Dever de vigilância

Quem paga Zona Azul tem direito à segurança do carro

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9 de outubro de 2005, 7h00

“Optando o Poder Público pela cobrança de remuneração de estacionamentos em vias públicas de uso comum do povo, tem o dever de vigiá-los, com responsabilidade pelos danos ali ocorridos”. Assim, a empresa Soil Serviços Técnicos e Consultoria de Santa Catarina, foi condenada a pagar indenização no valor de R$ 8,5 mil ao motorista Acácio Irineu Klemke, que teve o carro furtado quando ocupava uma das vagas do sistema de Zona Azul da cidade de Joinville, serviço explorado pela empresa. A decisão é da 1ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina confirmando sentença da comarca de Joinville.

A empresa apelou da sentença ao TJ, sob argumento de que na condição de permissionária do município de Joinville presta serviços de parqueamento das vias públicas, mantendo e operacionalizando o sistema de estacionamento rotativo sem dever de vigilância ou guarda dos automóveis. Segundo sua defesa, “o preço cobrado pelo tíquete da Zona Azul remunera tão somente a permissão de uso do bem público, isto é, a viabilização da rotatividade dos estacionamentos de uso público”.

De acordo com o relator da matéria, desembargador Orli Rodrigues, a Soil é responsável pelos danos causados a terceiros nos estacionamentos sob seu controle. Disse ainda que embora a empresa admita que a cobrança se preste a garantir a rotatividade dos veículos nos estacionamentos públicos, tal fato restringe direito fundamental de ir, vir e permanecer previsto na Constituição ao impor ao cidadão a obrigação de arcar com determinado preço para ter a permissão de estacionar em via pública.

“E como cada obrigação deve corresponder um direito, o Poder Público (ou aquele que lhe faz as vezes), porque aufere vantagem econômica, deve suportar um ônus correspondente”, afirma.

Ação 2003019568-8

Leia a íntegra do acórdão

Apelação cível n. 03.019568-8, de Joinville.

Relator Originário: Dionízio Jenczac.

Relator Designado: Des. Orli Rodrigues

RESPONSABILIDADE CIVIL – FURTO DE VEÍCULO EM VIA PÚBLICA – ZONA AZUL – ADMINISTRAÇÃO FEITA POR EMPRESA PERMISSIONÁRIA – PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO – REMUNERAÇÃO FEITA POR MEIO DE TARIFAS – PERMISSÃO BILATERAL – RESPONSABILIDADE OBJETIVA – ARTIGO 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – PRESCINDIBILIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DE CULPA – DANO E NEXO CAUSAL CONFIGURADOS – DEVER DE RESSARCIR

Vistos, relatados e discutidos estes autos de apelação cível n. 03.019568-8, da Comarca de Joinville (2a. Vara Cível), em que é apelante Soil Serviços Técnicos e Consultoria S/C Ltda., sendo apelado Acácio Irineu Klemke:

ACORDAM, em Primeira Câmara de Direito Civil, por votação majoritária, negar provimento ao recurso.

Custas na forma da lei.

I – RELATÓRIO:

Trata-se de apelação cível interposta por Soil Serviços Técnicos e Consultoria S/C Ltda. objetivando a reforma da sentença que, nos autos da ação de responsabilidade civil por furto de veículo nº 038.99.023522-7, a condenou ao ressarcimento de R$ 8.500,00 (oito mil e quinhentos reais) ao autor/apelado Acácio Irineu Klemke, em razão do furto do veículo deste em estacionamento controlado por aquela.

Em seu arrazoado, a apelante aduz ser permissionária do município de Joinville para prestar serviços de parqueamento das vias públicas (implantação, manutenção, e operacionalização do sistema de estacionamento rotativo Zona Azul), sendo que o Termo de Permissão não abrange qualquer sorte de dever de vigilância ou guarda dos veículos. Esclarece que o preço cobrado pelo tíquete de Zona Azul remunera tão somente a permissão de uso do bem público, isto é, a viabilização da rotatividade dos estacionamentos de uso comum.

