Dever de indenizar

A responsabilidade civil da administração pública

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22 de novembro de 2005, 13h56

A responsabilidade de indenizar da Administração Pública está prevista no artigo 37, § 6º da Constituição Federal que assim estatui:

“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado, prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa

No Estado Absolutista, este não indenizava o particular, pois havia o pensamento de que o Estado, o príncipe, não podia fazer mal aos seus cidadãos.

Na Revolução Francesa este pensamento caiu e passou a vigorar a teoria do risco integral do Estado pelos danos causados ao administrado. Por essa teoria, até mesmo quando a vítima tinha culpa exclusiva, caberia indenização.

A maioria dos países entre eles o Brasil adota a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, a teoria do risco administrativo. Assim sendo, são necessários três requisitos para que a Administração tenha o dever de indenizar: ação ou omissão injusta, nexo causal e dano. Basta que o particular prove a ocorrência destes três para que tenha seu direito de reparação assegurado.

Hely Lopes Meirelles assimila que os artigos do Código Civil 927 e seguintes, que disciplinam a responsabilidade civil, são aplicáveis a Administração Pública.

Alexandre de Moraes acrescenta que é necessário a verificação de causa excludente de responsabilidade estatal, isto porque quando a Administração causar dano a outrem exercendo sua função institucional, não há dano a ser ressarcido.

Há de se ressaltar que essa reparação é aplicável não somente aos danos materiais, mas também aos danos morais. Todavia, tem a Administração direito de regressar contra seu agente, causador do dano, até mesmo depois de sua aposentadoria ou exoneração, etc.

Este regresso só é cabível se a Administração efetivamente efetuou o pagamento do prejuízo ao lesado.

Essa obrigação não decorre apenas dos atos meramente administrativos, mas também dos atos legislativos e judiciários, aliás, este último é o maior dano que o Estado pode causar ao cidadão, devendo a reparação ao erro judiciário ser a mais ampla possível, abrangendo todos os prejuízos materiais e morais causados.

A falta do serviço e o Código de Defesa do Consumidor

O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 14, combinado com o artigo 3º, atribui ao Estado, enquanto fornecedor de serviço público, a responsabilidade objetiva por danos decorrentes da "falta do serviço público", incluindo, assim, a responsabilidade por conduta omissiva. Vejamos o que dispõe o caput dos dois ora artigos citados:

Artigo 3º do CDC: “Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, publica ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.”

Artigo 14 do CDC: “O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.“

Assim, o Estado é considerado fornecedor de serviço público, devendo, portanto, obedecer a todos os princípios e regras protetores do consumidor, inclusive ao princípio contido no inciso X do artigo 6.º do CDC, que expressamente determina ser direito do consumidor "a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral ".


O artigo 22 do mesmo diploma legal dispõe que os Órgãos Públicos, diretamente ou não, são obrigados a fornecer os serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais contínuos. Dispondo ainda que, a responsabilidade pelo fornecimento inadequado ou ineficaz do serviço público será regida pelas regras deste código. Portanto, responsabilidade objetiva.

As pessoas jurídicas de direito público – centralizadas ou descentralizadas – podem figurar no pólo ativo da relação de consumo, como fornecedor de serviços. Por via de conseqüência, não podem se furtar a ocupar o pólo passivo da correspondente relação de responsabilidade.

De acordo com o Código de Defesa do Consumidor, são responsáveis objetivamente a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal. Também o são as autarquias, as fundações públicas, as sociedades de economia mista, as empresas públicas e as concessionárias e permissionárias de serviço público.

Importante salientar que o Estado somente será considerado fornecedor e, portanto, estará sujeito às regras do Código de Defesa do Consumidor [responsabilidade objetiva] quando for produtor de bens ou prestador de serviços, remunerados por "tarifas" ou "preços públicos". Por outro lado, não serão aplicadas as normas do CDC aos casos em que aquele for remunerado mediante atividade tributária em geral [impostos, taxas e contribuições de melhoria].

