Sanatório geral

Ideologia pequeno-burguesa leva o Judiciário ao caos

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25 de novembro de 2005, 16h14

Em 2002 a esquerda chegou ao poder. Refaço a assertiva: em 2003 a ideologia pequeno-burguesa chegou ao poder e se instalou nos palácios, ávida de charutos, de fermentados e destilados, sem deixar do futebolzinho de fim de semana, churrasco, caipirinha e palito no dente.

O pensamento pequeno-burguês contém uma espécie de bipolaridade psicossocial infanto-esquizóide, à maneira de Melanie Klein. Só há o absoluto. Num extremo: autoritário, centralizador, moralista, revanchista e justiceiro. No outro: omisso, covarde, reverente, bajulador e submisso.

Conseqüência: o antropofagismo explícito que estamos assistindo no Brasil. Foi a pior desgraça política que poderia acontecer à Nação. Sob a farsa de um pensamento progressista essa ideologia instalou no País caos jurídico-constitucional, jamais visto em toda a nossa história republicana. Na há mais nenhuma coerência jurídica, não há mais apego à lei, à hermenêutica, muito menos interesse pelo bem comum. O que há é o “achismo jurídico”, holofotes e poder.

E foi pensando em construir um superávit primário com bastante gordura para pagar os juros da dívida externa, que essa ideologia de submissão ao capital internacional promoveu reformas constitucionais estruturais, destruindo o que havia de harmonia no sistema jurídico nacional e impondo aos juízes um Conselho Nacional de Justiça e a súmula vinculante, ambas medidas explícitas de controle. E a nova lei de falências então?

A antropofagia pequeno-burguesa no Judiciário, contudo, já havia se instalado bem antes, em São Paulo, com a Associação Juízes para a Democracia, uma variante umbilical importada da sua equivalente espanhola. Defendia a AJD, desde então, o juiz empregado do Estado, o juiz prestador de serviço público, o esvaziamento da competência da Justiça estadual, a benevolência irresponsável com o réu dentro do processo penal, a extrema generosidade com facínoras condenados, a falsa acusação irresponsável de corporativismo, de falta de transparência e por aí afora. Era tudo que o capital internacional precisava: a justificativa “democrática” e centralizadora para o controle do judiciário.

E foi então que o pensamento pequeno-burguês, vencedor no executivo e no legislativo, percebeu que o discurso e o momento eram propícios para que os seus líderes chegassem às alturas, como de fato chegaram e passassem a controlar tudo, a unificar tudo, de tal forma que sequer o pacto federativo está sendo respeitado pelo Supremo Tribunal Federal. A AJD comemorou eufórica as palavras do Ministro Márcio Thomaz Bastos quando disse que a sua missão era “democratizar” o Judiciário, instalando no Brasil um Conselho Nacional de Justiça.

Aliás, esse discurso pequeno-burguês de democratização e transparência no Judiciário se fez recidivo nas palavras do atual presidente da AJD, Marcelo Semer (Folha de S. Paulo, 21 de novembro de 2005, A3): “Exatamente porque não passa pelo crivo do voto popular, impõe-se ao Judiciário uma administração transparente, de tal modo que permita ao cidadão o controle de seu funcionamento. O enclausuramento estimulou a demanda social por um órgão externo de controle”. Que belo discurso para um juiz de direito! O nítido exemplo de autoritarismo e subserviência. Ele necessita de um “paizão” externo para combater por ele aquilo que ele poderia perfeitamente ter feito diretamente, com coragem, no seu Estado, com os meios constitucionais e jurídicos postos à sua disposição. Mas não. É melhor se esconder atrás do célebre subterfúgio demagógico “em nome do povo”.

A AJD, sem dúvida, foi e é a co-responsável perante a história do Brasil e de São Paulo pela instalação do CNJ no Brasil. Mas a atual AMB e a Anamatra não ficam atrás. A primeira, incentivada pela segunda, vai ao CNJ para coadjuvar os comensais antropófagos na partilha do prato pronto chamado Magistratura dos Estados.

Num primeiro momento a AMB faz um jogo de cena intentando ação direta de inconstitucionalidade contra o CNJ, mas rapidamente se conforma com a decisão do Supremo Tribunal Federal expressa no respeitável voto vencedor do ministro paulista Antonio Cezar Peluso que discorreu sobre o tema em alentadas 76 páginas e que, ao meu ver, apresentam contradições constitucionais que justificavam, no interesse da democracia republicana federativa brasileira, necessariamente, embargos declaratórios.

Aceitou, entretanto, a AMB resignada e convenientemente a decisão e logo partiu em desembestada carreira em direção ao pote de mel Conselho Nacional de Justiça. Passou a representar no CNJ contra os tribunais estaduais em temas específicos de legislação estadual como nepotismo, promoção de juízes, etc. Não contente em obter resoluções inconstitucionais do CNJ reclamaram com veemência ao CNJ contra os tribunais que se dispunham a não cumpri-las.