Argumenta que a sua imputação no dever de guarda e vigilância dos veículos representa desvio de atribuição de atividade, até mesmo pelo preço cobrado, cuja quantia serve apenas à concretização daquelas atividades já mencionadas.

Finaliza alegando a inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor ao caso – uma vez que não há, na hipótese, prestação de qualquer serviço – e pugnando pela reforma do decisum de primeiro grau.

Resposta às fls. 116/127.

Conclusos, os autos ascenderam a esta Egrégia Corte.

É o relatório.

II – VOTO:

Não prospera do recurso interposto. Como bem consignado na respeitável sentença de primeiro grau, que se adota como razão de decidir, a apelante é, sim, responsável pelos danos causados a terceiros nos estacionamentos sob seu controle. Fundamenta-se.

Primeiramente, cumpre esclarecer que, optando o Poder Público pela cobrança de remuneração de estacionamentos em vias públicas de uso comum do povo, tem o dever (ou o tem quem lhe faça as vezes) de vigiá-los, com responsabilidade por danos ali ocorridos.


Isto porque tal cobrança, embora se preste a garantir a rotatividade de veículos nestes locais, restringe o direito fundamental de ir, vir e permanecer, garantido pelo artigo 5º, inciso XV, da Constituição Federal, ao impor aos cidadãos a obrigação de arcar com determinado preço para terem a permissão de estacionar seus automóveis nas vias públicas.

E como a cada obrigação deve corresponder um direito, o Poder Público, ou aquele que lhe faz as vezes, porque aufere vantagem econômica, deve suportar um ônus correspondente.

É o que destaca o eminente Juiz de Direito de São Paulo, Dr. Leonel Carlos da Costa, em artigo sobre o tema, publicado na Revista de Direito Administrativo Aplicado, nº 19 (outubro/novembro de 1998):

“No caso das vias e logradouros públicos, convém lembrar que tais são bens públicos de uso comum do povo (art. 66, I, do CC) e, portanto, sujeitos à proteção pela guarda municipal.

“Não é justo, pois, que o particular pague pelo estacionamento em ‘zona azul’, na via pública, sob pena de multa pela fiscalização (constantemente mantida), pague as contribuições de melhoria municipais, e, ainda, quando tem seu veículo furtado, ou danificado no referido estacionamento, fique sem ressarcimento, quando o Município não vigiou a guarda do veículo.

“É máxima jurídica que a todo direito corresponde uma obrigação e quem aufere vantagem deve suportar o ônus de sua atividade. Configura-se situação de injusta vantagem do Poder Público, contrariando a tendência já incorporada em nosso sistema (como acima foi mostrado), a exploração de estacionamento remunerado, com isenção de qualquer responsabilidade por prejuízos que os usuários ou seus veículos venham a sofrer, principalmente pela culpa in vigilando. Possui o município, como é caso de São Paulo, uma Guarda Municipal e existindo a fiscalização da CET, empresa municipal exploradora da ‘zona azul’, não há escusa para se deixar de ressarcir, quando estes se fazem presentes para multar e engordar as burras do Estado, mas ausentes para garantir a fruição da utilidade disponível a título oneroso.” (COSTA, Leonel Carlos. Da responsabilidade do Município por danos em veículos em estacionamentos ‘zona azul’. Genesis: Revista de Direito Administrativo Aplicado. Nº 19, outubro/dezembro 1998).

Não se venha, doutro lado, dizer que a vantagem auferida pelo Estado, ou no caso, pela permissionária, é transferida à sociedade de outras formas indiretas porque não se trata de tributo, mas sim de preço público conforme pacíficas doutrina e jurisprudência. Como tal, deve trazer uma contrapartida direta e correspondente.

