Número de vereadores

Leia voto de Marco Aurélio contra redução do número de vereadores

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22 de setembro de 2005, 17h15

Cabe ao Tribunal Superior Eleitoral baixar instruções para que sejam observadas e cumpridas as regras do Código Eleitoral. Dessa forma, não poderia o TSE, “nem mesmo o Supremo Tribunal Federal, que está no ápice da pirâmide do Judiciário, regulamentar a Lei Fundamental, por melhor que seja a intenção – e o Brasil está cheio de bem-intencionados”.

Essa foi a tônica do voto do ministro Marco Aurélio no inflamado julgamento sobre a redução do número de cadeiras de vereadores nos municípios, feito na última semana de agosto. Marco Aurélio foi voto vencido — o único.

O plenário do Supremo julgou constitucional a Resolução 21.702/04 do TSE, que fixou o número de vereadores que cada município deve ter, com base em sua população. A norma seguiu o que foi decidido em julgamento do próprio STF (RE 197.917), em relação ao município de Mira Estrela, interior de São Paulo.

Duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra a redução de cadeiras foram ajuizadas: uma pelo PP e outra pelo PDT. O relator da matéria, ministro Celso de Mello, entendeu que o TSE nada mais fez “senão dar expansão a uma interpretação constitucional que, emanada do Supremo, definiu o exato alcance e o preciso significado da cláusula de proporcionalidade inscrita no inciso IV do artigo 29 da Constituição Federal”.

Mas, para o ministro Marco Aurélio, ao considerar constitucional a Resolução do TSE, o Supremo, na prática, jogou por terra as 5.564 leis orgânicas dos municípios e alterou a Constituição Federal, que estabeleceu que cada Câmara de Vereadores fixaria o número de cadeiras por meio da lei orgânica do município, respeitados os limites previstos no artigo 29 da própria Constituição.

“Não reconheço essa competência ao Tribunal a que estou integrado, ao Tribunal Superior Eleitoral, porque não há, e também não reconheço ao Supremo, tribunal que possa atuar dessa forma e com essa repercussão”, afirmou Marco Aurélio.

Voto vencido

Voto vencido em mais uma decisão do Supremo, Marco Aurélio assumiu que votar em divergência está se tornando uma sina para ele. “Minha sina, no Tribunal — peço a paciência dos colegas e a admissão do que vou dizer —, é realmente fazer o contraponto, é realmente divergir, é realmente estabelecer o dissenso. Nem por isso, entretanto, reconheço-me merecedor de um divã freudiano”.

Leia a íntegra do voto

25/08/2005 – TRIBUNAL PLENO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.345-0 DISTRITO FEDERAL

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Senhor Presidente, a esta altura, sinto-me um órfão abandonado pela paternidade intelectual do ministro Celso de Mello.

Minha sina, no Tribunal — peço a paciência dos colegas e a admissão do que vou dizer —, é realmente fazer o contraponto, é realmente divergir, é realmente estabelecer o dissenso. Nem por isso, entretanto, reconheço-me merecedor de um divã freudiano.

No caso concreto, não posso deixar de abrir esta que, para mim, revela um documento amado: a Constituição Federal.

Esta Corte, julgando o Recurso Extraordinário nº 197.917-8/SP, que versava sobre a problemática do número de cadeiras no Município de Mira Estrela, São Paulo, julgando um processo subjetivo que tinha balizas próprias, proclamou, segundo a parte dispositiva do acórdão proferido:

“Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, dar parcial provimento ao recurso para, restabelecendo, em parte, a decisão de primeiro grau, declarar inconstitucional, incidenter tantum”, – no caso concreto, porque, inclusive, era o único diploma legal que estava em jogo – “o parágrafo único do artigo 6º da Lei Orgânica nº 226, de 31 de março de 1990, do Município de Mira Estrela/SP, e determinar à Câmara de Vereadores que, após o trânsito em julgado, adote as medidas cabíveis para adequar a sua composição aos parâmetros ora fixados, respeitados os mandatos dos atuais vereadores”.

Essa foi a decisão que, como revela a nossa ordem jurídica, fez-se lei entre os envolvidos no processo, envolvidos de forma muito específica, muito individualizada.

Quando do julgamento do Supremo Tribunal Federal, não estava em vigor a Emenda Constitucional nº 45. Não existia, no cenário nacional, o verbete de súmula vinculante. Mesmo que houvesse uma disposição a prever a obrigatoriedade de observância das decisões do Supremo Tribunal Federal prolatadas em processos subjetivos, ter-se-ia a necessidade de aguardar outros pronunciamentos, como está hoje no corpo permanente da Carta por força da Emenda Constitucional nº 45, para chegar-se à edição de um verbete com força vinculante. Mesmo assim, essa força vinculante estaria dimensionada à observação pelas inúmeras câmaras municipais deste País, consideradas as respectivas leis orgânicas.


