Aula de Direito

Leia o voto de Celso de Mello no caso de José Dirceu

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25 de novembro de 2005, 21h44

Os sucessivos equívocos das comissões parlamentares que forçam suas vítimas a se socorrerem no Supremo Tribunal Federal, mostram o quanto são precárias as noções de direito do legislador brasileiro. Não por acaso, a grande maioria das leis levadas ao exame do STF se descobrem inconstitucionais.

Em caso aparentemente trivial, quando se subverteu o direito de defesa, negando ao acusado (deputado José Dirceu) o direito de contraditar testemunha — que acabou se tornando a principal arma da acusação — o presidente da Comissão de Ética da Câmara deu-se por autorizado a reeditar as leis brasileiras e a ensinar os ministros do STF como se deve ler a Constituição.

A boa resposta a esse show de mídia, que parece ter as portas fechadas ao Direito, foi dada por meio do voto do ministro Celso de Mello, que se manifestou pela produção de contraprova ao depoimento da empresária Kátia Rabello (dona do Banco Rural), prestado depois da inquirição das testemunhas de defesa.

O voto coincidiu com o do ministro Marco Aurélio e, embora com base nos mesmos fundamentos, distinguiu-se do voto do ministro Cezar Peluso, que ofereceu outra solução. Para ele, não seria necessária a contraprova, mas tão somente a supressão do depoimento com a exclusão de qualquer referência ao depoimento no relatório. A defesa poderá recorrer contra esse entendimento.

A manifestação que se segue, em plenário, foi acrescida de tantos outros argumentos gerados pelos apartes do ministro Carlos Britto e outras intervenções no curso de sua apresentação.

Leia o voto do ministro Celso de Mello

23/11/2005 TRIBUNAL PLENO

MANDADO DE SEGURANÇA 25.647-8 DISTRITO FEDERAL

V O T O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Conheço, preliminarmente, da presente ação de mandado de segurança, pois o ora impetrante alega que órgãos da Câmara dos Deputados teriam desrespeitado cláusulas constitucionais no processo de cassação do mandato legislativo de que é titular, ferindo-lhe direitos subjetivos fundados na Constituição da República, notadamente a garantia do “due process of law” (CF, art. 5º, LV).

A existência de controvérsia jurídica, impregnada de relevo constitucional, legitima o exercício, por esta Suprema Corte, de sua atividade de controle, que se revela ínsita ao âmbito de competência que a própria Carta Política lhe outorgou.

Isso significa reconhecer, considerados os fundamentos que dão suporte a esta impetração, que a prática do “judicial review” – ao contrário do que muitos erroneamente supõem e afirmam – não pode ser considerada um gesto de indevida interferência jurisdicional na esfera orgânica do Poder Legislativo.

É preciso insistir na asserção de que a jurisdição constitucional qualifica-se como importante fator de proteção dos direitos e garantias individuais (e das liberdades públicas em geral), qualquer que seja o órgão estatal de que emane o ato alegadamente transgressor do texto da Constituição da República.


A discrição dos corpos legislativos não se legitima quando exercida em desarmonia com os limites estabelecidos pelo estatuto constitucional, eis que as atividades dos Poderes do Estado sofrem os rígidos condicionamentos que lhes impõe a Constituição da República, especialmente nas hipóteses de aplicação de sanção punitiva, como a decretação da perda do mandato parlamentar.

Não custa rememorar, neste ponto, que tal entendimento – plenamente legitimado pelos princípios que informam o Estado Democrático de Direito e que regem, em nosso sistema institucional, as relações entre os Poderes da República – nada mais representa senão um expressivo reflexo histórico da prática jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal (RTJ 142/88-89 – RTJ 167/792-793 – RTJ 175/253 – RTJ 176/718, v.g.).

