Combate ao casuísmo

Reforma política não deve ser aplicada na próxima eleição

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8 de setembro de 2005, 10h46

O Senado Federal votou projeto de lei com modificações nas regras eleitorais. Pretende-se que a aprovação final do projeto seja feita até o final de setembro, para que as novas normas disciplinem o próximo pleito.

Algumas inovações são moralizadoras e merecem aplauso, como a divulgação diária das contas dos candidatos e coligações na internet e o aumento para seis meses do prazo de proibição de publicidade no período eleitoral. Mas a disciplina da propaganda eleitoral merece maior reflexão.

As mudanças propostas na propaganda eleitoral diminuem o tempo de campanha e a exposição dos candidatos. Entre elas, a redução do prazo das campanhas de 90 para 60 dias, do horário eleitoral gratuito de 45 para 35 dias, a proibição de colocação de materiais de propaganda em locais públicos, de distribuição de brindes e de realização dos chamados showmícios. Algumas são positivas. Porém, no conjunto, fica evidente o propósito de redução do tempo e tamanho das campanhas, bem como da exposição dos candidatos.

Alega-se como justificativa a redução dos custos das campanhas e aumento dos controles, para evitar problemas envolvendo financiamento de campanhas. Como se a questão fosse o custo das campanhas e não a honestidade de alguns candidatos. Baixar os custos das campanhas não implica aumento da probidade. Tal argumentação leva à conclusão de que os atos ilícitos envolvendo recursos públicos são proporcionais à necessidade de financiamento de campanhas. Ou, indiretamente, à admissão de que os recursos das campanhas são oriundos de fontes ilícitas, o que acredito não corresponder à realidade da maioria dos candidatos.

Temo, porém, que a motivação seja outra. A redução do tempo e dos meios de propaganda tende a favorecer os candidatos mais conhecidos, dentre os quais os atuais mandatários que passam por enorme crise de legitimidade. As regras propostas diminuem as chances eleitorais de novas lideranças, favorecendo os candidatos já conhecidos.

Repete-se, pois, antiga estratégia utilizada em relação ao principal meio de propaganda, o horário eleitoral gratuito. Anteriormente fixado em sessenta dias (Lei 9.100/95, artigo 56, parágrafo 1º) foi reduzido para quarenta e cinco dias (Lei 9.504/97, artigo 47), sendo apontada como razão de tal alteração facilitar a reeleição do então Presidente da República (cf., entre outros, Barreto, Comentários à lei das eleições: Lei n. 9.504/97 e alterações, Bauru, Edipro, 2000, pp. 153-154, e Cândido, Direito eleitoral brasileiro, 11ª ed., Bauru, Edipro, 2004, p. 475).

Sendo esta a intenção da proposta, há conveniência (e talvez conivência) para situação e oposição. Facilita tanto a candidatura à reeleição do atual presidente quanto candidatos de oposição mais conhecidos, como Serra ou Garotinho, em detrimento dos demais. O mesmo em relação às disputas majoritárias estaduais, favorecendo candidatos de diversos partidos.

Mas o endereço das novas propostas parece ser mesmo a reeleição dos atuais parlamentares, pois a maioria tende a sair fortalecida. Aqueles que não dispõem de muitos recursos para campanhas são duplamente beneficiados, pela redução das chances de candidatos com mais recursos e novas lideranças. Em relação aos demais, apesar do desgaste da imagem, suas chances eleitorais aumentam, à medida em que o prazo e os meios de propaganda são reduzidos, levando os apoiadores e cabos eleitorais a optarem por candidatos já conhecidos, que terão maior possibilidade de vitória. Dificulta-se, pois, o aparecimento de novas lideranças.

Também sou contra campanhas milionárias e que privilegiam imagens, shows, brindes, fantasias e artifícios em detrimento da realidade e do debate ideológico. Mas o atual momento histórico exige campanha mais longa. Primeiro, para maior discussão de idéias e projetos para o país, cada vez mais raros. Há que se debater amplamente quais os rumos do país para a próxima geração, no contexto da globalização e desemprego estrutural, as questões econômica, política e social, como reforma política e tributária. Segundo, para que o povo tenha maior oportunidade de conhecer os candidatos e observar seus procedimentos durante as campanhas. Com maior tempo de exposição, eventuais candidatos com falsos discursos podem ser descobertos e desmascarados. Por fim, a campanha mais longa favorece o aparecimento de novas lideranças, através do debate eleitoral, para renovação da política.

Apesar de algumas propostas serem positivas, no conjunto enxerga-se novo casuísmo, próprio das leis eleitorais. Desta vez fortalecido com a pecha de moralizador das campanhas, como se a lei tivesse o condão de alterar o caráter das pessoas.

Para evitar casuísmos, a reforma política deve estabelecer que as alterações nas regras eleitorais não poderão ser aplicadas à eleição seguinte. Até para evitar conflito de interesses, pois quem vota a lei é potencial futuro candidato. Seria o mesmo de regras do jogo determinadas apenas por uma parte dos jogadores. No mínimo, trata-se de concorrência desleal, pois parte dos concorrentes tem poder de determinar quais as normas a serem seguidas.

Nem se diga que a alteração é democrática por ser feita por representantes de todos os partidos. Primeiro, porque os partidos com maior número de parlamentares e que constituem a maioria tem melhores condições de influenciar a nova lei. Segundo, porque mesmo dentro dos partidos a disputa é desigual entre os detentores de mandato e os demais. A título exemplificativo, recorde-se a instituição das “candidaturas natas” de detentores de mandato parlamentar (Lei 9.504/97, artigo 8º, parágrafo 1º), atualmente suspensas por decisão do Supremo Tribunal Federal (ADI 2.520, de 2002).

Diante de um possível novo casuísmo em matéria eleitoral, vale recordar e ampliar a célebre lição do jurista romano Paulo (non omne quod licet honestum est – D. 50, 17, 144): nem tudo que é legal é legítimo e honesto.

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