Feito este esclarecimento inicial, tem-se que a apelante — na condição de empresa permissionária de serviço público — faz as vezes do Estado, tendo transferida para si toda a responsabilidade inicialmente atribuída àquele. Isto é o que se dessome da leitura do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal e da cláusula nona do Termo de Permissão de fls. 45/49, que assim dispõe:

“Cláusula nona: O Município exercerá ampla fiscalização dos serviços permissionados, o que em nenhuma hipótese eximirá a Permissionária das responsabilidades fixadas pelo Código Civil e Penal.”

Ademais, analisando-se o Termo supra mencionado, infere-se que se trata de permissão da modalidade bilateral (art. 175, CF), seja porque trata de serviço púbico stricto sensu, seja porque tem prazo determinado, seja porque delegada mediante licitação.

Desta forma, porque tem como objeto a prestação de serviço público, a responsabilidade da empresa permissionária, diferentemente do que ocorre com as permissões em geral, é aquela prevista no artigo 37, § 6º da Constituição Federal, ou seja, a objetiva.

Neste sentido, leciona Luiz Antônio Rolim em obra recentemente publicada:

“O art. 175, in fine, da CF determina que o objeto da permissão bilateral é a prestação de serviço público, e não de atividade de interesse público. Assim sendo, a responsabilização civil dos permissionários de serviço público pelos danos causados a terceiros será a consubstanciada no § 6º do art. 37 da Lei Magna, ou seja, a responsabilidade objetiva ou responsabilidade sem culpa, na modalidade risco administrativo. Dessa forma, esses permissionários respondem direta e objetivamente pelos danos que seus agentes ou prepostos, nessa qualidade, vierem a causar a terceiros. Nesses casos, a vítima não precisará provar a culpa ou dolo de quem quer seja, bastando somente fazer prova da ocorrência do dano e do nexo causal entre ele e a autoria do evento lesivo.” (Rolim, Luiz Antônio. A administração indireta, as concessonárias e permissionárias em juízo. São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2004).

Afigura-se, em conclusão, que os elementos capazes de ensejar a responsabilidade civil da apelante acham-se presentes: o dano evidenciou-se pelo furto do veículo; o nexo causal pelo fato de referido bem estar estacionado em área sujeita a seu controle. Configurados, assim, o dano e o nexo causal, impositivo responsabilizar a apelante.


A jurisprudência orienta-se neste mesmo sentido:

“INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS DECORRENTES DE SERVIDÃO ADMINISTRATIVA. PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO QUE EXERCE SERVIÇO PÚBLICO DE FORNECIMENTO DE ÁGUA. INCIDÊNCIA DE PRECEITOS CONCERNENTES À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA QUANTO AO DEVER DE INDENIZAR.

“Tratando-se a CASAN de pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços públicos, aplicável a teoria da responsabilidade objetiva, pela qual o direito à indenização independe da demonstração de culpa.” (ACV nº 2002.015164-0, da Capital, rel. Jorge Schaefer Martins)

“APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO – RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA – INEXISTÊNCIA DE CULPA E SINALIZAÇÃO EM CONFORMIDADE COM O CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO – IRRELEVÂNCIA – NEXO CAUSAL EVIDENCIADO – TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO – INTELIGÊNCIA DO ART. 37, § 6º, DA CF

“A responsabilidade civil da empresa concessionária de serviço público é objetiva, eis que fulcrada na teoria do risco administrativo, consubstanciada no art. 37, § 6º, da CF e corroborada pela doutrina e jurisprudência, independentemente de culpa, bastando para caracterizá-la o nexo causal entre a atividade desempenhada pela empresa e o dano causado ao particular.” (ACV nº 02.026942-0, de Blumenau, rel. Des. Wilson Augusto do Nascimento)

De outro norte, ainda que se adotasse posicionamento diverso – como faz parcela da jurisprudência – e se entendesse necessária a comprovação de culpa, esta resta plenamente configurada.

É que sendo inerente ao serviço público de estacionamento rotativo a vigilância dos veículos que ali se encontram, a prova de que a fiscalização não foi feita a contento decorre do simples fato de haver ocorrido o furto. Portanto, ausente a fiscalização que cumpria à apelante realizar, resta configurada – diante de sua omissão culposa – a culpa in vigilando.

