Alta programada

Quem foi o gênio que estimou tempo de cura para doenças?

Autor

  • Wagner Balera

    é professor titular na Faculdade de Direito da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo e livre-docente e doutor em Direito Previdenciário pela mesma universidade.

8 de abril de 2006, 7h00

Há pouco tempo quando alguém ficava doente, desde um simples resfriado até as gravíssimas modalidades de câncer, muito dificilmente os especialistas arriscariam definir a data na qual sobreviria a cura. Estimava-se, é claro, que de conformidade com o tratamento; especialmente com as reações do paciente, que sobreviesse a melhora progressiva e, afinal, a recuperação da saúde. Tudo, porém, a depender da análise do caso concreto.

A sabedoria popular afirma que a cura dos resfriados mais simples não passa de uma semana. Mas, todos conhecemos pessoas que permaneceram muito mais tempo com essa mesma sintomatologia.

Pois bem, a situação está completamente modificada. Possivelmente graças a avanços da medicina, que ainda não foram objeto de divulgação na literatura especializada, a perícia médica do INSS sabe desde o primeiro dia a data certa na qual o segurado recuperará plenamente a sua capacidade de trabalho. E, graças a esse saber, a perícia atesta, com larga antecedência, que a alta se dará naquele dia.

Estamos, portanto, diante daquele que pode ser considerado um dos maiores avanços do conhecimento médico dos últimos 20 séculos ao qual não está se dando o devido crédito.

Quem terá sido o gênio que bolou a estimativa precisa, para cada doença, dos dias que a mesma irá durar? Quem terá respaldado esse gênio, conferindo chancela oficial a tão precisa quanto cabalística iniciativa? E por que, afinal, o manual secreto no qual os alquimistas cunharam esses dados importantíssimos não pode ser objeto de consulta por parte da comunidade cientifica e tampouco por parte dos principais interessados nos seus efeitos: os doentes?

A situação que acabo de descrever não mereceria nenhuma credibilidade se não estivesse acontecendo todos os dias. A essa inusitada situação as autoridades superiores do INSS deram o adequado nome de alta programada.

Por incrível que pareça, a alta programada está prevista em uma pseudo-norma jurídica — a Orientação Interna Conjunta 1 Dirben/PFE, de 13 de setembro de 2005. Trata-se, de fato, de uma norma jurídica única no seu gênero, porque o qualificativo de “interna” significa que se trata de algo secreto, só acessível ao pessoal integrante dos quadros administrativos do INSS.

Faz recordar, de logo, os malfadados decretos secretos expedidos nos anos 60, aptos a aplicar punições de modo sumário, sem o devido processo legal. A analogia é pertinente porque, no nosso assunto, os segurados são sumariamente colocados em alta sem a necessária e imprescindível perícia.

Aliás, deram um nome auto-explicativo a esse sinistro plano de cura: data certa. Na data certa, o computador devidamente programado avisa que determinado segurado, até então doente, deve receber alta. A justificativa nada tem que ver com a doença. Trata-se, mais propriamente, de reduzir custos com a manutenção do beneficio do auxilio-doença.

Ademais, o segurado é orientado para retornar dentro de 30 dias. Nesse período, pode ocorrer sua demissão, mas o problema não é do INSS. O escopo admitido da alta programada é a redução do déficit, sob o fundamento de que cresceu o número de benefícios de auxilio-doença. Ninguém se preocupou com a investigação das causas de tão importante registro.

Será por que o trabalhador está comendo menos, tornando-se suscetível ao surgimento de novas enfermidades? Será por que está sendo obrigado a trabalhar mais e por mais tempo, em razão da redução dos postos de trabalho em certos setores da economia? Ora, mas nada disso é problema do INSS. Este só identifica como problema a ser resolvido o do déficit, o falso déficit.

O déficit será resolvido à custa da saúde do trabalhador. Os alquimistas elaboraram uma estranha (e também secreta) tabela de doenças cuja alta programada, independentemente da avaliação das condições subjetivas do paciente, se dará entre 60 e 180 dias. No entanto, os peritos médicos estão concedendo, como procedimento-padrão, as licenças por 60 dias, independentemente de qualquer reavaliação do estado de saúde do segurado. Este se vê obrigado a voltar para o seu posto de trabalho, ainda que não esteja apto.

Claro, se não concordar, pode pedir reconsideração, desde que se disponha a esperar de seis a oito meses para ser examinado pela perícia médica. E nesse meio tempo? O beneficio fica suspenso e o segurado pode ser dispensado pela empresa (o que acontece, especialmente quando a ausência notória de capacidade física, psíquica ou mental para o trabalho se faz notoriamente presente).

O procedimento da alta programada está atingindo, inclusive, pessoas que se encontram afastadas há diversos anos, que por meros entraves burocráticos não tiveram seu beneficio convertido na aposentadoria por invalidez. Sem nova perícia, segurados cuja doença se mantém inalterada há dois, três ou até cinco anos são surpreendidos com a alta programada — insisto, programada pelos computadores — e devem apresentar-se, doentes, ao empregador. Como o posto de trabalho não ficou vago, o doente já sabe qual será o seu destino. Mesmo aqueles que fazem jus à estabilidade provisória, porque foram vitimados por acidente do trabalho, ao cabo desse período são sumariamente demitidos.

A alta programada ofende, a um só tempo, os direitos humanos sociais dos segurados como a própria estrutura republicana do Estado brasileiro. Tudo é feito às escondidas, por intermédio de instruções secretas que o discurso oficial renega. A Constituição afirma: o Brasil é uma República! Todos sabem o que isso significa: res publica (coisa pública).

Algumas autoridades, aliás, ultimamente, afirmam e reafirmam que o seu comportamento é republicano, como se com tal atitude não estivessem apenas e tão somente cumprindo com seus deveres elementares. Mas, a atitude das autoridades do INSS não pode ser mais anti-republicana. Recusam-se até mesmo a discutir os vis procedimentos que aqui são descritos e denunciados.

Como já sabem que a data pré-programada da suspensão do seu beneficio os colocará fora da cobertura previdenciária, os segurados tem todo o direito de exigir que, antes dessa data, seja feita nova perícia. No entanto, a resposta oficial é que o “sistema” não aceita que se agende nenhuma perícia antes de passados cinco dias da alta.

“Sistema” é outro dos personagens que se apresentam como responsáveis desconhecidos e sinistros no ambiente previdenciário. Quando alguma decisão é inexplicável, o culpado é sempre o “sistema”. Talvez seja por essa razão que o antigo apelido do velho computador central da Dataprev, vale dizer, a estrutura física do “sistema”, seja “burrão”. Só um burrão pode inventar a alta programada, acreditando que a cura com data certa é algo possível e realizável.

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