Essa visão é também compartilhada pelo magistério da doutrina (PEDRO LESSA, “Do Poder Judiciário”, p. 65/66, 1915, Livraria Francisco Alves; CASTRO NUNES, “Do Mandado de Segurança”, p. 223, item n. 103, 5ª ed., 1956, Forense; PONTES DE MIRANDA, “Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969, tomo III/644, 3ª ed., 1987, Forense; JOSÉ ELAERES MARQUES TEIXEIRA, “A Doutrina das Questões Políticas no Supremo Tribunal Federal”, 2005, Fabris Editor; DERLY BARRETO E SILVA FILHO, “Controle dos Atos Parlamentares pelo Poder Judiciário”, 2003, Malheiros; OSCAR VILHENA VIEIRA, “Supremo Tribunal Federal: Jurisprudência Política”, 2ª ed., 2002, Malheiros, v.g.), cuja orientação, no tema, tem sempre ressaltado, na linha de diversas decisões desta Corte, que “O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República” (RTJ 173/806, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

É imperioso assinalar, aqui e agora, em face da alta missão de que se acha investido o Supremo Tribunal Federal, que os desvios jurídico-constitucionais eventualmente praticados pelas Casas legislativas – mesmo quando surgidos no contexto de processos políticos – não se mostram imunes à fiscalização judicial desta Suprema Corte, como se a autoridade e a força normativa da Constituição e das leis da República pudessem, absurdamente, ser neutralizadas por estatutos meramente regimentais ou pelo suposto caráter “interna corporisdo ato transgressor de direitos e garantias assegurados pela própria Lei Fundamental do Estado.

Cumpre ter presente, por tal razão, ante a impressionante atualidade de sua observação, a advertência de RUI BARBOSA, em discurso parlamentar que proferiu, como Senador da República, em 29 de dezembro de 1914, em resposta ao Senador gaúcho Pinheiro Machado, em que bem definiu (e justificou), já sob a égide da Constituição republicana de 1891, a plena sujeição dos atos do Congresso Nacional (e, também, do Poder Executivo) ao controle jurisdicional do Supremo Tribunal Federal (“Obras Completas de Rui Barbosa”, vol. XLI, tomo III, p. 255/261, Fundação Casa de Rui Barbosa):

A Justiça, como a nossa Constituição a criou no art. 59, é quem traça definitivamente aos dois podêres políticos as suas órbitas respectivas. (…).

No art. 59, é categórica a letra constitucional, estatuindo de acôrdo com a praxe geral (…), que o Supremo Tribunal conhecerá, em última instância, das causas em que se contestar a validade, assim dos atos do Poder Executivo, como do Poder Legislativo perante a Constituição. Por esta disposição constitucional, a nossa justiça suprema é quem define quando os atos do Poder Legislativo estão dentro ou fora da Constituição, isto é, quando os atos de cada um dêsses dois podêres se acham dentro da órbita que a cada um dêsses dois podêres a Constituição traçou.


Êle é o poder regulador, não conhecendo do assunto por medida geral, por deliberação ampla, resolvendo apenas dos casos submetidos ao seu julgamento, mediante a ação regular; mas quando aí decide, julgando em última instância, não há, sob qualquer pretexto dêste mundo, recurso para outro qualquer poder constituído.

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Bem conheço o pretexto. A evasiva das causas políticas é um princípio verdadeiro, quando entendido como se deve entender. Indubitàvelmente a justiça não pode conhecer dos casos que forem exclusivos e absolutamente políticos, mas a autoridade competente para definir quais são os casos políticos e casos não políticos é justamente essa justiça suprema, cujas sentenças agora se contestam. (…).

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Em tôdas as organizações políticas ou judiciais há sempre uma autoridade extrema para errar em último lugar.

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Acaso V. Ex.as poderiam convir nessa infalibilidade que agora se arroga de poder qualquer dêsses ramos da administração pública, o Legislativo ou o Executivo, dizer quando erra e quando acerta o Supremo Tribunal Federal?

