Ética e sigilo

Imprensa tem de apurar a verdade sem proteger criminosos

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28 de setembro de 2005, 21h08

Em 14 de julho de 2003, o colunista norte-americano Robert Novak publicou um artigo no qual ele, citando como fontes dois altos funcionários do governo, identificou Valerie Plame Wilson, mulher do ex-embaixador Joseph C. Wilson, como agente secreta da CIA (CIA operative). Ocorre, porém, que a divulgação da identidade secreta de funcionários da inteligência, de agentes e de informantes em geral é considerada crime em virtude de uma lei de 1982 denominada Intelligence Identities Protection Act.

O embaixador Wilson acusou altos funcionários do governo Bush de terem deliberadamente revelado a identidade secreta de sua mulher como vingança por sua acusação pública de que a Casa Branca havia exagerado a ameaça nuclear representada pelos iraquianos, distorcendo os fatos ao afirmar que o Iraque havia tentado comprar urânio enriquecido do país africano do Níger para fabricar uma bomba atômica.

Em 30 de setembro desse mesmo ano, a pedido da CIA, o Departamento de Justiça instaurou inquérito para investigar se funcionários do governo haviam vazado para a imprensa a identidade de um agente secreto. O promotor Patrick Fitzgerald foi designado para conduzir a investigação.

Fitzgerald convocou um júri federal e começou a intimar para depor jornalistas que haviam tido contato com funcionários do governo, como a repórter Judith Miller, do jornal The New York Times, e o correspondente Matthew Cooper, da revista Time. Ambos, porém, se recusaram a testemunhar para preservar o sigilo de suas fontes de informação.

Face à recusa em depor, o juiz federal Thomas F. Hogan, em 1 de outubro de 2004, condenou ambos a uma pena de 18 meses de prisão por desacato. Os jornalistas entraram com recurso junto a um tribunal de segunda instância mas foram derrotados. Em 15 de fevereiro de 2005, a corte de apelações negou-lhes o recurso, sentenciando que eles deveriam colaborar com a justiça porque talvez tivessem testemunhado um crime federal. Miller e Cooper apelaram novamente, desta vez à Suprema Corte dos Estados Unidos, e novamente perderam, pois, em 27 de junho, a mais alta instância judiciária norte-americana negou-se a apreciar seu caso sob a justificativa de que não se tratava de matéria constitucional. Em outras palavras, a Suprema Corte entendeu que o sigilo da fonte não é protegido pela Constituição norte-americana.

Em 29 de junho, o juiz Hogan deu-lhes uma semana de prazo para revelarem suas fontes, sob pena de prisão. Em 6 de julho, Cooper concordou em testemunhar, afirmando que, à última hora, recebeu um telefonema de sua fonte liberando-o do compromisso de confidencialidade. Nesse mesmo dia, Miller foi presa por ter mantido a recusa em depor.

A prisão de Judith Miller provocou um choque nos meios de comunicação nacionais e internacionais. No Brasil, não só os principais veículos impressos mas também entidades como a ABI – Associação Brasileira de Imprensa, a ABRAJI – Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo e o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo condenaram o encarceramento da repórter, considerando-o como um sério atentado à liberdade de imprensa e ao princípio do sigilo da fonte. Miller, por seu lado, foi considerada uma espécie de heroína e mártir da liberdade de imprensa.

Por estas terras, todavia, uma voz solitária ousou desafiar a unanimidade vigente. O jornalista Argemiro Ferreira proclamou: “Poupem as lágrimas apressadas pela decisão da Suprema Corte americana de não analisar o caso de repórteres do "New York Times" e da revista "Time" que se negam a identificar fontes”.

Segundo Ferreira, Miller e Cooper circulam pelos corredores do poder em Washington e são premiados com vazamentos. Mas recebem esse prêmio não por serem profissionais competentes ou honestos, por produzirem texto de qualidade, ou pela capacidade de análise. São escolhidos porque se prestam à manipulação. No caso, manipulação de funcionários do governo que desejavam vingar-se do embaixador Wilson.

O jornalista afirma existirem várias categorias de fontes anônimas. Uma dessas categorias é constituída de pessoas que praticam ou praticaram crimes e que, por esse motivo, não devem receber a proteção proporcionada pelo princípio do sigilo da fonte. Ferreira sustenta que bons jornalistas têm que repelir o privilégio do sigilo quando este é usado para servir ao poder. Ele defende a tese de que, se qualquer cidadão tem o dever de testemunhar ao saber de um crime, o mesmo vale para jornalistas, em especial para os privilegiados que têm acesso à cúpula do governo. Para Ferreira, o bom profissional deve apurar a verdade sem assumir o compromisso de proteger criminosos.(1)

De minha parte, tomo como ponto de partida o entendimento de que o direito de informar não é autônomo nem se destina a beneficiar a própria imprensa, mas constitui um acessório do direito principal, que é o direito que tem a sociedade de ser informada sobre os fatos. O direito de informar só existe em função do direito de ser informado, de obter a informação.(2)

Dizer que a sociedade tem o direito de ser informada significa dizer que os cidadãos têm a prerrogativa de abrir mão desse direito. Quer dizer, a sociedade pode decidir que não deseja receber determinados tipos de informação para melhor resguardar seus próprios interesses. Foi o que aconteceu no presente caso. A sociedade norte-americana decidiu, por meio de seus legítimos representantes, que a identidade dos agentes secretos deveria ser mantida em sigilo. E tão sério foi considerado esse sigilo que sua violação foi caracterizada como crime. Em tais circunstâncias, tem a imprensa o direito de contrapor-se à vontade do povo? Pode um jornalista norte-americano alegar interesse público para divulgar a identidade de um agente secreto se, neste caso, o interesse público, por expressa determinação legal, reside justamente no oposto, ou seja, na não veiculação da informação?

