O Direito e a indústria

Não cabe aos juízes determinar a política pública de saúde

Autor

  • Eduardo Appio

    é juiz federal na 2ª Turma Recursal dos JEFs do Paraná em Curitiba e pós-doutor em Direito Constitucional pela UFPR (2007).

23 de novembro de 2005, 11h02

A forma como o Estado interfere na sociedade e as repercussões do modelo econômico adotado por boa parte dos países ocidentais, ao longo dos últimos vinte anos, trouxe severas conseqüências para os respectivos sistemas de assistência pública à saúde. O Direito Constitucional, minha área de atividade profissional, é um espaço privilegiado para discutir as relações entre a política, a economia e o Direito.

Como todos sabemos, países em desenvolvimento como o Brasil, passaram por recentes períodos de "turbulência democrática". Até o ano de 1985, o Brasil convivia com um regime de ditadura militar, no qual o Direito Constitucional tinha muito pouco a dizer.

Após 1985, o Brasil voltou a observar determinados princípios que são essenciais para a democracia, tais como a liberdade de imprensa e de pensamento e as eleições diretas para a escolha do Presidente da República e dos membros do Congresso. O Brasil possui um regime presidencialista, segundo o qual o Presidente da República, assume as funções de chefe de governo e chefe de estado; ou seja, possui muito poder político.

O que gostaria de deixar claro a todos, nesta abordagem preliminar, é o fato de que depois de o Brasil ter deixado para trás um regime de ditadura militar que durou vinte e um anos, as esperanças da população — especialmente de uma grande massa da população pobre no Brasil — se voltaram para a nova Constituição, que foi aprovada no ano de 1988, ou seja, há cerca de 20 anos. Passados estes vinte anos, todos vimos no Brasil que pouco ou quase nada resolve uma nova Constituição, se não possuirmos instituições verdadeiramente fortes e consolidadas.

Para que este novo ambiente seja criado, exige-se um elevado grau de consciência social por parte dos agentes econômicos, ou seja, dos que detêm capital, que devem apostar no desenvolvimento do país no longo prazo.

Infelizmente, não é este o cenário que se desenha já no início do século XXI, porque todos os países em desenvolvimento, inclusive o Brasil, passaram por uma grande transformação na década de 1990. Houve uma profunda mudança do modelo econômico adotado por boa parte das economias ocidentais, a partir dos anos 80.

Neste novo modelo econômico, o Estado de Welfare teria seu espaço rapidamente diminuído, porque o Estado teria a missão de pilotar ou se quiserem de "gerenciar" a economia. O Estado não seria um agente econômico, mas apenas um árbitro das relações econômicas. No caso brasileiro, o surgimento deste novo modelo coincidiu, exatamente, com a nova Constituição Federal de 1988.

Ou seja, foi criado um instrumento jurídico voltado para um Estado com forte intervenção social, inclusive na área de políticas de saúde, seguindo o modelo da Constituição portuguesa de 1976, mas aí a realidade mundial já era outra. Foi como se tivéssemos encomendado ao alfaiate um terno, e fôssemos buscá-lo somente após vinte anos. As "medidas"da economia brasileira se alteraram, buscando adequação com este novo modelo econômico dito neoliberal. O terno, ou seja, o traje jurídico, permaneceu o mesmo e por isto já tivemos no Brasil quarenta e oito emendas à Constituição de 1988. Desta maneira, muitas das expectativas da população brasileira, composta em sua maioria por pessoas de baixo poder aquisitivo, serão frustradas nos próximos anos, porque existe um choque entre a economia real e o modelo econômico previsto na Constituição brasileira de 1988. A tendência natural é uma "acomodação" do modelo constitucional às novas diretrizes econômicas.

Passemos para alguns dados de ordem prática, tomando-se como exemplo o Estado de São Paulo, maior estado da federação brasileira e que concentra expressiva parte da população do Brasil. Ali, cerca de 10 mil pacientes recebem tratamentos de saúde através de ordens judiciais, sendo que os custos com as ações judiciais no ano de 2005 (cerca de 40 milhões de dólares) cresceram 79% em relação ao ano de 2004.

Este custo, no Estado de São Paulo, o mais industrializado e rico do Brasil, corresponde a 30% do orçamento para a saúde. Geralmente, as decisões dos juízes determinam a compra imediata de medicamentos especiais, com alto custo para o Estado, como por exemplo o caso do Inrterferon Peguilado, fabricado por empresas como a Roche no Brasil e utilizado para o tratamento da hepatite C.

