Reflexões políticas

Lula repete vícios da velha política brasileira, diz Busato

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26 de setembro de 2005, 19h26

Segundo o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se afastou das promessas de mudanças e passou a praticar a velha política brasileira, reproduzindo os vícios de seus antecessores e frustrando as expectativas de 53 milhões de brasileiros que votaram nele.

“Lula uniu elite e povo numa mesma esperança, num mesmo sonho, de um Brasil melhor e mais justo. Mas, tal qual seus antecessores, sucumbiu aos vícios da velha política brasileira, vícios que nos têm impedido de realizar a vocação de fraternidade e grandeza antevista pelos fundadores da Pátria”, afirmou Busato em pronunciamento na abertura da XIX Conferência Nacional dos Advogados, em Florianópolis (SC).

Roberto Busato afirmou que o presidente Lula foi eleito com a missão de promover um Brasil sadio, ético e criativo, mas não correspondeu a essa expectativa. O presidente da OAB nacional defendeu para o Brasil uma Operação Mãos Limpas, que devolva as instituições da República brasileira a credibilidade.

No pronunciamento, o presidente da OAB criticou também o fato de que o presidente da República até hoje não tenha proferido, em relação à crise, uma palavra categórica que convença a sociedade de sua inocência em relação ao chamado “Mensalão” – pagamento de mesada a parlamentares da base aliada em troca de apoio a projetos governamentais no Congresso.

“O presidente diz-se traído, mas não revela por quem ou por quê. Traição ao presidente da República não é questão de foro privado – é questão institucional; quem trai o supremo mandatário do país trai o país”, afirmou.

Reforma e crise política

Também participaram da abertura da conferência em Santa Catarina, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos e o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Nelson Jobim.

Márcio Thomaz Bastos defendeu uma reforma política urgente e classificou como fundamental a importância dos debates promovidos pela Ordem dos Advogados do Brasil neste momento de crise política. Representando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Thomaz Bastos fez um discurso institucional, focado na atuação do Poder Judiciário, e destacou a importância de os advogados discutirem livremente, criando condições para um debate sobre a crise do presente e dos erros já cometidos.

“É fundamental que os advogados criem as condições para o debate dos ajustes que precisam ser feitos e, principalmente, que seja um debate com farol alto, olhando para o futuro, a fim de que possamos construir um Brasil de instituições fortes, livres e democráticas, ou seja, construir um Estado de Direito Democrático”.

O ministro da Justiça defendeu a aprovação de duas reformas, uma infraconstitucional — que dê prosseguimento à reforma do Judiciário, já aprovada — e uma política, para ajudar a reduzir denúncias de corrupção como as atuais, sob exame sucessivo pelas CPIs, Polícia Federal, pela imprensa e Ministério Público.

“Mas a reforma política por si só e por melhor que seja não resolverá a corrupção. O que resolverá a corrupção, se é que a questão da corrupção se resolve definitivamente, é a criação de novas culturas e novas instituições”, afirmou o ministro.

Lições para o futuro

Para o presidente do Supremo, ministro Nelson Jobim, a crise política atual não pode conduzir somente às punições dos protagonistas dos escândalos de corrupção, mas também deixar lições que ajudem o país a avançar.

“Dentro da experiência que vivemos agora precisamos conduzir aos apenamentos necessários, mas também devemos extrair disso tudo o que foi, dentro das regras do jogo político-democrático, que conduziu às distorções”, disse Jobim.

Para ele, há indícios de que entre os fatores responsáveis pela crise estão a concentração de recursos nas mãos do Poder Executivo e as regras vigentes do processo eleitoral.

Jobim sustentou que o direito de defesa dos acusados nos escândalos de corrupção deve ser respeitado e advertiu que o STF está atento à fiscalização da lei. “Condene-se, processe-se, mas se obedeça às regras do jogo, se obedeça o direito de defesa, com absoluta participação da advocacia; e fiquem certos os advogados brasileiros que o STF está presente na fiscalização exata da obediência às instituições republicanas e às regras constitucionais”.

A crise política atual, segundo análise do ministro, “é exclusiva de um setor político do país e não uma crise institucional”. Segundo ele, o risco de procurar situá-la fora desse contexto “é quando se pretende que ela seja uma crise institucional e aí pode se querer recorrer a forças não institucionais para solvê-la”.

O presidente do Supremo sugeriu que os ensinamentos extraídos da crise política devem reforçar o compromisso da advocacia com o direito de defesa. Com experiência de ex-dirigente da OAB no Rio Grande do Sul, Jobim sugeriu que a entidade “deve buscar em sua agenda não só a necessária implantação e segurança e respeito às prerrogativas da categoria, mas deve a Ordem buscar também a discussão, fundamental, de que essas prerrogativas só poderão valer se — e somente se — contribuírem para o conjunto de uma perspectiva nacional de futuro, para que essa participe do pacto deste País com seu futuro”.