Finalmente, no que toca à aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, esta restou muito bem fundamentada na sentença hostilizada, que a colocou nos seguintes termos:

“De início, para a análise da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, se faz necessária a configuração da relação de consumo entre a empresa permissionária e o usuário dos serviços por ela prestados.

“Para fins de caracterizar a relação de consumo, o artigo 3º do Diploma Legal em comento, conceitua serviço como: ‘a atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração’. A empresa Soil Park passou a oferecer à comunidade Joinvillense, a partir do termo de permissão obtido junto ao Município, após o procedimento licitatório, um serviço público, mediante pagamento, consoante atesta sua peça contestatória. Tal circunstância, por si só, a enquadra no citado artigo, exigindo a aplicabilidade do CDC ao caso vertente.

“Ademais, segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, a remuneração das empresas permissionárias ocorre mediante o pagamento de tarifa, circunstância que corrobora com a aplicabilidade da Lei 8.078/90 (CDC), com todos os seus consectários.

“Tarifa, ou simplesmente preço, outra coisa não é senão a contraprestação paga pelos serviços efetivamente prestados e fruídos pelo particular que o contratou, em razão de um ato de vontade. Não se confunde com o conceito de taxa, que somente alberga as hipóteses constitucionalmente previstas, possuindo natureza tributária e, não admitindo, por conseguinte, a aplicação do CDC.

“O serviço público prestado pela empresa permissionária possibilita a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, posto que a contraprestação para a cobrança dos valores referentes ao tarifado pelo estacionamento consiste na fiscalização dos veículos deixados sob sua guarda, nada obstante as alegações de que a responsabilidade da permissionária consiste apenas no controle do tempo de parqueamento.

“(…)

“Ressalta-se que a partir do disposto no Código de Defesa do Consumidor, tanto os estacionamentos privados quanto os controlados por empresas permissionárias, ensejam o dever de indenizar uma vez verificado o dano e o nexo de causalidade.” (fls. 87/90)

Posto isto, satisfeitos os requisitos ensejadores da responsabilidade civil, seja sob o prisma objetivo, seja sob o subjetivo, nega-se provimento ao recurso.

III – DECISÃO:

Nos termos do voto relator, a Câmara, após debates, decidiu, por maioria de votos, negar provimento ao recurso, vencido o Desembargador Dionízio Jenczak.

Do julgamento presidido pelo Relator designado, participaram, a Exma. Sra. Desembargadora Salete Silva Sommariva e o Exmo. Sr. Desembargador Dionízio Jenczak.

Florianópolis, 23 de novembro de 2004.

Des. Orli Rodrigues

PRESIDENTE E RELATOR DESIGNADO


Declaração de voto vencido do Exmo. Sr. Des. Dionizio Jenczak:

Ousei divergir da douta maioria pelos seguintes fundamentos:

Trata-se de ação de indenização por furto de veículo ocorrido no centro da cidade de Joinville, em área de estacionamento controlada pela empresa Soil Serviços e Consultoria S/C Ltda., na conhecida ‘Área Azul’.

Insurge-se a ora apelante, por entender descabida a condenação imposta em razão de não haver comprovação do liame etiológico, bem como ausência do dever legal ou contratual de indenizar o furto ocorrido.

A bem-lançada sentença não está a merecer qualquer reparo, porquanto rechaçou fundamentadamente todas as teses expendidas pela ré.

“2.1 – Do contrato de permissão

As alegações da empresa requerida no tocante à isenção da responsabilidade não merecem acolhida, vejamos.

A partir do disposto no art. 37, §6º, da CF foi instituída a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado prestadoras de serviço público. Com o advento da teoria objetiva atribui a Constituição Federal a responsabilização daqueles que, no exercício de atividade pública, causarem danos a terceiros, independentemente de dolo ou culpa.

Verifica-se, por conseguinte, a responsabilidade das empresas permissionárias indenizarem por danos causados, em decorrência de ato comissivo ou omissivo, praticado por seus agentes quando do exercício da função pública.