Portanto, a partir do advento do Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade do Estado, pelo serviço público remunerado por tarifa ou preço público, é de natureza objetiva, tanto para as condutas comissivas como para as omissivas.

A ANS — Agência Nacional de Saúde Suplementar e sua responsabilidade institucional frente ao artigo 37, parágrafo 6 da Carta Magna

A Lei 9.961/2000 criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS e definiu a sua finalidade, estrutura, atribuições, sua receita, a vinculação ao Ministério da Saúde e a sua natureza. A ANS tem por finalidade institucional promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regular as operadoras setoriais – inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores – e contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde no País.

Lei 9961/00 – Artigo 1º “É criada a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, autarquia sob o regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, com sede e foro na cidade do Rio de Janeiro – RJ, prazo de duração indeterminado e atuação em todo o território nacional, como órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantem a assistência suplementar a saúde.” (…)

Artigo 3º “A ANS terá por finalidade institucional promover a defesa do interesse publico na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações da saúde no País.”

O setor de saúde suplementar reúne mais de 2000 empresas operadoras de planos de saúde, milhares de médicos, dentistas e outros profissionais, hospitais, laboratórios e clínicas. Toda essa rede prestadora de serviços de saúde atende a mais de 37 milhões de consumidores que utilizam planos privados de assistência à saúde para realizar consultas, exames ou internações.

Não obstante, a Constituição Federal deixa transparecer, de forma cristalina, que todo o sistema de saúde, é de responsabilidade do Estado, o qual deve zelar pelo bem-estar da população, sem quaisquer ressalvas. As atividades desenvolvidas pelas empresas de saúde são consideradas de interesse público, pelo que compete ao Estado tomar as providências cabíveis no sentido de evitar eventuais negligências por parte de tais pessoas jurídicas.


À ANS cabe, dentre outras, a atribuição institucional de controlar e de fiscalizar as atividades das operadoras de planos de saúde, visando promover a defesa do interesse público. Portanto, pode a ANS vir a responder por eventuais danos, materiais e morais, causados aos usuários de planos de saúde, em virtude uma conduta omissa em virtude de não ter procedido, a autarquia, com o devido cumprimento de suas atividades fiscalizadoras. Fato concreto desta responsabilidade é figuração da ANS em muitas ações civis públicas promovidas pelo Ministério Público Federal, onde geralmente a ANS figura no pólo passivo juntamente com operadoras de plano de saúdes, sendo que as operadoras por lesionar o consumidor e a ANS por quedar-se inerte diante da lesão sofrida pelos usuários.

A ANS no Rio de Janeiro

Os consumidores de planos de saúde do estado do Rio de Janeiro podem procurar a ANS no Núcleo Regional de Rio de Janeiro (RJ). Pode-se falar com a ANS, também pelo site www.ans.gov.br ou pelo serviço de atendimento telefônico de Agência Nacional de Saúde Suplementar – o Disque ANS – 0800.701.9656 (ligação gratuita de todo o Brasil).

Nesta direção, apresentamos aos interessados no assunto um primor de trabalho, uma AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA redigida pelo Doutor CELSO DE ALBUQUERQUE SILVA, Digno Procurador da República.

EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA 19ª VARA FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIO DO RIO DE JANEIRO

DISTRIBUIÇÃO POR DEPENDÊNCIA A AÇÃO CAUTELAR Nº: 2000.5101020271-5

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador da República que esta subscreve, vem, com fundamento no disposto no artigo 129, III da Constituição Federal e nos dispositivos da Lei nº 7.347/85, ajuizar a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA

Em face da AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR, Rua Augusto Severo, 84, 11º andar – Glória – Rio de janeiro, GOLDEN CROSS – ASSISTÊNCIA INTERNACIONAL DE SAÚDE, que pode ser citada na Rua Moraes e Silva, nº 40, 3º andar, Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, SUL AMÉRICA AETNA SEGUROS E PREVIDÊNCIA, Rua da Alfândega, nº 33, Centro, Rio de Janeiro, RJ, da BRADESCO SEGUROS, Rua Barão de Itapagipe, nº 225, Rio Comprido, Rio de Janeiro, RJ, da MARÍTIMA SAÚDE – CIA DE SEGUROS GERAIS, Rua da Quitanda, nº19, 3º andar, Rio de Janeiro, RJ, da UNIMED RIO, Rua do Ouvidor, nº 161, 9º andar, Rio de Janeiro, RJ, da PORTO SEGURO – CIA DE SEGUROS GERAIS, Rua Voluntários da Pátria, nº 40, Botafogo, Rio de Janeiro, RJ, pelos fatos e fundamentos a seguir expostos:

I – DOS FATOS

Iniciou-se no âmbito desta PR/RJ investigação no sentido de apurar eventual ilegalidade na exigência feita ao consumidor, por parte das operadoras de planos de saúde rés, de que o mesmo porte a última lâmina de pagamento para ser atendido pelos referenciados.

Visando instrumentalizar o referido procedimento foi expedido o ofício PR/RJ/CAS nº 12/00, de 29 de fevereiro de 2000, solicitando alguns documentos e informações por parte da empresa representada Bradesco Seguros, cuja resposta foi considerada insuficiente.

Com o objetivo de complementar a instrução do procedimento, foi expedido o ofício PR/RJ/CAS nº 36/00, em 11 de abril de 2000, ao Diretor de Saúde da Bradesco Seguros no Rio de Janeiro por meio do qual solicitou-se o seu comparecimento à Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro, visando prestar esclarecimentos acerca da resposta enviada.


Ainda em 11 de abril de 2000, foram expedidos os ofícios PR/RJ/CAS nº 37/00 e 38/00 aos responsáveis pela Clínica José Kos, que negou atendimento ao consumidor-representante, vez que ele não portava a última lâmina de pagamento juntamente com seu cartão válido, solicitando o comparecimento dos mesmos, no sentido de esclarecer a conduta adotada.

Atendendo ao requisitado, tanto os representantes da seguradora Bradesco Seguros, quanto os da clínica compareceram a esta PR/RJ. Afirmou o diretor médico da Clínica Professor José Kos que a apresentação da última lâmina de pagamento é exigência comum por parte das empresas de seguro saúde, tendo indicado ainda, além da Bradesco Seguros, outras empresas que adotavam a mesma conduta.

Neste sentido, foram expedidos ofícios requisitando o comparecimento de todas as empresas citadas com objetivo de prestar esclarecimentos acerca da ilegal exigência feita aos segurados.

Em 09 de junho do corrente ano foi formalmente instaurado inquérito civil público para investigação das ilegalidades praticadas, dando-se ciências as empresas representadas, à Agência Nacional de Saúde, ao Sr. Ministro da Saúde, ao Procurador Geral da República e Câmara de Coordenação e Revisão.

Em 14 de junho realizou-se a primeira reunião conjunta, onde foram discutidas formas alternativas de substituição à conduta objurgada, dando-se prazo para que as empresas representadas apresentassem propostas visando a formalizar termo de ajustamento de conduta, tendo todas as empresas presentes: Adress, Marítima Seguros, Assim, CABERJ, Amil, Sul América Aetna, e Bradesco Saúde, demonstrado interesse em solucionar o problema extrajudicialmente.

Tendo em vista que quatro empresas de seguro saúde não compareceram à reunião realizada, as faltosas, Golden Cross, Porto Seguro, Unimed Rio e Miller, foram intimadas a comparecer a nova reunião no dia 21 de junho de 2000.

Realizadas as primeiras reuniões, cientes todas as empresas do problema existente e visando obter uma solução conjunta, foi marcada nova reunião, no âmbito desta PR/RJ.