Leia o discurso de Busato

“O tema desta XIX Conferência Nacional dos Advogados – República, Poder e Cidadania – reúne e sintetiza os elementos básicos da crise político-institucional brasileira.

Uma crise que, a rigor, remonta aos primórdios de nossa formação nacional – e tem raízes numa distorção que até hoje nos desafia: somos uma nação cuja elite dirigente a governa de costas para o povo.

Uma nação sem povo.

A Constituição Federal de 1988 declara, solenemente, que um dos objetivos fundamentais da nossa República consiste em “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, inciso III). Mas como é possível fazê-lo se o próprio povo, no seu conjunto, permanece à margem da vida política?

A proclamação da República não rompeu, entre nós, os fundamentos discricionários da sociedade monárquica, que, por sua vez, preservou a estrutura social herdada da Colônia.

A ética republicana brasileira não se impôs às forças reacionárias que dela se apoderaram desde o início – e ainda hoje, como estamos vendo, têm presença hegemônica na gestão de nosso Estado.

A presente crise política, que é sobretudo moral, expõe as entranhas desse sistema, submetido ao domínio promíscuo de partidos políticos – partidos que, no dizer de um dos mais eminentes pensadores brasileiros do século passado, o jurista e sociólogo Oliveira Viana, não passam de “clãs organizados para a exploração em comum das vantagens do poder”. Oliveira Viana referia-se aos partidos do tempo da monarquia, mas alguém, em sã consciência, divergiria desse diagnóstico em relação aos partidos políticos dos dias de hoje?

Clãs organizados para, vencida a batalha eleitoral – uma batalha movida a dinheiro -, exercer o botim do poder!

E o que é mais triste: não obstante o impacto dos escândalos que hoje mobilizam nada menos que três CPIs no Congresso Nacional, as próximas eleições gerais serão regidas pelas mesmas leis que produziram o cenário político que aí está.

O Congresso Nacional não fez a prometida reforma eleitoral e corremos o risco, no próximo ano, de assistir ao mesmo espetáculo de extravagância econômica e indigência cívica para a renovação de nossos quadros políticos dirigentes.

O próximo Presidente da República, os próximos governadores, as próximas assembléias legislativas e o próximo Congresso Nacional serão eleitos nos mesmos moldes dos atuais.

Veremos, mais uma vez, profissionais do marketing político transformando candidatos em produtos de consumo – como sabonetes ou refrigerantes – e os impingindo aos eleitores desavisados (infelizmente, a maioria), a partir de truques de manipulação de imagem e de estratagemas verbais.

Os showmícios milionários serão, novamente, o fator básico de agregação de multidões – e não idéias, propostas ou compromissos. Elegeremos partidos sem que haja fidelidade partidária, o que, mais uma vez, propiciará o ambiente para a construção artificial e espúria de maiorias, como as que resultaram do expediente funesto do Mensalão.

Nada menos republicano. Nada menos democrático. Nada menos ético.

Todos, governo e oposição, diante do impacto do escândalo político – e de suas evidentes raízes – falaram da urgente necessidade de promover a reforma eleitoral.

Falaram, falaram – mas não a fizeram.

O Senado chegou a formular um pequeno esboço, pontual e insuficiente – mas nem esse esboço chegou a ser considerado.

A esperança de que a crise servisse ao menos para provocar as mudanças necessárias à regeneração política do país frustrou-se.

E aí voltamos ao ponto inicial: ao fosso entre Estado e sociedade – à nação sem povo. Ao Brasil de ontem e de hoje.

Ao longo de nossa história, acostumamo-nos a ser mais súditos que cidadãos. Alceu Amoroso Lima dizia que uma das razões dessa distorção é que o Brasil, antes de se organizar como sociedade, se organizou como Estado.

O Estado, entre nós, precedeu a Nação. O resultado é que temos uma República que não faz jus ao seu sentido etimológico.

República significa coisa pública – e a nossa não é, não tem sido, algo efetivamente público. O sistema espúrio de financiamento de campanhas eleitorais, a cujos efeitos assistimos com o presente escândalo político, distorce a representação e faz do Estado reserva de domínio dos grupos econômicos privados que financiam candidatos e partidos. E o resultado é a esquizofrenia de um país de duas faces.

