Defesa de direitos

Funai e PF devem agir para garantir ordem em áreas indígenas

Autor

  • Roberto Lemos dos Santos Filho

    é juiz federal auxiliar da Corregedoria do TRF da 3ª Região titular da 5ª Vara Federal Criminal de Santos (SP) mestre e doutorando pela Universidade Católica de Santos pós-graduado em antropologia USC (Universidade do Sagrado Coração) de Bauru (SP).

5 de abril de 2006, 19h08

O triste episódio verificado recentemente, em Porto Gambira, no Mato Grosso do Sul, por ação atribuída a seis indígenas guarani-kaiowás, que culminou com a morte de dois policiais civis, ganhou relevo na imprensa nacional e equivocadas interpretações por autoridades constituídas, ocorrendo indevidos ataques ao tratamento dado ao caso por representantes da Funai e do Ministério Público Federal.

À luz da Constituição e do Estatuto do Índio, os representantes do Ministério Público Federal e da Funai na região do infeliz evento apenas estão cumprindo os deveres que lhes foram cometidos. A lamentável ocorrência deve ser apurada e solucionada em conformidade com as normas em vigor, se apresentando imperioso, sob pena de ilegalidade e até eventual configuração de abuso de poder, que a apuração seja feita pela Polícia Federal.

De acordo com informações veiculadas pela Funai, a área onde foi verificado o fato é considerada terra indígena, uma vez que a área foi atribuída ao guarani-kaiowá por ordem emanada pela Justiça Federal. A Lei 5.371/67, instituidora da Funai, em seu artigo 1º, inciso VII, estabelece o dever da Funai de exercitar o poder de polícia nas áreas indígenas, cabendo a essa fundação, pois, o impedimento da prática de ilícitos penais ou administrativos nessas áreas.

Por força do disposto no Decreto 73.332/71, definidor das competências da Polícia Federal, especificamente em seu artigo 1º, inciso IV, alíneas “f” e “i”, cabe à Polícia Federal a prevenção e repressão de crimes contra a vida, o patrimônio e a comunidade indígena e outras infrações praticadas em detrimento de bens, serviços e interesses da União. Vale consignar que o artigo 231 da Constituição impõe à União a obrigação de preservar as populações indígenas, aí compreendidas a cultura, as terras e a vida dos índios.

A análise conjunta das disposições citadas torna certo que à Funai cabe exercer o poder de polícia administrativa, evitando a ocorrência de ilícitos em terras indígenas, enquanto que à Polícia Federal compete a apuração dos eventos criminosos ocorridos nessas áreas. Ou seja, a Funai e a Polícia Federal têm o dever de atuar em conjunto para que a ordem jurídica nas áreas indígenas seja mantida, evitando que os índios sofram interferências por parte da sociedade envolvente.

Ao que tudo indica, as disposições legais citadas não foram observadas pelos policiais civis que adentraram na área indígena assegurada pela Justiça Federal, ainda que de forma provisória, aos índios guarani-kaiowá, visto não haver notícia de autorização da Funai para tanto.

A intervenção da Polícia Civil na área indígena somente poderia ocorrer com prévia autorização da Funai ou por força de convocação de auxílio pela Polícia Federal. O ingresso em área indígena levado a efeito sem autorização da Funai e independentemente de solicitação de auxílio da Polícia Federal indica ocorrência de violação à ordem jurídica.

A agressão ao ordenamento legal vigente teve início com o incorreto acesso de policiais civis em área indígena para apuração de crimes atribuídos a um índio, e agora, após o infeliz evento, não pode ser admitida qualquer outra violação à ordem jurídica. Não é possível ser tolerada a perpetuação de ilegalidades.

Para que isso não se verifique, é impositivo que a apuração e o julgamento do fato seja feito pela Justiça Federal, segmento do Poder Judiciário nacional que possui a competência para tanto, de acordo com o disposto no artigo 109, incisos I, III e IV, da Constituição.

A adoção de entendimento contrário, por certo, redundará em afronta ao regulado pelo artigo 4º da Convenção 169 da OIT, que determina a necessidade de adoção de medidas especiais para salvaguardar as pessoas, as instituições e as culturas dos povos indígenas.

A apuração, o processo e o julgamento da triste ocorrência têm de ser efetuados com a mínima interferência das autoridades locais e da sociedade não indígena envolvente, com a intervenção da Funai e do Ministério Público Federal, como preconizado pelo artigo 129, incisos II e V da Constituição, e pelo Decreto 5.371/1967 (artigo 1º, inciso I, alínea “a”).

Inquestionável, assim, a competência da Justiça Federal para o caso, sob risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil envolvendo direitos humanos, tanto no que toca a violação às vidas dos policiais civis quanto ao direito de liberdade e de processo e julgamento por tribunal competente com relação aos índios.

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