Senhor Presidente, eu diria que o Tribunal Superior Eleitoral homenageou, de forma isolada, o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, no caso concreto. O que se mostrou limitado, em termos de decisão judicial, passou – penso que se igualizou o Tribunal Superior Eleitoral ao Tribunal Superior do Trabalho em relação ao poder normativo – a ter um cunho ilimitado. E a inspiração foi única.

Tenho sustentado que a economia e celeridade processuais direcionam ao máximo de eficácia da lei com o mínimo de atuação judicante. Tenho sustentado que o Supremo Tribunal Federal não é órgão, em si, consultivo e que deve, até mesmo por um dever de cautela, cingir-se, nos julgamentos de processos subjetivos, ao que versado nesses mesmos processos. Mas o acórdão da Corte saiu com uma tabela que eu diria “pretensiosa”, tendo em conta a proporcionalidade entre o número de cadeiras e a população dos municípios. Saiu com uma tabela que extravasou em muito o necessário para se decidir o conflito de interesses revelado no processo que esteve em julgamento. O Tribunal Superior Eleitoral pegou esse gancho e, no campo da normatividade primária, baixou a resolução que está sendo atacada nesses processos.

Começo por analisar a atividade do Tribunal Superior Eleitoral, considerado o campo da consulta e da edição de instrução. Cumpre ao Tribunal Superior Eleitoral responder a consultas sobre matérias eleitorais. Lá, tenho sustentado que pouco importa o documento normativo de cotejo. Poderá fazê-lo inclusive quanto ao contido na Constituição Federal. É o decorrente da previsão do inciso XII do artigo 23 do Código Eleitoral. Não há nesse inciso qualquer limitação. Não se revela que as consultas devam estar restritas ou estritas ao contido no Código.

No tocante à edição de instruções, a norma é substancialmente diversa ao prever a competência do Tribunal Superior Eleitoral. Aí temos, no inciso IX do mesmo artigo 23, que à Corte incumbe baixar instruções para a observância, a observação, o cumprimento do Código Eleitoral. Não cabe ao Tribunal Superior Eleitoral e nem mesmo ao Supremo Tribunal Federal, que está no ápice da pirâmide do Judiciário, regulamentar a Lei Fundamental, por melhor que seja a intenção – e o Brasil está cheio de bem-intencionados.

O que se tem no artigo 23 é a edição de instruções – repito – para o exato cumprimento do Código Eleitoral. E neste não há o estabelecimento de balizas quanto ao número de vereadores. Essas balizas estão no artigo 29 – creio -, inciso IV, da Constituição Federal.

O que fez o Tribunal Superior Eleitoral? Não foi tímido o Supremo Tribunal Federal, limitando-se ao caso de Mira Estrela. Não estendeu a decisão proferida a outros municípios. Mas, quem sabe, tem o Tribunal Superior Eleitoral um âmbito de competência bem mais largo do que o do Supremo Tribunal Federal!

Senhor Presidente, se formos à Constituição Federal, veremos que disciplina o número de cadeiras nas câmaras de vereadores, nas assembléias estaduais, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Quanto, por exemplo, às assembléias estaduais, temos o preceito do artigo 27:

O número de Deputados à Assembléia Legislativa corresponderá ao triplo da representação do Estado na Câmara dos Deputados e, atingido o número de trinta e seis, será acrescido de tantos quantos forem os Deputados Federais acima de doze.

Aqui, o constituinte, numa opção político–legislativa, constitucional, praticamente fixou o número de cadeiras nas assembléias legislativas.

Em relação à Câmara dos Deputados, há a regra do § 1º artigo 45, a revelar que:

Art. 45 (…)

§ 1º. O número total de Deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, será estabelecido por lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se aos ajustes necessários, no ano anterior às eleições, para que nenhuma daquelas unidades da Federação tenha menos de oito ou mais de setenta Deputados.

Estamos diante de um preceito similar à cabeça do artigo 29, que versa sobre a lei orgânica dos municípios. Por que similar? Porque não se deixou ao Tribunal Superior Eleitoral a fixação do número de cadeiras na Câmara dos Deputados, porque se remeteu, como o faz o artigo 29, à lei orgânica do município, à lei complementar a fixação do número de cadeiras na Câmara dos Deputados. A regra é mais clara ainda quanto aos representantes das unidades federadas, os senadores. O § 1º do artigo 46 revela, de forma peremptória, a não deixar qualquer dúvida, que:

Art. 46 (…)

§ 1º – Cada Estado e o Distrito Federal elegerão três Senadores, com mandato de oito anos.