Em artigo publicado em 1861, no Diário do Rio de Janeiro, Machado de Assis constatava haver dois Brasis – o real e o oficial. E sobre cada qual fazia esta análise, que, 144 anos depois, mantém-se tristemente atual:

“O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco. (…) No que respeita à política, nada temos a invejar ao reino de Lilipute.”


De lá para cá, podemos dizer que houve efetiva evolução em nossa política? Deixou ela de ser povoada pelos anões morais que Machado comparou aos que Gulliver encontrou em Lilipute?

Outro pensador social brasileiro da primeira metade do século XX, o advogado Hermes Lima, fundador do Partido Socialista, constatava que nem a política monárquica, nem a republicana jamais tiveram entre nós o sentido de uma atuação verdadeiramente baseada no apoio direto da massa.

Nem sob um regime, nem sob o outro, dizia ele, tivemos nenhum partido que fosse, de fato, instrumento político do povo, vivendo do contato e do apoio direto do povo.

Daí a imensa esperança – a extraordinária euforia – que todos os que desejamos a superação desse quadro de iniqüidades tivemos com a eleição do atual governo, do Presidente Lula, lastreado por um partido político, o PT, que parecia romper o panorama quase fatalista descrito por Oliveira Viana e Hermes Lima.

Tratava-se afinal de um governo carregado de forte simbolismo, que parecia promover, com atraso de mais de um século, o encontro da República brasileira com sua única e insubstituível fonte de poder – o povo.

A eleição de um ex-operário, forjado nas lutas sindicais, tendo a ética e a justiça social como lema e compromisso, promoveu uma rara comunhão eleitoral na história do país.

Lula uniu elite e povo numa mesma esperança, num mesmo sonho, de um Brasil melhor e mais justo. Mas, tal qual seus antecessores, sucumbiu aos vícios da velha política brasileira, vícios que nos têm impedido de realizar a vocação de fraternidade e grandeza antevista pelos fundadores da Pátria.

Antevista por um José Bonifácio de Andrada e Silva, que há quase dois séculos, sonhou um Brasil sem escravos e sem tiranos, abortado no berço esplêndido de seu nascimento pelas forças reacionárias de sua elite dirigente.

E aí, meus caros amigos, advogadas e advogados, cidadãos e cidadãs, permitam-me a indignação: pior que roubar nossos reais, nossos suados reais, é roubar nossos sonhos!

A reconstrução do sonho é bem mais penosa e dramática. É tarefa para gerações! E foi este sonho republicano, de um país mais justo e menos desigual, acalentado por gerações, construído à custa de sangue, suor e lágrimas, que nos foi suprimido.

Suprimido pelo tráfego iníquo e descarado das malas de dinheiro, pelas operações de caixa dois, pela formação do exército parlamentar de mercenários, sustentados pelas 30 moedas de prata do Mensalão!

Quando, hoje, alguns parlamentares propõem abrandar as penas dos colegas envolvidos em atos de corrupção explícita, sentimos que a dualidade mencionada por Machado de Assis persiste.

O Brasil liliputiano continua vivo – e no comando!

Há também, é claro, o Brasil sadio, ético, criativo, de que o próprio Machado de Assis, oriundo das camadas populares, é exemplo. Mas esse Brasil, embora presente no Parlamento e em todas as instituições políticas, ainda não chegou efetivamente ao poder.

O presidente Lula foi eleito com a missão de fazê-lo chegar, mas não conseguiu. Em curto espaço de tempo, capitulou aos usos e costumes do velho Brasil, aquele que, como fênix, renasce sempre das próprias cinzas. Basta acompanhar nossa trajetória republicana.

Em 1930, fez-se uma revolução para pôr fim à “República dos Carcomidos”. Mas ei-la, rapidamente, de volta, a assumir o comando da própria revolução e a levá-la sete anos depois ao golpe ditatorial do Estado Novo.

A redemocratização, a partir de 1945, foi turbulenta e durou pouco: passou pelo suicídio de Vargas, por duas tentativas de golpe contra JK, pela renúncia de Jânio Quadros, pela queda de Goulart, desaguando numa ditadura militar que duraria duas décadas, inaugurando nova era de velhos e maus costumes na cena brasileira.

O pretexto do golpe militar foi o combate à corrupção e à subversão, mas ele próprio acabaria tornando-se agente e promotor de ambas. A redemocratização, a partir de 1985, inaugurou a era das CPIs, na qual ainda estamos. E esse período já pôde ser acompanhado desta Presidência da OAB pelo ilustre advogado Márcio Thomaz Bastos, que hoje nos honra com sua presença, representando o Presidente da República.

Coube-lhe presidir brilhantemente o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, de abril de 1987 a abril de 1989, período rico de nossa história contemporânea. Período em que tivemos uma Constituinte, responsável pela constituição em vigor, e em que a sociedade civil passou a investigar mais de perto os governantes.