O Supremo Tribunal Federal, Senhores, não sendo infalível, pode errar, mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de dizer alguma cousa que deva ser considerada como êrro ou como verdade.” (grifei)

Em uma palavra, Senhor Presidente: a índole política dos atos parlamentares não basta, só por si, para subtraí-los à esfera de controle jurisdicional, eis que sempre caberá, a esta Suprema Corte, mediante formal provocação da parte lesada, o exercício da jurisdição constitucional – que lhe é inerente -, nos casos em que se alegue ofensa, atual ou iminente, a um direito individual, pois nenhum Poder da República tem legitimidade para desrespeitar a Constituição ou para ferir direitos públicos e privados de seus cidadãos.

Nem se diga, portanto, na perspectiva do caso em exame, que a atuação do Supremo Tribunal Federal, nas hipóteses de lesão a direitos subjetivos amparados pelo ordenamento jurídico do Estado, configuraria intervenção ilegítima do Poder Judiciário na esfera de atuação do Congresso Nacional.

Eventuais divergências na interpretação do ordenamento positivo não traduzem nem configuram situação de conflito institucional, especialmente porque, acima de qualquer dissídio, situa-se a autoridade da Constituição e das leis da República.

Isso significa, na fórmula política do regime democrático, que nenhum dos Poderes da República está acima da Constituição e das leis. Nenhum órgão do Estado – situe-se ele no Poder Judiciário, no Poder Executivo ou no Poder Legislativoé imune ao império das leis e à força hierárquico-normativa da Constituição.

Assentadas tais premissas, passo a examinar a postulação cautelar ora deduzida pelo impetrante.


São diversos os fundamentos em que se apóia o presente mandado de segurança. Analisarei, no entanto, aquele que me parece revestido de maior relevo jurídico. Refiro-me à alegada inobservância, pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, da cláusula inscrita no inciso LV do art. 5º da Constituição da República, que assegura, em favor de qualquer pessoa – mesmo em sede de processos de natureza administrativa (ou, como no caso, de caráter político-administrativo) -, a garantia (insuprimível) do devido processo legal.

Não se pode desconhecer que, no processo de cassação de mandato parlamentar, existe uma evidente relação de conflituosidade que situa, em posições antagônicas (situação de polaridade conflitante), de um lado, o órgão que formula a representação (na qual se consubstancia, instrumentalmente, a imputação de fato determinante da perda de mandato), e, de outro, o congressista que sofre a acusação e que se expõe, por isso mesmo, à gravíssima possibilidade de se ver privado da função parlamentar que titulariza.

Ainda que se cuide de procedimento impregnado de forte componente político, está ele sujeito, Senhor Presidente, mais do que ao domínio de meras normas regimentais, à estrita observância das fórmulas jurídicas que regem qualquer processo – judicial ou não-judicial (CF, art. 5º, LV) – e que derivam de um complexo de direitos e prerrogativas que compõem o próprio estatuto constitucional da defesa, que representa, no contexto de nosso sistema institucional, um claro fator de limitação dos poderes do Estado.

Não custa relembrar, neste ponto, considerada a própria jurisprudência constitucional que esta Suprema Corte firmou na matéria, que ninguém pode ser privado de sua liberdade, de seus bens ou de seus direitos sem o devido processo legal, notadamente naqueles casos em que se estabelece, como sucede na espécie, uma relação de polaridade conflitante entre o Estado, de um lado, e o indivíduo, de outro.

Cumpre ter presente, bem por isso, que o Estado, em tema de restrição à esfera jurídica de qualquer cidadão, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício de sua atividade, o postulado da plenitude de defesa, pois o reconhecimento da legitimidade ético- -jurídica de qualquer medida imposta pelo Poder Público – de que resultem conseqüências gravosas no plano dos direitos e garantias individuais – exige a fiel observância do princípio do devido processo legal (CF, art. 5º, LV), consoante adverte autorizado magistério doutrinário (MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. 1/68-69, 1990, Saraiva; PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 1/176 e 180, 1989, Saraiva; JESSÉ TORRES PEREIRA JÚNIOR, “O Direito à Defesa na Constituição de 1988, p. 71/73, item n. 17, 1991, Renovar; EDGARD SILVEIRA BUENO FILHO, “O Direito à Defesa na Constituição”, p. 47/49, 1994, Saraiva; CELSO RIBEIRO BASTOS, “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 2/268-269, 1989, Saraiva; MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, “Direito Administrativo”, p. 401/402, 5ª ed., 1995, Atlas; LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, “Curso de Direito Administrativo”, p. 290 e 293/294, 2ª ed., 1995, Malheiros; HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Administrativo Brasileiro”, p. 588, 17ª ed., 1992, Malheiros, v.g.).