Em 01 de agosto de 2000, foi realizada a segunda reunião conjunta entre o Ministério Público e as empresas representadas, na qual foi apresentada pelo MPF minuta de termo de ajustamento de conduta, tendo, à exceção da empresa Golden Cross, todos os demais participantes, manifestado a intenção de firmá-lo, porém necessitando-se de prazo para melhor análise da minuta.

Não se tendo chegado a um resultado concreto já nessa reunião, objetivando melhor instruir o procedimento, decidiu o MPF por requisitar as cópias de todos os modelos de contratos de plano de saúde.

Após vários contatos preliminares, em 10 de agosto de 2000, realizou-se a 3ª reunião para assinatura do termo de ajustamento, à qual não compareceram os representantes das empresas de seguro saúde Sul América, Bradesco Seguros, Porto Seguro, Marítima Seguros e Golden Cross, que passaram a ser representadas por um único escritório de advocacia, cujo titular compareceu à reunião para informar que seus clientes não firmariam o termo de ajustamento. Também não o firmou a Ré UNIMED, embora presente seu representante legal. As demais empresas firmaram termo de ajustamento, comprometendo-se a cessar com a prática ilegal.

Expirado o prazo conferido às operadoras Rés para encaminharem todas as modalidades de contratos que formalizam sem que a mesma adimplissem seu dever legal, o Ministério Público ingressou com ação cautelar de busca e apreensão, distribuída a esse juízo, tendo obtido e cumprido medida liminar.


Restadas infrutíferas as tratativas para solução extrajudicial e, considerando-se que as Ré insistem em exigir, para atendimento do associado/segurado, a apresentação da última lâmina de pagamento juntamente com o cartão válido, exsurge o interesse de agir para a propositura da presente ação civil pública, colimando a imediata cessação dessa conduta e posterior ressarcimento dos danos morais coletivos, já em virtude de ausência de previsão contratual, já em virtude de sua ilegalidde- por ofensa à igualdade jurídica dos consumidores nas contratações prevista no artigo 6º, II do CDC – e abusividade por ofensa ao artigo 51, Inciso IV, §1º, incisos I e II, todos do CDC.

II – DA LEGITIMIDADE ATIVA DO MPF

Assim dispõe o artigo 129, III da Constituição Federal de 1988:

" São funções institucionais do Ministério Público:

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;"

Nesse sentido também determina a Lei Complementar nº 75/93 em seus artigos 5º, inciso V "a" e 6º, inciso VIII, in verbis:

" art. 5º – São funções institucionais do Ministério Público da União:

V – Zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos da União e dos serviços de relevância pública quanto:

a.aos direitos assegurados na Constituição Federal relativos às ações e aos serviços de saúde e à educação;" (grifou-se)

A iniciativa deste órgão ministerial para a proteção dos direitos do consumidor recebe também a chancela da Lei nº 8.078/90 que em seus artigos 82, inciso I e 90 prevê a possibilidade de ajuizamento de ação civil pública pelo Ministério Público que, nesse caso, atuará na qualidade de substituto processual, defendendo em nome próprio interesse alheio.

A relação de consumo ora discutida é aquela que se trava entre o segurado/consumidor que adere ao plano de saúde oferecido pela empresa de seguro saúde, e esta última que se obriga, através de seus agentes credenciados, a prestar os serviços médico-hospitalares que comercializa.

Não resta dúvida de que se cuida de contrato de prestação de serviço, no qual o consumidor tem a opção de aderir ou não às cláusulas contratuais previamente estabelecidas, contrato de adesão, o que revela a fragilidade deste último e a necessidade de uma tutela específica.

Portanto, mostra-se inequívoca a atribuição do parquet, uma vez que a presente demanda visa tutelar o interesse coletivo do consumidor que de forma abusiva tem que portar, juntamente com seu cartão dentro do prazo de validade, a última lâmina de pagamento como requisito de acesso aos serviços contratados e obtidos através de referenciados das operadoras de saúde.