Senhor Presidente, a Constituição Federal esteve em vigor durante muitos anos, e sempre se observou, nas eleições – sempre tivemos pacificada a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral -, o alcance do artigo 29, inciso IV, da Constituição Federal, a remeter a fixação do número de cadeiras à lei orgânica do município, desde, claro, que atendido o mínimo e o máximo que estão nas alíneas do inciso IV do artigo 29 em comento. Mas, por isso ou por aquilo, pela dinâmica da própria vida, tivemos a decisão do Supremo Tribunal Federal. Já não discuto mais o que está no acórdão, reservando-me o direito de voltar a reiterar o convencimento sobre a matéria, quando me defrontar com o processo que a conduza. Cabe perceber que, no sistema da Constituição Federal, a fixação do número de vereadores não ocorreu pelo constituinte. Fez ele inserir na Carta, em bom vernáculo, que o município seria regido pela respectiva lei orgânica, desde que respeitados certos princípios, entre os quais o estabelecido no referido inciso IV:


(…)

IV – número de Vereadores proporcional à população do Município, observados os seguintes limites:

(…)

É a única imposição da Carta, a par daquela outra alusiva ao instrumental para fixação do número de cadeiras, que é a lei orgânica:

Art. 29 O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:

(…)

IV – número de Vereadores proporcional à população do Município, observados os seguintes limites:

a) mínimo de nove e máximo de vinte e um nos Municípios de até um milhão de habitantes;

b) mínimo de trinta e três e máximo de quarenta e um nos Municípios de mais de um milhão e menos de cinco milhões de habitantes;

c) mínimo de quarenta e dois e máximo de cinqüenta e cinco nos Municípios de mais de cinco milhões de habitantes;

(…)

Esses parâmetros vieram ao mundo jurídico para ter-se a fixação do número de cadeiras, repito, numa opção política, pelos próprios representantes dos munícipes, pelos próprios vereadores que legislam via lei orgânica do município.

Havia, quando da edição das resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, cinco mil quinhentos e sessenta e quatro leis orgânicas em vigor no País.

Indaga-se, a esta altura: o que foi feito — e como foi feito — dessas leis orgânicas? Foram simplesmente apagadas num passo de mágica, via resolução do Tribunal Superior Eleitoral? Teria o Tribunal Superior Eleitoral, e ele não se defrontou sequer com um processo jurisdicional, o controle concentrado de constitucionalidade para, em penada única e em atropelo – permitam-me atuar com desassombro -, à Carta da República, afastar em definitivo essas leis orgânicas municipais? Será que poderia assim proceder, considerado o direito posto, o direito vigente, o exame eqüidistante, porque até mesmo o povo, na dicção de Fábio Konder Comparato, submete–se à Constituição Federal? Será que seria dado simplesmente desconhecer essas leis orgânicas, sem afastá-las mediante o procedimento próprio previsto na ordem jurídica? Não reconheço essa competência ao Tribunal a que estou integrado, ao Tribunal Superior Eleitoral, porque não há, e também não reconheço ao Supremo, tribunal que possa atuar dessa forma e com essa repercussão.

Aprendi, desde cedo, que, no sistema nacional, o Direito contempla vocábulos, expressões, institutos com sentido próprio; que o Direito é acima de tudo orgânico, é algo organizado, e que não coabita o mesmo teto dessa organização a perda de parâmetros, o enfoque das questões segundo o critério que diria de plantão. Não posso potencializar a busca de economia, mesmo porque não sou especialista da área, a ponto de olvidar que em Direito o meio justifica o fim, mas não o fim, o meio, e que se paga um preço por se viver em um estado democrático de direito, e esse preço, já disse, é módico: o respeito irrestrito às regras em vigor. Enquanto tiver a toga sobre os ombros, compreendido ou não pelos mais diversos segmentos da sociedade, atuarei a partir da minha consciência; atuarei a partir da minha formação humanística e técnica, buscando, porque foi o juramento que fiz quando tomei posse nesta Corte, cumprir com fidelidade a Constituição Federal.

Peço vênia – e toda vez que há uma flexibilidade em certo campo, a tendência em passo seguinte é implementar-se flexibilidade maior – para concluir, sem merecer, repito, o divã, de forma diametralmente oposta ao voto do relator e aos votos dos ministros que o acompanharam.

Creio que estamos diante de uma situação concreta em que a inconstitucionalidade das resoluções do Tribunal Superior Eleitoral salta aos olhos, é de clareza meridiana, porque acabou o Tribunal Superior Eleitoral por fazer o que nem mesmo o Supremo Tribunal Federal fez no julgamento do processo a que me referi, ou seja, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 197.917-8/SP, substituindo-se aos constituintes, alterando a própria Constituição Federal, no que esta previu como sendo da incumbência de cada câmara de vereadores, via lei orgânica do município, a fixação do número de cadeiras na Casa, respeitado o piso e o teto previstos no inciso IV do artigo 29 da Constituição Federal.

Julgo procedentes os pedidos formulados nas ações diretas apregoadas.

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