Foi além. Promoveu a cizânia entre os juízes dos vários ramos jurisdicionais, optando por privilegiar a Justiça Federal. Criou uma despropositada campanha contra o que chamou de “juridiquês” e ainda por cima contratou uma ilustre socióloga, especialista em judiciário – não sei bem dizer que especialidade social é esta -, mas, enfim, para fazer uma desastrada pesquisa sobre o que pensam os juízes dos advogados. A reação dos advogados foi imediata e justa, por sinal.

A AMB, assim como a AJD, insistem nessas questões menores que rendem mercado político e hoje mesmo, leio que lá vem a AMB com nova campanha nacional contra nepotismo, promoção de juízes, transparência e democracia no Judiciário, reutilizando politicamente os mesmos gastos argumentos. O que isso significa em termos concretos?

Resulta que essa antropofagia maluca, bem ao gosto de uma mídia instrumentalizada pela grande ideologia do capital internacional, é a aliada eficaz para sedimentar a anomia e alienação geral, ou como diz o poeta Chico Buarque, para consolidar o sanatório geral, desviando a opinião pública dos reais e graves problemas que afetam o Judiciário nacional, assim como afetam a própria organização social brasileira.

Desmoralizou-se o Poder Judiciário, em especial, desmoralizou-se a Justiça Estadual, corrompeu-se o ensino jurídico, defendeu-se um igualitarismo por baixo, criou-se uma visão mentirosa e falsa de proteção aos “humilhados e ofendidos”, tudo em nome do “centralismo democrático”. Alguém duvida do estado caótico do sistema jurídico nacional levado à eficácia por essa malsinada ideologia pequeno-burguesa revanchista, onde domina o “achismo constitucionalista?”

As elites intelectual e artística do País unem-se nessa cruzada progressista. Nunca se falou tanto em ética, democracia, república e proteção dos menos favorecidos e, no entanto, ninguém fala nada a respeito dos lucros estratosféricos dos bancos. Eufemismos e mentiras. Saem os juristas de seus gabinetes para escrever, no atacado, sobre ética, sobre direito ambiental, seguro social, democracia popular, administração participativa e, tão a gosto da pequena-burguesia, usam e abusam da palavra república, mas no varejo agem da forma mais vil e solerte, bajulando o poder para obterem poder. É a vaidade pequeno-burguesa dos títulos e pompas.

E assim o caldo cultural ideológico pequeno-burguês foi cozinhado e servido de tal maneira que a questão essencial e fundamental para o país permaneça devidamente camuflada e escondida aos olhos de todos: a distribuição de renda, emprego, educação, saúde e segurança social.

É a célebre tese de Lênin, do “centralismo democrático”, implementado por Stalin e agora reaplicada pelo vampirismo do capital financeiro internacional nos países de segundo escalão. Um pensamento único para todo o Brasil: o da capitulação e servilismo pequeno-burguês ao grande chefe oculto, executado no legislativo pelas malas de dinheiro e no judiciário por meio do CNJ. Em outros tempos seria inimaginável que um simples órgão administrativo como o CNJ fosse dotado de poderes fantásticos de legislar e mandar no Poder Judiciário nacional por meio de simples e prosaicas resoluções, sob os aplausos desse grupo de pequeno-burgueses que tomou conta de tudo e de todos.

O último espaço onde poderia ainda se falar em liberdade e autonomia de agir, pensar e decidir está paulatinamente sendo desmoralizado: as justiças estaduais. Aí está o golpe branco de um CNJ e de uma súmula vinculante. O pacote está amarrado e bem amarrado. O controle uniformizado do Estado por meio de uma pequena-burguesia que não enxerga além do seu próprio umbigo, sustentada por uma elite intelectual que escreve coisas belíssimas, mas com indisfarçável má-fé.

O exemplo está na afirmação de que o CNJ apenas é um órgão controlador administrativo quando todos nós sabemos que um poder que não tem autonomia administrativa e financeira não é poder coisa alguma. Basta a existência de um CNJ para intimidar, principalmente os novos juízes, aqueles que ingressam na carreira em busca de status e poder, ou então, um CNJ que conta com a conivência de velhos desembargadores oligárquicos estaduais chegando um deles a afirmar publicamente que o Pacto Federativo é uma balela.

Encerro com a emblemática pérola jurídica do ilustre jurista Ives Gandra Martins no seu artigo “Os bancos e o direito do consumidor” (Folha S. Paulo, 15 de novembro de 2005, A3): “… para a estabilidade da moeda, o controle da inflação e a segurança jurídica, a definição da política monetária e cambial deve ser de exclusiva competência do Banco Central, único a determinar as taxas de juros básicas para o sistema financeiro, não podendo tais taxas ficarem sujeitas à interpretação subjetiva de cada membro do Poder Judiciário brasileiro”. Aliás, gostaria que o brilhante jurista respondesse se existe interpretação de juiz que não seja subjetiva.

Eis a união perfeita: de um lado o pensamento pequeno burguês a espalhar incensos “democráticos centralizadores”, esfumaçando bem o ambiente nacional e de outro as elites incentivando a fumarada para na confusão ajeitar as coisas como querem e quando querem. Parabéns a AJD, a AMB e a Anamatra pelo serviço prestado ao Judiciário estadual. Ingressamos na curva acentuada de nossa decadência, deglutidos pelo antropofagismo pequeno- burguês associativo e oficial.

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