Ademais, a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, autarquia federal que figura como Ré na presente ação, legitima a atuação deste órgão ministerial, nos termos do artigo 109, inciso I da Carta Magna.


A referida Autarquia não está cumprindo com suas funções legais, determinadas na Lei nº 9.961/00, de fiscalização e coibição das atividades atualmente praticadas pelas Rés, permitindo que as mesmas atuem de forma ilegal e abusiva em face de seus segurados/consumidores.

Portanto, mostra-se inequívoca a atribuição do parquet, uma vez que a presente demanda visa tutelar o interesse coletivo do consumidor que sofre lesões na medida em que suporta a abusividade da imposição de portar a última lâmina de pagamento, juntamente com seu cartão de identificação válido, para ser atendido pelos referenciados das empresas Rés em função, também, da inércia da Agência Nacional de Saúde Suplementar, autarquia federal responsável pela fiscalização dessas empresas.

III – DA LEGITIMIDADE PASSIVA DOS RÉUS

As rés são partes passivas legítimas, uma vez que a decisão postulada projetará efeitos diretos sobre as suas esferas jurídicas.

Preceitua o art. 3º do Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990 que:

Art. 3º – Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

Parágrafo 2º – Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

As empresas que figuram no polo passivo da demanda em questão estão presentes na relação jurídica de direito material que giza em torno de exigências alegadamente feitas com base em disposições insertas nas relações contratuais que formalizaram.

Importante a verificação, em cotejo com o dispositivo supramencionado, de que todas essas empresas identificam-se com o conceito de fornecedor, pois, é a relação jurídica de direito material e a configuração de seus sujeitos que determinará a existência ou não de legitimidade passiva.

Desta forma, como a “legitimatio ad causam” é deduzida do direito material em questão e, tendo-se em conta que as rés firmaram contrato de prestação de serviços com os segurados/consumidores na qualidade de fornecedoras de serviços de saúde (art. 3ºda Lei 8.078/90), imperioso reconhecer-se que as mesmas são parte legítima para atuar no polo passivo do presente feito.

Finalmente, no que tange a Agência Nacional de Saúde Suplementar, autarquia federal, é ela responsável pela fiscalização e controle das empresas de seguro saúde, sendo, portanto, legítima sua presença no pólo passivo da presente ação civil pública, vez que, em face da mesma, requererá este órgão ministerial pedido cominatório de fiscalização e coibição das atividades ilegais atualmente praticadas pelas Rés, tal como dessume dos deveres que lhe foram legalmente impostos.

Com efeito, assim preceitua a lei de criação da AUTARQUIA FEDERAL AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR, de nº 9.961, de 28 de janeiro de 2000 em seu artigo 3º:, verbis:


"Art. 3º. A ANS terá por finalidade institucional promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e CONSUMIDORES, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no país". (grifou-se)

É atribuição, portanto, da ANS a promoção da defesa do interesse público no campo da saúde suplementar, inclusive no que concerne com a regulação das atividades das Operadoras litisconsortes Rés e seus consumidores, impondo-lhe a lei o dever de regular os contratos, e fiscalizar-lhes a execução, que são firmados entre as operadoras de planos de saúde e seus associados/segurados, no intuito de coibir arbitrariedades e ofensas ao Código de Defesa do Consumidor.

Ocorre que a ANS quedou-se inerte em seu dever jurídico, permitindo que as demais Rés litisconsortes impusessem regras arbitrárias, muitas vezes não previstas em seus contratos, e quando previstas, revestidas de ilegalidade e abusividade em face do Código de Defesa do Consumidor.

Reafirmando o dever legal negligenciado pela Autarquia Federal Ré, dispõe o artigo 4º, inciso II da lei supra mencionada que:

Art. 4º. Compete à ANS

I – omissis

II – estabelecer as características gerais dos instrumentos contratuais, utilizados na atividade das operadoras.