A jurisprudência dos Tribunais, notadamente a do Supremo Tribunal Federal, tem reafirmado a essencialidade desse princípio, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade da própria medida restritiva de direitos, revestida, ou não, de caráter punitivo (RDA 97/110 – RDA 114/142 – RDA 118/99 – RTJ 163/790, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – AI 306.626/MT, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “in Informativo/STF nº 253/2002 – RE 140.195/SC, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – RE 191.480/SC, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – RE 199.800/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, v.g.):


RESTRIÇÃO DE DIREITOS E GARANTIA DO ‘DUE PROCESS OF LAW’.

O Estado, em tema de punições disciplinares ou de restrição a direitos, qualquer que seja o destinatário de tais medidas, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício de sua atividade, o postulado da plenitude de defesa, pois o reconhecimento da legitimidade ético–jurídica de qualquer medida estatal – que importe em punição disciplinar ou em limitação de direitos – exige, ainda que se cuide de procedimento meramente administrativo (CF, art. 5º, LV), a fiel observância do princípio do devido processo legal.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade desse princípio, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos. Precedentes. Doutrina.

(RTJ 183/371-372, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Isso significa, portanto, que assiste, a qualquer pessoa, mesmo em procedimentos de índole administrativa ou de caráter político-administrativo, a prerrogativa indisponível do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, consoante prescreve a Constituição da República, em seu art. 5º, inciso LV, e reconhece o magistério jurisprudencial desta Suprema Corte:

Mandado de Segurança. (…). 3. Direito de defesa ampliado com a Constituição de 1988. Âmbito de proteção que contempla todos os processos, judiciais ou administrativos, e não se resume a um simples direito de manifestação no processo. (…). Pretensão à tutela jurídica que envolve não só o direito de manifestação e de informação, mas também o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador. 5. Os princípios do contraditório e da ampla defesa, assegurados pela Constituição, aplicam-se a todos os procedimentos administrativos. 6. O exercício pleno do contraditório não se limita à garantia de alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, mas implica a possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica. (…). Incidência da garantia do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal ao processo administrativo. (…). Presença de um componente de ética jurídica. Aplicação nas relações jurídicas de direito público. 10. Mandado de Segurança deferido para determinar observância do princípio do contraditório e da ampla defesa (CF art. 5º LV).

(RTJ 191/922, Rel. p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES, Plenogrifei)

Vê-se, pois, que o respeito efetivo à garantia constitucional do “due process of law”, ainda que se trate de procedimento político-administrativo (como o de cassação de mandato parlamentar), condiciona, de modo estrito, o exercício dos poderes de que se acha investido o Estado, sob pena de descaracterizar-se, com grave ofensa aos postulados que informam a própria concepção do Estado Democrático de Direito, a legitimidade jurídica dos atos, deliberações e resoluções emanados do Poder Público, especialmente quando tais decisões, como pode suceder na espécie, implicarem perda, em caráter punitivo, do mandato legislativo titularizado pelo congressista.

Esse entendimento – que valoriza a perspectiva constitucional que deve orientar o exame do tema em causa – tem o beneplácito do autorizado magistério doutrinário expendido pela eminente Professora ADA PELLEGRINI GRINOVER, da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (“O Processo em Evolução”, p. 82/85, itens ns. 1.3, 1.4, 2.1 e 2.2, 1996, Forense Universitária):


O coroamento do caminho evolutivo da interpretação da cláusula do ‘devido processo legal’ ocorreu, no Brasil, com a Constituição de 1988, pelo art. 5º, inc. LV, que reza:

Art. 5°, LV. Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.’