No caso brasileiro, oSUS (sistema único de saúde) fornece gratuitamente para toda a população o Interferon convencional, o qual custa cerca de 30 vezes menos que o Inrterferon Peguilado.

A pergunta que fica: a Constituição brasileira garante a todo brasileiro um direito social à saúde de caráter universal? Em caso positivo, um cidadão brasileiro pode buscar em seu sistema judicial todo o medicamento que necessitar ou todo o tratamento médico que lhe seja necessário, independente do custo envolvido. Esta é a posição majoritária no Judiciário do Brasil.


Tenho concentrado minhas pesquisas, no nível de pós-doutorado, em um ponto específico, ou seja, na forma como as decisões judiciais interferem na gestão dos recursos destinados à saúde pública. A partir de minha rotina diária como juiz federal no Brasil, constatei que existe um número muito elevado (e crescente) de decisões judiciais em meu país, que irão determinar a forma como orçamentos públicos já aprovados pelo Congresso serão executados. O Supremo Tribunal Federal, em recentes decisões, geralmente do senhor ministro Celso de Mello, notável jurista brasileiro, tem determinado que o Estado brasileiro assuma o dever de fornecer o melhor medicamento disponível ao cidadão brasileiro, independente do custo envolvido.

Desde o ponto de vista de um profissional ligado ao Direito Constitucional, surgem algumas questões aparentemente simples, mas de difícil resolução.

Por exemplo, o fato de que no sistema brasileiro, os orçamentos públicos são aprovados pelo Congresso no ano anterior ao de sua execução. Os congressistas, em um modelo de democracia representativa, são eleitos diretamente pela população. No Brasil, as eleições diretas que definem os membros do Congresso Nacional acontecem a cada quatro anos. Desta maneira, os orçamentos públicos e a forma como o Estado brasileiro irá investir recursos obtidos através da cobrança de impostos, fazem parte de um amplo processo deliberativo, antecedido de eleições gerais.

Fala-se, portanto, que os orçamentos públicos no Brasil têm "legitimidade popular". Falo tudo isto, porque este debate que acontece hoje conta com profissionais de diversos segmentos da sociedade. Meu discurso parte, portanto, do ponto de vista de um profissional que estuda o Direito Constitucional. Desta maneira, interessa-me muito discutir a questão dá legitimidade das decisões dos juízes sobre a destinação de recursos públicos para a saúde em um sistema democrático. Este tema foi objeto de minha tese de Doutorado em Direito, apresentada no ano de 2004 e, portanto, tem sido o objeto de minhas pesquisas recentes.

Defendo a tese de que os limites para a intervenção dos juízes na área das políticas públicas de saúde já estão previamente definidos na Constituição no caso brasileiro.

Parto da idéia de que em um modelo que combina princípios de democracia representativa — através das eleições diretas — com princípios de democracia participativa, os juízes não podem formular políticas públicas, mas apenas executar políticas públicas. Então, neste ponto do debate, posso resumir minhas dúvidas a dois pontos específicos.

O primeiro: se um cidadão brasileiro, independentemente de ser rico ou pobre, ingressar com uma ação perante seu sistema judicial, o juiz é obrigado a determinar ao Estado brasileiro a compra do medicamento pedido ou mesmo a realização de um tratamento médico de alto custo?

O segundo: os juízes brasileiros têm legitimidade democrática para formular políticas públicas na área da saúde?

Acredito que em ambos os casos a resposta é não.

Começando pelo direito à saúde no Brasil. A Constituição brasileira de 1988 prevê em um de seus dispositivos (artigo 6º) que a saúde é um direito social que deve ser suportado pelo Estado brasileiro, "nos termos da Constituição". Isto significa dizer que o Estado brasileiro, em pleno século XXI, deve assumir a obrigação de garantira todos o melhor medicamento disponível, o melhor tratamento médico existente, em uma população com cerca de 180 milhões de pessoas? Não acredito. A Constituição brasileira, na realidade, previu a criação de um modelo amplo de assistência à saúde da população, independente da classe social. Este é o Sistema Único de Saúde (SUS).

O SUS é uma ação combinada entre os governos federal, estadual e local, baseado num orçamento público aprovado pelo Congresso. As políticas públicas para o setor da saúde são definidas a partir de critérios técnicos, bem como através de órgãos deliberativos, com a participação de vários segmentos da sociedade brasileira, como por exemplo o Conselho Nacional de Saúde. A opção do governo brasileiro em empregar uma parte substancial dos recursos da saúde no Brasil para a compra de medicamentos de alto custo para os pacientes portadores do vírus HIV, por exemplo, é uma decisão de cunho político.