Em relação aos jornalistas que foram intimados a depor, não compreendo como a manutenção do sigilo da fonte pode servir ao interesse público, pois, no caso, o sigilo só serve para proteger a identidade de quem violou a lei. Ao proteger a identidade de um possível criminoso, esses jornalistas não estão se tornando cúmplices do crime? Não estão impedindo a aplicação da lei?

Em fevereiro de 2003, a revista Isto É publicou reportagem na qual o repórter Luiz Cláudio Cunha revelava que o senador Antônio Carlos Magalhães tinha sido o mandante de uma gigantesca operação de escuta telefônica executada ilegalmente pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia. Ocorre que o próprio senador tinha feito a confissão ao repórter, pedindo a este que guardasse sigilo.

Cunha foi criticado de forma generalizada por seus colegas de imprensa por ter tornado pública uma declaração feita em caráter confidencial, violando, assim, o compromisso de manter o sigilo de sua fonte. Em depoimento perante o Conselho de Ética do Senado, o repórter sustentou que a confidencialidade foi quebrada por uma decisão da direção da revista, depois que a Polícia Federal informou que a escuta tinha sido um crime praticado por um órgão estatal. Cunha afirmou que, a partir desse momento, o senador deixou de ser fonte para se tornar alvo de investigação policial como suspeito de uma ação criminosa.(3)

Comentando o assunto, a jornalista Dora Kramer opinou que, assim como é crime o uso jornalístico de material obtido de forma ilícita, também é ilícito fazer uso do sigilo da fonte para acobertar uma ilegalidade. “Uma coisa é o direito que resguarda o exercício profissional. Outra bem diferente é o dever de submissão à lei. Este dever implica a observância do discernimento na revelação de fatos oriundos de ações criminosas, sob pena de criarmos uma categoria de cúmplices profissionais.”(4)

Se os jornalistas norte-americanos Miller e Cooper fossem brasileiros, eles não teriam sofrido qualquer penalidade, pois a Constituição Federal e a Lei de Imprensa garantem o sigilo da fonte. No Brasil, os jornalistas não podem ser obrigados a revelar o nome de seus informantes ou a fonte de suas informações.(5)

Parece que, do ponto de vista legal, os profissionais de imprensa brasileiros estão perfeitamente amparados. Suponham-se, porém, as seguintes hipóteses. Um jornalista: (1) divulga a ocorrência de um crime mas omite o nome do criminoso, pois este lhe pediu sigilo; (2) publica o conteúdo de uma escuta telefônica feita com autorização judicial, conteúdo que lhe foi vazado por um agente público; (3) divulga informações de um processo protegido pelo segredo de justiça. Note-se que, embora a lei defina como crime a quebra do sigilo das comunicações telefônicas sem autorização judicial ou a violação do segredo de justiça, não se costuma processar criminalmente o jornalista por essas ocorrências em virtude do entendimento de que a responsabilidade por manter o sigilo cabe exclusivamente ao agente público; o jornalista não é, portanto, co-autor do delito. No campo da moral, porém, será ética a publicação da informação? Se o profissional pensasse, ainda que de forma equivocada, estar cumprindo um dever, poder-se-ia desculpá-lo. Ocorre que os órgãos de imprensa usam rotineiramente esses vazamentos de informação para produzir “furos” de reportagem que lhes rendem prestígio. Existe, assim, forte suspeita de que tais vazamentos não são publicados apenas e tão somente por dever, mas por interesse. Por outro lado, o auxílio dos meios de comunicação tem sido decisivo para que os agentes públicos cometam os crimes de quebra de sigilo de comunicações telefônicas e de violação de segredo de justiça. Esses fatos me levam a concluir que a publicação dessas informações é imoral.

NOTAS

(1) FERREIRA, Argemiro. “Porque dona Judith Miller não é vítima nem heroína”. Disponível em:

www.tribuna.inf.br/anteriores/2005/junho/29/coluna.asp?coluna=argemiro. Acesso em 16.08.05.

(2) SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros Editores,

2001. p. 250.

(3) CUNHA, Luiz Cláudio. “A hora de quebrar o off”, Jornal O Globo, 10.04.03. Disponível em:

http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/asp1604200391.htm.

(4) KRAMER, Dora. “Entre o dever e o direito”, Jornal O Estado de S. Paulo, 04.04.03. Disponível

em: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/asp0904200391.htm. Acesso em 28.07.05 .

(5) BARRETTO, Carlos Roberto. “Sigilo da fonte”, Jus Navigandi. Disponível em:

http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7167. Acesso em 16.08.05 .

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