Assim, as garantias do contraditório e da ampla defesa desdobram-se hoje em três planos: a) no plano jurisdicional, em que elas passam a ser expressamente reconhecidas, diretamente como tais, para o processo penal e para o não-penal; b) no plano das acusações em geral, em que a garantia explicitamente abrange as pessoas objeto de acusação; c) no processo administrativo sempre que haja litigantes. (…).

É esta a grande inovação da Constituição de 1988.

Com efeito, as garantias do contraditório e da ampla defesa, para o processo não-penal e para os acusados em geral, em processos administrativos, já eram extraídas, pela doutrina e pela jurisprudência, dos textos constitucionais anteriores, tendo a explicitação da Lei Maior em vigor natureza didática, afeiçoada à boa técnica, sem apresentar conteúdo inovador. Mas agora a Constituição também resguarda as referidas garantias aos litigantes, em processo administrativo.

E isso não é casual nem aleatório, mas obedece à profunda transformação que a Constituição operou no tocante à função da administração pública.

Acolhendo as tendências contemporâneas do direito administrativo, tanto em sua finalidade de limitação ao poder e garantia dos direitos individuais perante o poder, como na assimilação da nova realidade do relacionamento Estado-sociedade e de abertura para o cenário sociopolítico-econômico em que se situa, a Constituição pátria de 1988 trata de parte considerável da atividade administrativa, no pressuposto de que o caráter democrático do Estado deve influir na configuração da administração, pois os princípios da democracia não podem se limitar a reger as funções legislativa e jurisdicional, mas devem também informar a função administrativa.

Nessa linha, dá-se grande ênfase, no direito administrativo contemporâneo, à nova concepção da processualidade no âmbito da função administrativa, seja para transpor para a atuação administrativa os princípios do ‘devido processo legal’, seja para fixar imposições mínimas quanto ao modo de atuar da administração.

Na concepção mais recente sobre a processualidade administrativa, firma-se o princípio de que a extensão das formas processuais ao exercício da função administrativa está de acordo com a mais alta concepção da administração: o agir a serviço da comunidade. O procedimento administrativo configura, assim, meio de atendimento a requisitos da validade do ato administrativo. Propicia o conhecimento do que ocorre antes que o ato faça repercutir seus efeitos sobre os indivíduos, e permite verificar como se realiza a tomada de decisões.

……………………………………………

Assim, a Constituição não mais limita o contraditório e a ampla defesa aos processos administrativos (punitivos) em que haja acusados, mas estende as garantias a todos os processos administrativos, não-punitivos e punitivos, ainda que neles não haja acusados, mas simplesmente litigantes.


Litigantes existem sempre que, num procedimento qualquer, surja um conflito de interesses. Não é preciso que o conflito seja qualificado pela pretensão resistida, pois neste caso surgirão a lide e o processo jurisdicional. Basta que os partícipes do processo administrativo se anteponham face a face, numa posição contraposta. Litígio equivale a controvérsia, a contenda, e não a lide. Pode haver litigantes – e os hásem acusação alguma, em qualquer lide.” (grifei)

O fato irrecusável, Senhor Presidente, trate-se de processo judicial, cuide-se de processo político-administrativo de cassação de mandato parlamentar, é que a garantia do contraditório e da plenitude de defesa traduz prerrogativa constitucional insuprimível.

Impõe-se, desse modo, ao Poder Público, o respeito efetivo à garantia constitucional do contraditório, que não se satisfaz com a mera ciência dos atos processuais, mas concretiza-se com a real possibilidade de contrariá-los, sob pena de grave comprometimento do direto público subjetivo de defesa.

Por tal razão, a contraditoriedade, para ser respeitada por qualquer instância de poder, deve ser efetiva e real, e não meramente retórica, ensejando-se, a quem sofre uma acusação – não importando se deduzida em sede penal ou, como no caso, formulada em âmbito político-administrativo – a possibilidade de contestar, de contrariar e de se opor a qualquer prova que lhe seja prejudicial.