Os limites para a atuação do Poder Executivo na área da saúde no Brasil são bastante amplos. É o Poder Executivo, geralmente através do Ministério da Saúde, que define quais serão as políticas públicas prioritárias durante a gestão de um governo. Todavia, não é esta a concepção majoritária entre os juízes brasileiros. A maior parte dos juízes brasileiros entende que sim, o Estado deve, sempre que for acionado perante o sistema judicial, fornecer qualquer tipo de medicamento a qualquer custo.


Em data recente, um juiz federal no Paraná, com base na interpretação do direito fundamental à saúde, determinou que um transplante que pode ser realizado pelo Sistema Único de Saúde no Brasil, seja realizado num hospital privado nos Estados Unidos, a um custo de quase 300 mil dólares, sob o argumento de que lá existem melhores condições de tratamento.

Hoje no Brasil existe uma verdadeira tempestade de ações judiciais através das quais cidadãos brasileiros, geralmente assessorados por bons escritórios de Advocacia,buscam junto ao Estado a compra de medicamentos especiais de que necessitam, como por exemplo o Interferon Peguilado que tem um tratamento estimado no valor de 500 dólares semanais, enquanto que o Interferon convencional, fornecido gratuitamente pelo Estado, custa cerca de 20 dólares por semana.

O caso do Interferon Peguilado no Brasil é particularmente ilustrativo da manipulação de um discurso aparentemente humanista, com forte conteúdo social, mas que esconde grandes interesses de multinacionais que fabricam estes medicamentos. No caso brasileiro, criou-se uma verdadeira rede entre médicos, ONGs, associações de pacientes de hepatite C e alguns escritórios de advocacia. Empresas da área farmacêutica, como a Roche do Brasil, subvencionam alguns médicos especialistas na área da hepatite C e patrocinam congressos médicos sobre o tema, como aconteceu no último mês de outubro na cidade brasileira de Campos do Jordão-SP.

A Roche do Brasil também patrocina ações junto a ONGs , estimulando a criação de associações de pacientes de hepatite C, os quais são assessorados por escritórios de Advocacia especializados em ingressar com ações no sistema judicial, obrigando o Estado brasileiro a adquirir o Inrterferon Peguilado junto a empresas como a Roche que produzem o medicamento no Brasil. Note-se que muito embora a Roche alegue que o Interferon Peguilado tem uma resposta 6% superior ao Interferon convencional, não existe consenso científico sobre o tema.

Os juízes recebem estas ações e, de forma incorreta, determinam a compra deste medicamento, levando os orçamentos públicos na área da saúde no Brasil à falência. Na pratica, o Estado brasileiro é o único e exclusivo comprador de Interferon Peguilado no Brasil junto à Roche e à Schering-Plough (ambas com sede na Suíça), por conta do alto custo envolvido.

No Estado de São Paulo, por exemplo, o mais rico do Brasil, se o Interferon Peguilado da Roche fosse fornecido de forma ampla, consumiria mais da metade de todo o orçamento público para a saúde.

Pergunta-se: e os demais pacientes, como ficariam? Nota-se que a formulação de políticas públicas é um assunto muito delicado. Por isto, não são os juízes, não-eleitos pela população, que devem decidir qual será a área prioritária que um Estado pobre de recursos — como o Estado brasileiro — deve investir na área da saúde. Esta escolha depende de um modelo que combine princípios de democracia participativa — através de ONGs, por exemplo — com princípios de democracia representativa, ou seja, através de um canal de comunicação entre os membros do Congresso e as pessoas que os elegeram.

E neste cenário, os juízes não têm qualquer papel? Sim, os juízes brasileiros têm um importante papel a desempenhar, qual seja, o de fazer com que as políticas públicas já aprovadas pelo Congresso sejam fielmente executadas, garantindo o acesso de todos os cidadãos brasileiros, ricos ou pobres, ao sistema público de saúde, em igualdade de condições. Se uma política pública foi formulada pelo governo eleito ou se está prevista em lei, os juízes devem garantir que as "promessas da lei" sejam cumpridas. Não devem, todavia, criar políticas públicas que não tenham amparo na lei e na Constituição, porque não têm legitimidade democrática.

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    é juiz da Turma Recursal Federal do Paraná e pós-doutor em Direito Constitucional. É também autor do livro Controle difuso de constitucionalidade: modulação dos efeitos, uniformização de jurisprudência e coisa julgada.

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