação sugerida no aresto.

Em síntese, na lição de José Frederico Marques, “a réplica é um complemento da acusação, assim como a tréplica é um complemento da defesa, e uma decorrência da regra de que o acusado sempre fala em último lugar” (O júri no direito brasileiro, p. 204). Presta-se a tréplica, portanto, como o último momento processual conferido à defesa a fim de que reforce sua argumentação, tornando a contestar a oração do acusador, realçando algum ponto obscuro, valendo-se de alguma frase de efeito ou mesmo utilizando-se de algum dado ainda não explorado, mas constante dos autos. Jamais se admite, porém, a utilização da tréplica como verdadeira armadilha tramada pela defesa que teve à sua disposição todo o processo para invocar as mais variadas teses jurídicas e, ardilosamente, deixou somente para o último momento a apresentação da tese inédita.

É da essência do júri — repita-se — o confronto, conforme salienta Roberto Lyra, um de seus mais ardorosos defensores, para quem “todas teses têm sua antítese, toda crítica tem sua réplica, todo argumento tem seu contra-argumento” (introdução à obra de Ruy Barbosa, O júri sob todos os aspectos, p. 17). Com essa conduta desleal, a defesa priva a parte contrária do contraditório, cerceando seu direito de acusação, em atitude que deve ser coibida pelo magistrado, a quem resta, como única alternativa, deixar de incluir no questionário quesito específico versando sobre a novidade trazida pela defesa.

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