Cada governo, desde então, passa a conviver com um ambiente de denúncias, reais e efetivas, que geram contra-ofensivas de operações-abafa e introduzem novos termos e metáforas no universo semântico da política nacional, como “pizza” e impeachment.


Tivemos um presidente deposto, Fernando Collor de Mello. E desde então a instabilidade passou a fazer parte do cenário político.

A expressão “assar uma pizza” tornou-se recorrente. Significa selar acordo de impunidade entre os agentes da política. Negocia-se solução de cúpula em que acusadores e acusados barganham interesses à revelia da opinião pública.

A indignação da sociedade em face dos fatos serve apenas de munição para pressionar o lado acusado e levá-lo a pagar um alto preço político pela impunidade. É o que acontece presentemente.

Tão indecente quanto a roubalheira é a tentativa de minimizá-la, manipulá-la politicamente. A idéia de manter o Presidente da República “sangrando” para que chegue fraco às eleições é inqualificável.

Se o Presidente cometeu alguma irregularidade, deve responder por seus atos, nos termos da lei. Se é inocente, deve ser preservado. O inaceitável é que seja condenado e, simultaneamente, preservado em face de interesses eleitoreiros. Isso é ainda mais grave que a pizza. É, como

dizia Ulysses Guimarães, fazer piquenique na boca do vulcão.

A sociedade está atenta e já não tolera essa encenação. Está cada vez mais cética quanto às instituições políticas –e isso é trágico para a consolidação do Estado democrático de Direito.

Otávio Mangabeira comparava a democracia a uma “plantinha tenra”, que precisa ser regada e cuidada com carinho. E o que vemos hoje é essa plantinha ser pisoteada sem qualquer cerimônia pelos agentes políticos.

O Presidente Lula tem responsabilidade no desconforto moral em que está. Até hoje não proferiu uma palavra categórica que convença a sociedade de sua inocência.

Diz-se traído, mas não revela por quem ou por quê. Traição ao Presidente da República não é questão de foro privado – é questão institucional. Quem trai o supremo mandatário do País trai o País. E o mínimo que se pode exigir é que a sociedade saiba os nomes dos que a estão traindo.

Este é o grito que, neste mês de Setembro, que marca a celebração do 183º (centésimo- octogésimo-terceiro) ano de nossa Independência, nos impede de ouvir e celebrar condignamente aquele outro grito que nossos ancestrais nos legaram – o Grito do Ypiranga.

O grito que prevalece e se sobrepõe é o da indignação da sociedade brasileira contra a corrupção e a impunidade, mazelas que se somam e realimentam há tantos anos em nossa paisagem político-institucional.

Poderá o Brasil celebrar sua efetiva Independência enquanto se mantiver refém de si mesmo? Hoje, o principal inimigo nacional está dentro do próprio país.

É a banda podre de suas elites dirigentes, que, como já disse, continua a ter presença hegemônica no jogo do Poder, cujas carências básicas são as de sempre: ética e cidadania.

Sem elas, o exercício do poder não se legitima. É sempre arbitrário, espúrio. Sem ela, nossa República permanece fictícia, a exigir reproclamação – refundação.

A Ordem dos Advogados do Brasil, como entidade representativa dos anseios da sociedade civil brasileira – e desde sua fundação, há 75 anos, estatutariamente comprometida com a defesa do Estado democrático de direito e as instituições republicanas -, não pode ficar indiferente a este quadro.

Não temos partido político, nem sectarismos ideológicos. Mas temos compromisso claro com a lei e a cidadania. A Constituição Federal do Brasil, de 1988, estabelece, em seu artigo 133, que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.

Ao alçar o advogado ao nível de “preceito constitucional”, o constituinte brasileiro definiu-o para além de sua atividade estritamente privada, qualificando-o como prestador de serviço de interesse coletivo e conferindo a seus atos múnus público – quer queiram, quer não!

Não há outra profissão com status equivalente. Para alguns, trata-se de privilégio, mas, na verdade, trata-se de compromisso com a coletividade, verdadeira promissória social, que excede os deveres corporativos e nos torna homens públicos, ainda que sem mandato político ou cargo funcional no Estado.

Muitos confundem a defesa das prerrogativas com privilégios corporativos, quando, na verdade, trata-se da defesa da cidadania. É o direito do cidadão que está em pauta, quando se exige, em nome da liberdade de defesa e do sigilo profissional, que se respeite a inviolabilidade do local de trabalho do advogado, de seus arquivos e dados, de sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas e afins.

