Reserva legal

Medidas provisórias não podem versar sobre o Direito Penal

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10 de abril de 2006, 16h04

É incabível legislar penalmente por medidas provisórias (artigo 62, parágrafo 1º, letra b, da Constituição Federal), e assim, todas as MPs editadas não têm qualquer eficácia legislativa, sendo, perante ao Direito Penal, totalmente desconsideradas.1 Essa impossibilidade legislativa não é recente e nem mesmo genuína do Brasil.

Modernas democracias européias já adotavam, ex ante, a impossibilidade de lei não estrita ser escoramento para edição de normas penais.

Assim é que Jescheck, na Alemanha, afirma que “em todo caso, como base de uma pena privativa de liberdade, somente cabe se considerar, de acordo com o artigo 103, II, GG (Const. Alemã), uma lei formal”.2 Do mesmo modo, Maurach e Zipf afirmaram ao alinhavarem comentários acerca do princípio fundamental da legalidade.3

Enrique Bacigalupo faz o seguinte comentário sobre a questão junto ao Direito espanhol: “Vinculada à questão da lei como única fonte do Direito Penal se encontra o problema da hierarquia normativa que se requer para as leis penais na Constituição espanhola. Com a STC (Sentença do Tribunal Constitucional)140/86, ficou decidido que leis penais que impunham penas privativas de liberdade devem possuir o caráter de leis orgânicas 4 (artigo 81.1, Constituição espanhola), pois esta matéria constitui um desenvolvimento de direitos fundamentais, concretamente do direito à liberdade (art. 17.1, CE)”.5

E não desafina desse solfejo Mir Puig: “Sem embargo, pode se entender que o artigo 81 da Constituição vem assegurar o nível de lei orgânica — e não somente de lei formal — para o estabelecimento de, pelo menos, a maioria das penas. O artigo 81 não se refere, expressamente, ao Direito Penal, mas alcança a este sua declaração de que ‘são leis orgânicas as relativas ao desenvolvimento dos direitos fundamentais e das liberdades públicas’. Segundo o artigo 81, II, a aprovação, modificação ou derrogação das leis orgânicas exigirá maioria absoluta do Congresso, em votação final sobre o conjunto do projeto”.6

No Brasil, ainda na vigência do artigo 62 da Constituição Federal, sem a roupagem da Emenda 32, vozes aclamaram a impossibilidade de medida provisória legislar sobre matéria penal.

Exemplo disso foi Silva Franco ao escrever que “a circunstância do texto constitucional omitir toda e qualquer referência sobre as matérias atingíveis pela medida provisória não quer dizer que possa ela apresentar-se como instrumento adequado à abordagem da disciplina penal. Se a medida provisória, não convertida em lei, perde sua eficácia desde sua edição, é evidente que, no momento de sua publicação, estava subordinada a uma condição temporal: a da sua aprovação no prazo de 30 dias, pelo Congresso Nacional. Rejeitada ou não tendo havido deliberação a respeito, no prazo já mencionado, a condição não se realiza e a medida provisória é algo inexistente no mundo jurídico.Como tal conceituação, seria possível harmonizá-la com os princípios que regem o Direito Penal? Seria cabível um tipo penal tão efêmero, um tipo que poderia ser natimorto no seu ato criador? Tal como o decreto-lei e, por razões ainda mais ponderáveis, a medida provisória não é lei e, por isso, não poderá ter por objeto a matéria penal”.7

Outra não foi a irresignação, no ano de 1990, de Luiz Flávio Gomes quanto à caudalosa edição de medidas provisórias com matiz penal. Assim se expressou este jurista: “A medida provisória surgiu na Constituição brasileira como sucedâneo do decreto-lei. Pode-se dizer que é o antigo decreto-lei com roupagem um pouco diferente. Competente para emiti-la é o presidente da República, em caso de relevância e urgência (CF, art. 62). A moderna doutrina européia tem procurado demonstrar a total incompatibilidade do decreto-lei para a criação de crimes e penas. Quanto à doutrina italiana, vale lembrar a opinião de Fiandaca e Musco: ‘As garantias inerentes ao princípio da reserva de lei se eliminam ou se atenuam no caso de expedição de normas penais mediante decreto-lei: não só o direito de controle das minorias é desconsiderado, mas as mesmas razões de necessidade e urgência que justificam o recurso ao decreto-lei contrariam aquelas exigências de ponderação que não podem ser eliminadas em sede de criminalização das condutas humanas’. Para a criação de crimes e penas ou medidas de segurança ou para restrição de qualquer dos direitos fundamentais, nunca estará presente o requisito urgência assinalado no artigo 62 da Constituição. Não que não haja, às vezes, urgência na criminalização de uma determinada conduta humana. O fundamental é que toda norma com caráter penal tem que seguir rigorosamente o procedimento legislativo previsto na Constituição para as leis ordinárias (CF, arts. 61 e ss), isto é, projeto tem que ser apresentado, discutido, votado, aprovado, promulgado, sancionado e publicado, ensejando-se a possibilidade de ampla discussão, inclusive pelas minorias. Para restrição de direitos fundamentais, estabelecidos democraticamente pelo legislador constituinte, só esta via é possível. Como se sabe, historicamente, esses direitos foram reconhecidos e passaram a integrar as cartas magnas de todos os países civilizados, para evitar o abuso do Estado absoluto, de todo-poderoso chefe da nação. Devemos falar em monopólio da lei, mas não qualquer lei, pois só é válida a lei formal do Legislativo”. 8