Cumpre registrar, neste ponto, por relevante, o sentido e o alcance da garantia constitucional do contraditório, que consiste – na lapidar definição de meu saudoso Mestre nas Arcadas, o eminente Professor JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA (“Princípios Fundamentais do Processo Penal”, p. 82, item n. 81, 1973, RT) – na “ciência bilateral dos atos e termos processuais e a possibilidade de contrariá-los” (grifei).

Veja-se, pois, que a garantia da plenitude de defesa – aplicável ao processo de cassação de mandato parlamentar, por expressa determinação constante da Constituição (art. 55, § 2º) – abrange não só a garantia da bilateralidade da audiência, mas, também, o direito de contestar e de impugnar as provas produzidas contra o acusado, a quem se deve reconhecer a possibilidade de contrariar os elementos probatórios que lhe sejam adversos, especialmente quando produzidos, de modo lesivo, com a inversão da ordem ritual de precedência na inquirição das testemunhas.

Extremamente precisa, a propósito do conteúdo da prerrogativa constitucional do direito de defesa, a lição de JAQUES DE CAMARGO PENTEADO (“Acusação, Defesa e Julgamento”, p. 257, item n. 17, 2001, Millennium):

A ampla defesa é essencial à segurança da pessoa. É imprescindível à garantia da presunção de inocência em face de injustas imputações. Envolve três direitos básicos do acusado: direito ao seu defensor, direito ao pleno conhecimento do conteúdo da imputação e das respectivas provas e direito de debater essas provas e produzir outras.” (grifei)

Esse mesmo entendimento – que põe em evidência o caráter essencialmente dialógico do procedimento estatal instaurado com o objetivo de impor medida de caráter punitivo (não importando se aplicável em sede parlamentar, judicial ou executiva) – é também perfilhado por CELSO RIBEIRO BASTOS (“Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 2/267-269, 1989, Saraiva) e por MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (“Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. 1/68, 1990, Saraiva), em magistério no qual esses eminentes autores destacam o direito – que assiste a qualquer acusado (inclusive em procedimentos de índole político-administrativa) – de produzir provas que infirmem ou que neutralizem os elementos de informação que lhe sejam desfavoráveis, cabendo, em conseqüência, ao imputado (quer em sede penal, quer em sede legislativa, quer em sede administrativa), o direito de contrariar o material probatório de que possa resultar prejuízo à sua defesa, notadamente se produzido com inversão das fórmulas processuais.


No caso em exame, como precedentemente já assinalado, não se assegurou, ao ora impetrante, a possibilidade de produzir prova testemunhal (que foi a prova por ele postulada) que lhe permitisse elidir o conteúdo alegadamente prejudicial resultante do depoimento tardio – porque prestado após a inquirição das testemunhas da defesa – de Kátia Rabello, arrolada para dar suporte à pretensão punitiva, que, deduzida contra o Deputado José Dirceu de Oliveira e Silva, objetiva viabilizar a cassação do mandato legislativo por ele titularizado.

É por isso que se sustenta, na espécie, a nulidade do processo de cassação do mandato parlamentar do ora impetrante, a partir de certo momento da fase instrutória, por efeito da inversão da ordem de precedência na tomada de depoimentos testemunhais, porque inquirida determinada testemunha de acusação (a Senhora Kátia Rabello) depois de encerrada a inquirição das testemunhas arroladas pela defesa.

Em qualquer processo de que possa resultar a imposição de sanções punitivas ou de medidas restritivas de direitos, há uma ordem de precedência na inquirição das testemunhas, “devendo as da acusação ser ouvidas em primeiro lugar” (CPP, art. 396, “caput”), sob pena de transgressão à cláusula do “due process of law”, desde que resulte, da inversão dessa fórmula, prejuízo para o acusado.

Daí a advertência de DAMÁSIO E. DE JESUS (“Código de Processo Penal Anotado”, p. 284, 14ª ed., 1998, Saraiva), para quemO princípio do contraditório impõe a regra de serem as testemunhas da acusação ouvidas antes das da defesa (…)” (grifei).

É certo – devo reconhecer – que a disciplina normativa das nulidades, no sistema jurídico brasileiro, rege-se pelo princípio segundo o qual “Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa” (CPP, art. 563).