Devidamente caracterizada a existência da responsabilidade civil das empresas permissionárias, vejamos ainda a doutrina de Celso Antonio Bandeira Melo (in Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros. 13 ed. 2000): ‘O Estado, em princípio, valer-se-ia da permissão justamente quando não desejasse constituir o particular em direitos contra ele, mas em face de terceiros’.

Desta feita, o contrato de permissão não transfere a titularidade do serviço público à empresa permissionária, transferindo a esta tão somente a prestação dos serviços que lhe foram atribuídos pelo Estado, mediante o pagamento de uma tarifa pelo particular quando de sua utilização.

Aduz a ré ser responsável pela implementação, manutenção e operacionalização da rotatividade do estacionamento público localizado nas áreas centrais da região de Joinville. Dita atividade, entretanto, não se esgota a partir da venda do cartão, em razão de não ser um serviço prestado com fins lucrativos, albergando, assim, a atividade fiscalizatória, dentre os serviços colocados à disposição do cidadão.

Não se pode esquecer que seus funcionários, na qualidade de ‘fiscais’ e vendedores dos cartões de controle de horários, circulam permanentemente em zonas previamente estabelecidas pela permissionária, seja para efetuar o controle, como também para aplicar a ‘multa’ devida, caso algum usuário ultrapasse o tempo permitido ou estacione na ‘zona azul’ sem o devido cartão adquirido e corretamente preenchido.

Ora, seria ingênuo, e até mesmo jocoso, imaginarmos que esses prepostos limitam-se apenas a essas poucas atividades cotidianas, descomprometidas, portanto, de qualquer dever de guarda ou vigilância.

Sem dúvida, o usuário-consumidor ao adquirir um cartão de estacionamento ‘zona azul’ e ao parquejar o seu veículo nos termos contratados, assim o faz com a certeza de que seu automóvel está sendo cabalmente fiscalizado pelos prepostos da permissionária do serviço público, ou, em outras palavras, que este veículo durante o período compreendido na cartela, estará sob a vigilância dos prepostos da requerida.

2.2 – Da aplicação do Código de Defesa do Consumidor

De início, para a análise da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, se faz necessária a configuração da relação de consumo entre a empresa permissionária e o usuário dos serviços por ela prestados.

Para fins de caracterizar a relação de consumo, o artigo 3º do Diploma Legal em comento, conceitua serviço como: ‘a atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração’. A empresa Soil Park passou a oferecer à comunidade Joinvillense, a partir do termo de permissão obtido junto ao Município, após procedimento licitatório, um serviço público, mediante pagamento, consoante atesta a sua peça contestatória. Tal circunstância, por si só, a enquadra no disposto no citado artigo, exigindo a aplicabilidade do CDC ao caso vertente.

Ademais, segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, a remuneração das empresas permissionárias ocorre mediante o pagamento de tarifa, circunstância que corrobora a aplicabilidade da Lei 8.078/90 (CDC), com todos os seus consectários.

Tarifa ou simplesmente preço, outra coisa não é senão a contraprestação paga pelos serviços efetivamente prestados e fruídos pelo particular que o contratou, em razão de um ato de vontade. Não se confunde com o conceito de taxa, que somente alberga as hipóteses constitucionalmente previstas, possuindo natureza tributária e, não admitindo, por conseguinte, a aplicação do CDC.


O serviço público prestado pela empresa permissionária possibilita a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, posto que a contraprestação para a cobrança dos valores referentes ao tarifado pelo estacionamento consiste na fiscalização dos veículos deixados sob sua guarda, nada obstante as alegações de que a responsabilidade da permissionária consiste apenas no controle do tempo de parqueamento.

Nos termos do artigo 22 da Lei 8.078/90, as pessoas jurídicas de direito público, e as de direito privado prestadoras de serviço público, podem figurar tanto no pólo ativo quanto no pólo passivo da relação de consumo, da seguinte forma:

‘Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionária, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigadas a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.’