E novamente se alude a Manoel G. Ferreira Filho quanto à condição de constitucionalidade legal. “Não faz dúvida que a lei está sujeita à condição de constitucionalidade. Só é válida se se coaduna formal e materialmente com o preceituado pela Constituição. Assim, a validade da lei depende, por um lado, de um condicionamento formal. Este resulta das normas que regem o processo de sua elaboração (competência, prazos, etc.). Mas igualmente de um condicionamento material. De fato, o conteúdo da lei tem de estar sintonizado com as regras materiais que edite a Constituição. Isto quer dizer que, havendo a Constituição, preordenado o conteúdo da lei, esta não pode contradizê-lo sob pena de invalidade. Este último ponto concerne aos direitos fundamentais. Com efeito, para preservá-los é que mais freqüentemente a Constituição pré-orienta a lei. Ademais, quanto a eles são estipulados garantias específicas, cuja violação importa inconstitucionalidade.” 9

Como diz Francisco A. Toledo, “ora, a medida provisória, por não ser lei, antes de sua aprovação pelo Congresso, não pode instituir crime ou pena criminal (inciso XXXIX). Se o faz, choca-se com o princípio da reserva legal, apresentando vício de origem que não se convalesce pela sua eventual aprovação posterior, já que pode provocar situações e males irreparáveis”. 10

À sirga, ainda sobre a égide de decreto-lei, o HC 5.5191 (AL, relator(a): Min.MOREIRA ALVES Julgamento: 05/10/1977 Órgão Julgador: TRIBUNAL PLENO Publicação: DJ 18-11-1977 PG- RTJ VOL-00086-02 PP-00408), do qual se reproduz reduzido trecho: “Por outro lado, e ainda partindo da premissa que partiu o impetrante, não se pode afastar o vício de incompetência para legislar sobre Direito Penal por meio de decreto-lei, sob o fundamento de que o diploma impugnado foi aprovado pelo Congresso Nacional. A aprovação do Congresso Nacional não tem o condão de mudar a natureza do decreto-lei, transformando o em lei, e permitindo-lhe, portanto, extravasar do âmbito estreito em que é admitido. Portanto, se correta estivesse para mim a premissa assentada pelo impetrante — artigo 2º, caput, do Decreto-Lei 326/67, que criou modalidade nova de apropriação indébita — não teria dúvida em considerá-lo inconstitucional”.

E hoje, com a redação atual do artigo 62, atuais são os textos adrede mencionados, pelo que, sem temor algum, medida provisória para lei penal sancionadora não é, senão, um indiferente legal.11

E assim se pode concluir com José Afonso da Silva: “As normas da ordem jurídica, consoante temos visto, fundamentam sua validade na Constituição (no Brasil, Constituição Federal), sob dois aspectos:

a) formalmente, enquanto devem ser formadas por autoridades criadas de acordo com ela, dentro da esfera de competência conforme o procedimento por ela estabelecido;

b) formalmente, enquanto o conteúdo de tais normas devem ajustar-se aos preceitos da Constituição. Nisso se manifesta o princípio da supremacia das normas constitucionais na ordem jurídica nacional — de todas as normas constitucionais, devemos frisar bem — e, isso é o primeiro sinal de sua eficácia, quer em relação às normas que lhe precedem, quer quanto às que se lhes seguem”. 12

Ou o Brasil é um Estado Democrático de Direito ou não passa de disfarçado e hipócrita Estado totalitário e absolutista!

Notas de rodapé

1 – TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. Malheiros: SP,2001. Também antes mesmo da EC 32/01, já assim dizia FERREIRA FILHO, M.G. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Saraiva: SP, 2000. De igual modo: PRADO, Luiz R. Comentários ao Código Penal. RT:SP, 2003. MIRABETE, J. F. Manual de Direito Penal. Atlas: SP, 2005.

2 – Tratado de Derecho Penal. P. General. Comares: Granada, 1993.

3 – Derecho Penal. P. General. Astrea: B. Aires, 1994.

4 – Correspondem de certo modo, às leis complementares brasileiras. Segundo o art. 81, da Const. Federal da Espanha diz: “1. São leis orgânicas as relativas ao desenvolvimento dos direitos fundamentais e as liberdades públicas, as que aprovem os Estatutos de Autonomia e o regime eleitoral geral e as demais previstas na Constituição. 2.A aprovação, modificação ou derrogação das leis orgânicas exigirá maioria absoluta do Congresso, em votação final sobre o conjunto do projeto.” Também as STC 25/84; 160/86.

5 – Principios de derecho penal. P.General. Akal/Iure: Madrid, 1998. De igual modo VALLEJO, Manuel J. Los Princípios Superiores del Derecho Penal. Dickinson:Madrid, 1999.

6 – Derecho Penal. P.General. Reppertor: Barcelona, 1996.

7 – A medida provisória e o princípio da legalidade. RT, ano 78, out.1989- 648/367/369.

8 – A lei formal como fonte única do direito penal (incriminador). RT, ano 79, jun.1990- 656/257/268.

9 – Direitos Humanos fundamentais. Saraiva:SP, 2000.

10 – Princípios Básicos de Direito Penal. Saraiva: SP, 1994.

11 – “O HC nº 888.849-3/3-SP, de 20/01/06, rel. Des. Vico Mañas, decidiu pela impossibilidade de medida provisória legislar penalmente, inclusive de modo mais favorável ao réu.”

12 – Aplicabilidade das normas constitucionais. Malheiros: SP, 2001.

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