Esse postulado básico – “pas de nullité sans grief” – tem por finalidade rejeitar o excesso de formalismo, desde que a eventual preterição de determinada providência ou formalidade legal não tenha causado prejuízo para qualquer das partes, notadamente para o acusado (RT 491/337 – RT 529/400 – RT 567/398 – RT 570/388 – RT 603/311 – RT 647/334 – RT 747/748), consoante tem proclamado esta Suprema Corte, em decisões proferidas a propósito da questão pertinente à inversão da ordem de inquirição de testemunhas (RTJ 96/107, Rel. Min. CORDEIRO GUERRA – HC 70.198/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO):

TESTEMUNHAS DEFESA E ACUSAÇÃOINVERSÃO. Se, de um lado, é certo que as testemunhas da acusação devem ser ouvidas antes das da defesa, de outro não menos correto é que a nulidade decorrente da inobservância desta ordem pressupõe prejuízo.

(HC 75.345/MS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – grifei)

Sucede, no entanto, como bem demonstrado nos votos dos eminentes Ministros CEZAR PELUSO e MARCO AURÉLIO, que o depoimento da Senhora Kátia Rabello – utilizado, com especial ênfase, em desfavor do ora impetrante, no parecer do Relator do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados – revelou-se aparentemente contrário a uma das posições sustentadas pela defesa, o que permitiria reconhecer, ao menos nesta sede de estrita delibação, a ocorrência de dano potencial aos interesses do acusado, em ordem a configurar, na espécie, a hipótese caracterizadora de prejuízo efetivo e real para o parlamentar em questão.


Embora se houvesse permitido, ao ora impetrante, pronunciar-se (e nada mais do que isso) sobre o depoimento dessa testemunha da acusação, que foi prestado depois de ouvidas as testemunhas da defesa, não se ensejou, contudo, ao acusado, a possibilidade de contrariar, mediante produção de verdadeira “contraprova” (inquirição de testemunhas arroladas pela defesa), as declarações da Senhora Kátia Rabello.

O Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, ao assim proceder, transgrediu a norma inscrita no art. 5º, inciso LV, da Constituição da República, que assegura, em favor de qualquer acusado ou litigante, “em processo judicial ou administrativo (…), o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (grifei).

Na realidade, e com tal comportamento – inteiramente suscetível de controle jurisdicional (e de correção judicial) -, esse órgão da Câmara dos Deputados revelou desconhecer que o alcance concreto da cláusula constitucional do contraditório abrange não só o direito de crítica probatória (que assiste ao acusado), mas, sobretudo, como advertem autores eminentes (JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA, “Princípios Fundamentais do Processo Penal”, p. 82, item n. 81, 1973, RT; JAQUES DE CAMARGO PENTEADO, “Acusação, Defesa e Julgamento”, p. 257, item n. 17, 2001, Millennium; CELSO RIBEIRO BASTOS, “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 2/267-269, 1989, Saraiva; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. 1/68, 1990, Saraiva; ROMEU FELIPE BACELLAR FILHO, “Processo Administrativo Disciplinar”, p. 223/245 e 312/318, 2ª ed., 2003, Max Limonad, v.g.), compreende o direito de deduzir provas destinadas a contrariar aqueles elementos probatórios que lhe sejam desfavoráveis (e, portanto, prejudiciais), ainda mais quando a produção de tais dados instrutórios resultar, como sucedeu na espécie, da inversão da ordem de precedência de inquirição das testemunhas.

Concluo o meu voto, Senhor Presidente, assinalando que todas as razões que venho de expor – associadas aos fundamentos que dão consistência aos doutos votos dos eminentes Ministros CEZAR PELUSO e MARCO AURÉLIO – levam-me, com a devida vênia dos que pensam em contrário, a deferir o pedido de medida cautelar, fazendo-o, contudo, na extensão e nos termos enunciados na parte dispositiva do voto proferido pelo eminente Ministro MARCO AURÉLIO.

É o meu voto.

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