No mesmo diapasão o parágrafo 1º do artigo 1º da lei nº 9.656, de 03 de junho de 1998, na redação da Medida Provisória nº 1.976-29/2000, cuja dicção legal é a seguinte:

"Art. 1º. Omissis

§1º. Está subordinada às normas e à fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS qualquer modalidade de produto, serviço e contrato que apresente, além da garantia de cobertura financeira de riscos de assistência médica, hospitalar e odontológica, outras características que o diferencie de atividade exclusivamente financeira, tais como:

e) qualquer restrição contratual, técnica ou operacional para a cobertura de procedimentos solicitados por prestador escolhido pelo consumidor;(grifo nosso)

Tão redundante que foi o legislador quanto à matéria, que ressuma cristalina a legitimidade da ANS para compor o pólo passivo da presente ação.

IV – DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL

A competência da Justiça Federal é indiscutível nos termos do artigo 109, I da Constituição Federal, uma vez que figura no pólo ativo o Ministério Público Federal e no pólo passivo da presente ação civil pública, a Agência Nacional de Saúde Suplementar, uma autarquia federal, ambos responsáveis pela defesa do interesse público dos consumidores em escala nacional.

Por outro lado, como na presente ação se objetiva a extinção da prática abusiva de portar, o segurado, a última lâmina de pagamento, juntamente com o cartão válido quando de seu atendimento pela rede referenciada, com relação a operadores de planos de saúde de abrangência nacional, evidente a competência da Justiça Federal, na medida que os limites da eficácia da sentença nessa ação civil pública desbordam dos lindes da competência territorial do Estado do Rio de Janeiro.


Dessarte, indiscutível a competência desse juízo federal para julgamento da presente ação civil pública, quer em razão da pessoa quer em razão da matéria.

V – DO DIREITO

A exigência, por parte das Rés seguradoras/operadoras de planos de saúde, de que alguns de seus segurados/filiados apresentem a última lâmina de pagamento ou qualquer comprovante que lhe faça as vezes para fins de utilização de alguns serviços/atendimentos a que contratualmente as Rés se obrigaram a prestar, se apresenta manifestamente injurídica, injuridicidade essa que se apresenta bifronte por ser : a) exigência gravosa aos consumidores sem previsão contratual e, b) exigência gravosa aos consumidores ancorada em previsão contratual maculada pela eiva de ilegalidade e abusividade.

A. A ausência de cláusula contratual — Exigência fundada em relações de poder e não relações de direito

Partindo-se da idéia de Estado de Direito como entendida pela doutrina, conceitua-se como tal, o Estado que ao lado da enumeração em catálogo de direitos fundamentais da pessoa humana acolheu o princípio da separação de poderes, cuja finalidade precípua é limitar o poder submetendo-o integralmente ao direito (rule of law not rule of men). Nessa perspectiva, desde cedo se defendeu que as obrigações teriam por fonte ou a lei ou o contrato.

A submissão à lei, na concepção Rosseauniana e Kantiana, decorria da própria liberdade do indivíduo, tendo ambos afirmado que a liberdade do homem, consistia exatamente em só submeterem-se às leis as quais eles próprios deram assentimento. A sujeição das obrigações impostas pela lei encontrava sua fonte de legitimidade no fato de que tais obrigações foram criadas pelos próprios destinatários da norma e não por imposição de uma vontade unilateral e pessoal do soberano absoluto. Trata-se da substituição de uma relação de poder por uma relação de direito.

Esse princípio é aplicável ao contrato, mesmo na sua já superada versão clássica estribada na ciência jurídica do século XIX que tinha como pedra angular do Direito a autonomia da vontade. Como afirma Gounot, "da vontade livre tudo procede e a ela tudo se destina".( apud Mário Bessone, "Contrato de adesão e natureza ideológica do princípio de liberdade contratual" in Rivista Trim. Di Diritto e Procedura Civile, 1974, p.944).

