Ciência Jurídica

Miguel Reale: variações sobre a estrutura do Direito

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16 de abril de 2006, 10h49

Apesar de freqüentes referências à minha teoria tridimensional do Direito, parece-me que há pontos a serem esclarecidos.

Aceita-se, muitas vezes, o tridimensionalismo jurídico sem clara importância de seu entendimento da Ciência Jurídica na sua especificidade.

O assunto é muito amplo, se o apreciarmos sob os pontos de vista histórico, o único que nos permite compreender porque insisto em falar em “teoria tridimensional específica e dialética”. Vamos, pois, nos limitar a algumas idéias gerais, capazes de explicar o que há de próprio em meu pensamento.

Em primeiro lugar, observo que há uma teoria tridimensional jurídica genérica e outras específica, só cabendo à segunda a qualificação de teoria, por não se limitar ao exame de problemas metodológicos.

A afirmação de que o Direito é tridimensional surgiu, primeiro, como verificação do que, ao se expor os princípios gerais do Direito, seguia-se sempre uma divisão didática, no sentido de estudo da matéria dividindo-a segundo os três pontos de vista do fato, do conceito e do valor. Enquanto predominou o positivismo jurídico, predominou o estudo do Direito como fato social, tendo sentido complementar ou secundário a análise de seus aspectos lógico e valorativo.

Já Del Vecchio, kantista que era, dedicava a primeira e mais importante parte de suas Lições de Filosofia do Direito ao problema gnoseológico do conceito do Direito, correlato ao de Justiça, deixando uma terceira parte como à apêndice dedicada à análise dos aspectos sociológicos.

Seu mestre, Icilio Vanni, positivista crítico, seguira critério diverso, tratando amplamente do Direito como fato social, para, ao depois, estudar os problemas lógico e axiológico.

Ora, foi fácil à doutrina jurídica tirar a conclusão de que, se a exposição da matéria era trina, era sinal de que o Direito é, em sua essência, tridimensional.

Foi esse modo de pensar que nos levou à compreensão trina do Direito, a começar com a Escola neo-kantiana de Baden, com Gustavo Radbruch à frente, concebendo o Direito como fato cultural, estudado segundo três formas: a empirista ou factual; a gnoseológico do conceito e, por fim, a de seu valor ideal.

O que caracteriza, com efeito, a teoria de Radbruch é essa apuração trina do assunto, dando maior relevo ao valorativo ou ao axiológico.

Dentro dessa Escola, já era diferente a posição de Emil Lask, para quem, sendo o Direito um conjunto de significados, só era possível falar-se em bidimensionalidade do Direito, tal como admiravelmente explicou esse assunto Tércio Sampaio Ferraz Filho, em sua tese de doutoramento defendida na Alemanha, independentemente da tese escrita no Brasil para conquistar o título de livre docente na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.

Ora, foi a tricotomia traçada por Radbruch a base da teoria tridimensional genérica, seguida por vários autores, como Carlos Cossio, Garcia Maynez e Recasens Siches. Segundo essa diretriz, o Direito pode, em suma, ser estudado seguindo três pontos de vista distintos, o fato, o valor e a norma. A bem, ver, o Direito não era considerado sempre e unicamente tridimensional, mas dava lugar a três vertentes distintas de pesquisa, a saber, a Sociologia Jurídica, que estudaria o Direito como fato social; a axiologia ou o Direito Natural, isto é, o direito como valor ideal, e a Ciência do Direito como estudo normativo da experiência jurídica.

Para explicação elementar dessa concepção, poder-se-ia dizer que o Direito constitui um bolo dividido em três sabores ou finalidades complementares, a factual, a axiológica e a normativa.

Pois bem, foi contra essa generalidade que me insurgi sustentando que o Direito é sempre tridimensional, quer o estudo seja sociológico, filosófico ou científico positivo.

A diferença entre eles, disse eu, é de perspectivas na análise, não da matéria a ser estudada, que, para todos só pode e deve ser tridimensional.

Assim sendo, se eu, como sociólogo, estudar o Direito como fato social, nem por isso poderei olvidar os outros dois sentidos essenciais: o que lhe dá o valor a ser realizado, e mais o da regulamentação normativa.

Por outro lado, o filósofo, ao indagar da essência do Direito, vê-lo-á também tridimensionalmente, ou seja, como valor que, incidindo sobre relações factuais, se refrange em um conjunto de regras ou normas.

Para aplicar o exemplo elementar que lhes dei supra, diria que o Direito é um bolo com sabor necessariamente trino, sendo sempre factual, axiológico e normativo, e não um bolo dividido em fatias, cada uma delas com propriedades próprias.

Cumpre ponderar que os elementos que compõem o Direito se relacionam entre si através de uma dialética de complementaridade, exigindo uma direção diversa da pesquisa, para captar o sentido dominante de cada momento da juridicidade.

O Direito é, pois, sempre tridimensional, qualquer que seja seu objeto de indagação, o que importa na necessidade de um tridimencionalismo ao mesmo tempo específico e dinâmico – conforme concordaram comigo, a final Recasens Siches e tantos outros, tal como se acha redigido na 5a edição de Teoria Tridimensional do Direito, Editora Saraiva, de 1994, com diversas reimpressões.

Cumpre, por fim, observar que a teoria tridimensional específica se tornou ainda mais lúcida quando demonstrei que o valor não é um objeto ou ente ideal, como ainda sustentaram Max Scheler e Nicolai Hartmann, mas sim uma expressão do dever-ser. Com essa alteração, consoante foi bem observado por Antonio Paim, a Axiologia ganhou autonomia, deixando de ser uma das partes da Metafísica .

Artigo escrito em 31 de dezembro de 2005 e publicado no site www.miguelreale.com.br

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