Parágrafo único: ‘Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados.’

Nesse sentido colhem-se os seguintes julgados:

‘A remuneração do serviço de parqueamento, sob regime de preço público, é de responsabilidade da empresa permissionária, com aplicação da responsabilidade objetiva, que se distancia de simples falha de segurança pública, respondendo pela ocorrência de furto de automotor em estacionamento destinado a esse fim. O serviço de estacionamento prestado por empresa permissionária não se esgota na venda do talão, mas se estende à garantia de rotatividade e à fiscalização do sistema. A cláusula de ‘não-indenizar’, constante dos cartões de estacionamento, é tida como ineficaz, e, por conseguinte, nula de pleno direito, ante a legislação de proteção ao consumidor. A comprovação de furto de veículo se faz por registro policial e pelo controle de rotatividade mantido pela empresa permissionária, não se exigindo prova escorreita de dúvida, o que levaria a impossibilitar tal indenização’. (TAMG, AC 254.187-7, 3ª C.Civ. Rel. Juiz Dorival G. Pereira, DJMG de 23.09.1998).’

‘A operadora de área de parqueamento concedida pelo município tem a obrigação de reparar o dano decorrente de furto de veículo ali estacionado, dever que advém do descumprimento do contrato independentemente da indagação de culpa (art. 14 do Código de Defesa do Consumidor). Se o veículo é recuperado em mau estado, em razão de avarias, impõe-se sua completa recuperação, independentemente de seu valor de mercado, pois o lesado não está obrigado a aceitar sua substituição por outro. Recursos desprovidos (TJRJ – AC 1.689/99, Rel. Des. Carlos Raymundo, 5ª C.Civ. j. em 16/03/99).

Considerando-se ainda a aplicabilidade do disposto no CDC à prestação de serviço público por empresa permissionária, a Súmula 130 do STJ, dispõe que: ‘A empresa responde, perante o cliente, pela reparação do dano ou furto de veículo ocorrido em seu estabelecimento.’

Ao estacionar seu veículo em local pago, o consumidor busca, além da qualidade no préstimo dos serviços, uma contraprestação correspondente à que dispõe nos estacionamentos particulares, qual seja, a segurança contra quaisquer incovenientes.

Ressalta-se que a partir do disposto no Código de Defesa do Consumidor, tanto os estacionamentos privados quanto os controlados por empresas permissionárias, ensejam o dever de indenizar uma vez verificado o dano e o nexo de causalidade.

[…]

2.4 – Do nexo de causalidade

Demonstra o autor a existência do nexo de causalidade entre a atitude omissiva da requerida e o furto do veículo, através do Boletim de Ocorrência às fls. 10.

Nesse sentido, colhem-se os seguintes entendimentos jurisprudenciais:

‘O boletim de ocorrência de acidente de trânsito, elaborado por agentes da administração pública, goza de presunção juris tantum de veracidade e só pode ser abalado por melhor prova em sentido contrário’ (AC 98.010409-2, de Blumenau, Rel. Des. Nilton Macedo Machado).

É de se salientar que o consumidor não recebe qualquer comprovante dos serviços que lhe foram prestados, o que, por si só, dificulta a prova de encontrar-se o veículo no local do sinistro no momento do furto. Entretanto, a empresa permissionária dispõe de todos os controles referentes ao desenvolvimento de suas atividades. Ademais, estamos diante de responsabilidade civil objetiva, cujo ônus da prova da inexistência da culpa recai exclusivamente sobre o requerido.

Desta feita, diante da presunção de veracidade do contido no Boletim de Ocorrência, caberia à ré a comprovação de fatos impeditivos, extintivos ou modificativos do autor, consoante artigo 333 do Código de Processo Civil (fls. 85 a 91)

Diante dos argumentos supramencionados, divergi do entendimento dos doutos Desembargadores integrantes desta Colenda Câmara.

Florianópolis, 23 de novembro de 2004.

DIONÍZIO JENCZAK

Convocado

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