Violação da intimidade

Entre Suzane e Francenildo, o fenômeno é o mesmo

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10 de abril de 2006, 20h32

Há alguns anos, comecei a escrever sobre as inovações no tratamento do fenômeno da violação da privacidade, estimuladas pela promulgação da Lei 9.296/96. Um artigo bem grande, publicado no livro Estudos de Direito e Processo Penal em homenagem a Manoel Pedro Pimentel, passou batido. Não havia quem ligasse muito para aquilo. Sabia-se que o projeto trazia a assinatura de Ada Grinover, seguramente dos melhores processualistas que o país tem, embora pragmaticamente voltada, à época, para a solução prática de problemas políticos vigentes.

Era tempo, na Itália, dos juízes Mãos Limpas. Assim, o ressoar da luta contra a máfia chegava ao Brasil em ondas impressionantes. Novos métodos de combate haviam sido adotados na Europa. Chegou-se aos “magistrados sem cara” e “testemunhas sem rosto”, o que dava na mesma.

Implantada a legislação nova no Brasil, entusiasmaram-se todos com as novidades no combate ao crime organizado. Sabia-se que a comunicação verbal era fonte infindável de descoberta de segredos, porque os seres humanos, em conversas privadas, dizem o que não diriam quando observados ou submetidos a vigilância qualquer.

É curioso o retrato de alguns diálogos domésticos. A patroa, enfurecida com a empregada que quebrou um vaso de cristal, grita “Eu mato você, desgraçada!”. Evidentemente, isso não significa nada, devendo-se à explosão de momento. Há também o desafeto que, à noite, em casa, depois do amplexo conjugal, diz baixinho à consorte: “Dia desses, quebro a cara daquele sujeito!”. Por último, um entrevistado, em manifestação não submetida à revisão, faz referência a um amigo querido pelo apelido usado na privacidade, correndo o risco de perder o velho afeto.

São bravatas, em grande maioria. Entretanto, quando colhidas à sorrelfa, podem produzir conseqüências muito sérias. Lembro-me de um soldado que, há 50 anos, enquanto prestando o serviço militar, foi posto de castigo, tendo de limpar os fuzis no paiol. A certa altura, enraivecido, xingou: “Tomara que essa …. pegue fogo!”. E pegou.

Indagar-se-á o que isso tem a ver com a legislação que, na Constituição, protege a intimidade, a dignidade do ser humano, as comunicações em geral e a privacidade dos negócios jurídicos postos sob a administração das instituições bancárias. Tem muito, sim.

A violação dos segredos na comunicação, influindo, inclusive, nos diálogos presumivelmente postos sob discrição plena, já se tornou quase uma rotina. Há filmes norte-americanos retratando conversas entre políticos elevados à alta hierarquia daquela nação. Cuida-se, evidentemente, de ficção, mas existem episódios, naqueles filmes, em que os colóquios são mantidos dentro de saunas, todo mundo nu, sabendo-se que o vapor danificaria os microfones e os corpos desnudos mostrariam a ausência de artifícios. Recorde-se, aliás, trecho em que espião do FBI havia colado o microfone no peito, sem depilação. Os mafiosos, descobrindo o artefato, iniciaram a tortura arrancando o esparadrapo.

Isso foi nos idos dos anos dourados. Hoje é diferente: capta-se conversa a quilômetros de distância, a um simples apontar de um pistolete munido de mínima antena parabólica. O satélite cuida de tudo.

Jovens magistrados, entusiasmados com as sutilezas do sistema, expediram centenas de ofícios às provedoras de telefonia, sobrecarregando os técnicos com as requisições múltiplas. Os critérios para as interceptações eram variadíssimos, indo desde o traficante da esquina até os grandes financistas envolvidos em infrações tributárias. Muita gente inocente pagou preço caro por isso. Muito segredo de alcova foi, em princípio, descartado na degravação, servindo, entretanto, à curiosidade ou volúpia dos intervenientes.

Valem os exemplos apenas para a ratificação de um velho ditado: “o uso do cachimbo faz a boca torta”. Assim, a multiplicação das hipóteses fez com que a luz vermelha se apagasse. A extravagância se transformou em manipulação diária. Disso, em relação causal mediata, resultou a sucção, na emergência, dos segredos da conta bancária do caseiro Francenildo. Uma ilegalidade a mais não faria diferença. Fez, embora não destoando de comportamentos anômalos praticados, inclusive, pelos órgãos encarregados de vistoriar as contas-correntes bancárias de milhões de brasileiros.

Procura-se saber, agora, a dimensão do pecado cometido em Brasília, parecendo, aos olhos do povo, uma falha mortal. Seria, se fosse a única. Mas, atrás dela, há um tenebroso costume que — este sim — precisa ser atacado com muita firmeza.

O curioso dessa história é a ligação existente entre o caseiro Francenildo e a conduta feia praticada pela Rede Globo de Televisão, no Fantástico. Devo dizer que excluí da vida, praticamente, as projeções televisivas. Obrigam-me, regra geral, a ver o que não quero. Alguém medisse, embora, que a rede de televisão mencionada fritou a jovem Suzane Richthofen, credulamente oferecida, ovelha desnutrida, à solércia com que a espionaram, nos intervalos da entrevista, como se fosse uma partícipe da série Big Brother. Ali, o microfone fica ligado 24 horas por dia.

A moça Suzane, artefato grudado no corpo, não soube entender que os próprios entrevistadores mantinham a gravação permanentemente atuante. Houve o desastre, demonstrando que a confiabilidade dos jornalistas era nenhuma, embora tivesse havido contato predeterminado entre todos, pois a vida daquela moça foi acompanhada durante mais de um dia.

Há filmagens dela na rua, em casa, com amigas e com advogados, perenizando-se as intimidades. No fim das contas, uma coelha posta sob as fauces das raposas. Em seqüência, a explosão do noticiário atingindo, segundo dizem, muitos e muitos milhares de espectadores, sem exceção dos prováveis jurados. Nesse diapasão, os acusadores se deliciarão com o filé sangrento posto à mesa.

Já se percebe o entrelaçamento entre Francenildo e Suzane. Colocados em extremidades aparentemente desconexas, os dois comportamentos têm ligação na geratriz desenvolvida. Tanto faz, no Planalto, um ministro abocanhar o segredo da conta-corrente de um brasileiro humilde, como a Globo, no programa domingueiro, retirar das algibeiras, violando de alguma forma um trato estabelecido, a borra do café, a sujeira posta sob o tapete, a ambivalência da entrevistada, o resto de tacho da tragédia posta sob os microfones sensíveis dos investigadores privados. No fim de tudo, conduta malcheirosa. Dir-se-á que a entrevistada também se punha ardilosamente. Se desculpas fossem articuladas,valeriam dentro da torpeza bilateral.

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