São direitos que se destinam aos jurisdicionados e aos cidadãos, para que tenham uma Justiça (vale a redundância) efetivamente justa.

Por isso, consideramos os ataques às prerrogativas da advocacia um sinal perigoso, que pode resultar no enfraquecimento da profissão, na redução de cidadania.


Se o advogado não pode atuar com independência e liberdade, o que está em risco é a democracia – e com ela a cidadania.

Daí a campanha nacional permanente da OAB em defesa dessas prerrogativas, ameaçadas ciclicamente de supressão – hoje, a pretexto de combate à criminalidade; ontem, na ditadura, a pretexto de defesa da segurança nacional, que acobertava tortura a presos políticos e outras violações a direitos humanos e constitucionais.

Advogadas, advogados, cidadãs e cidadãos

A OAB não é governo, nem oposição. É uma instituição republicana, a serviço da cidadania, que se envolve com a conjuntura política, mas não se contamina com o jogo partidário.

Cultivamos a neutralidade, mas não a indiferença. Daí nosso empenho e determinação em agir diante da crise política que aí está – e que nos remete aos fundamentos de uma doutrina que Ruy Barbosa resumiu em magistral conferência proferida em 1916, na Faculdade de Direito de Buenos Aires, e que denominou “O dever dos neutros”.

Resumo aqui a parte mais substantiva dela, que se aplica com perfeição ao que ocorre hoje em nosso meio político – e nos serve de balizamento. Disse Ruy Barbosa naquela oportunidade:

“Entre os que destroem a lei e os que a observam não há neutralidade admissível. Neutralidade não quer dizer impassibilidade; quer dizer imparcialidade – e não há imparcialidade entre o direito e a injustiça. Quando entre ela e ele existem normas escritas que as discriminam, pugnar pela observância dessas normas não é quebrar a neutralidade; é praticá-la. Desde que a violência pisa aos pés arrogantemente o código escrito, cruzar os braços é servi-la. Os tribunais, a opinião pública, a consciência não são neutros entre a lei e o crime.”

Daí porque é impossível e inaceitável cruzar os braços diante da atual crise política. Daí porque decidimos ter, diante dela, atitude propositiva – e não apenas crítica. Daí o tema desta Conferência – República, Poder e Cidadania -, precedida de campanha nacional deflagrada ano passado, por ocasião da celebração da data de Proclamação da República, e que se chamou significativamente “Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia”.

Naquela oportunidade, sem que nem de longe suspeitássemos dos escândalos que estavam por vir, constatávamos a péssima performance dos agentes políticos e contra-propúnhamos uma presença popular mais efetiva na cena política.

Propúnhamos que fossem acionados os sempre negligenciados mecanismos da democracia direta, previstos no art. 14 da Constituição, e dependentes de regulamentação legal: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Enviamos, na seqüência, os projetos que regulamentam aquelas

iniciativas – e que até hoje não foram votados.

Se antes dos escândalos já achávamos insatisfatória a conduta da maioria dos agentes políticos, muito mais agora, depois das chocantes revelações que vieram a público a partir das denúncias do então deputado Roberto Jefferson.

Elas tiveram o efeito moral dos furacões Rita e Katrina, que devastam cidades, oprimem populações e, ao final, impõem um recomeço, a reconstrução – em novas bases, em bases mais sólidas.

E é o que aqui propomos. Como tribuna da sociedade civil brasileira, a OAB sente-se no dever de alertar a classe dirigente brasileira para que busque no povo – fonte e destino de sua missão governativa – a legitimidade moral de seus atos. A atual crise não pode ser apenas mais uma crise.

Precisa, tem que gerar resultados mais consistentes. Precisamos de uma Operação Mãos Limpas, que saneie a República brasileira e devolva credibilidade a suas instituições.

Ghandi disse certa vez que não tinha a ilusão de uma sociedade sem desigualdade e injustiça. Mas que era – e é – possível reduzi-las (a injustiça e a desigualdade) a uma dimensão menor, suportável.

Não temos a ilusão de que nos será possível construir uma sociedade sem defeitos, livre de endemias morais como a da corrupção. Ela acompanha a caminhada humana neste Planeta desde sua origem.

A dualidade da natureza humana faz crer que o exercício do Poder terá sempre a tentá-lo o que Santo Agostinho chamava de “o mistério da iniqüidade”. Por isso mesmo, precisamos ser sempre e cada vez mais republicanos. Sempre e cada vez mais cidadãos, para que possamos materializar a sociedade sonhada por Ghandi – uma sociedade em que, por sobre a face sombria da natureza humana, prevaleça a luminosidade do seu espírito. Muito obrigado”.

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