Nessa concepção, a doutrina da autonomia da vontade considera que é da manifestação da vontade humana isenta de vícios que se haure a legitimidade da força obrigatória dos contratos, celebrizada na locução latina do pacta sunt servanda.

A idéia da força obrigatória dos contratos traduz a mensagem de que, uma vez manifestada a vontade, as partes contratantes têm direitos e obrigações e deles não poderão se desvincular a não ser através de um outro acordo de vontade ou, em caráter excepcional em decorrência de caso fortuito ou força maior. Esse entendimento cristalizou-se na fórmula regalenga "o contrato faz lei entre as partes". Essa também é uma relação de direito, na medida em que essa força obrigatória vai ser reconhecida pelo ordenamento jurídico.

Nada obstante a sedimentação secular de tais institutos, violentando os mais comezinhos princípios informadores do Estado de Direito, as Rés, SUL AMÉRICA AETNA, MARÍTIMA, BRADESCO SAÚDE e GOLDEN CROSS (exceção feita a estas duas últimas apenas quanto aos contratos firmados em finais de 1999), através de uma verdadeira relação de poder, ao melhor estilo tirânico e despótico, determinaram, manu militari e unilateralmente, que seus filiados portassem a última lâmina de pagamento ou documento equivalente para fins de atendimento médico em consultas e/ou exames de pequena complexidade, sem qualquer previsão contratual para tal.


Em outro dizer: não existe cláusula contratual que obrigue os seus filiados/segurados a portarem referido documento. Ao contrário, as cláusulas que tratam dos deveres dos associados/segurados, quando o fazem, exigem apenas e tão somente a apresentação do cartão de associado/segurado dentro do prazo de validade e documento de identidade.

A injuridicidade de tal conduta é manifesta, ainda na concepção clássica de contrato, pela qual as partes estão obrigadas a cumprir aquilo a que formalmente aderiram. Considerando-se que, no momento da formalização do ajuste, os consumidores dos serviços prestados pelos planos/seguros de saúde, não se obrigaram a portar a última lâmina de pagamento para receber os produtos/serviços que estavam a adquirir, não podem as Rés lhes impor unilateralmente essa obrigação, sob pena de quebrar a força obrigatória dos contratos, a que estão jungidas e imbricadas.

Embora disso pareçam se olvidar as Rés, já vai longe o tempo do governo dos homens. Nada obstante sua potência econômica e até mesmo poderio político, estão as Rés, também elas, submetidas ao império da lei, razão pela qual se não o fazem sponte própria, incumbe ao Poder Judiciário recolocá-las no trilho da legalidade. Relações de direito e não relações de poder é que as ligam aos seus clientes consumidores, de sorte que resulta balda de força vinculante e obrigatória qualquer exigência desprovida de amparo contratual.

B) A nova concepção do contato e sua recepção no Código de Defesa do Consumidor

A concepção clássica do contrato absolutizou o dogma da autonomia da vontade a ponto de relegar a lei a uma função secundária e acessória de meramente proteger "a vontade criadora" do contrato e de assegurar a realização dos efeitos colimados pelos contraentes.

Nessa visão clássica típica do ideário individualista do Estado Liberal Burguês, a tutela jurídica limita-se a possibilitar a estruturação pelos indivíduos de relações jurídicas próprias através da autonomia no contratar, desconsiderando, por reputar impertinentes, a situação econômica e social dos contraentes, no pressuposto de uma igualdade e liberdade no momento de contrair a obrigação.

Tendo a história demonstrado que essa pressuposta igualdade nunca existiu, a concepção individualista clássica do contrato paulatinamente cede passo para uma nova concepção de contrato, " uma concepção social deste instrumento jurídico, para a qual não só o momento da vontade (consenso) importa, mas também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância" (Cláudia Lima Marques, "Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 3ª edição, RT, p.101)

Diversamente da visão clássica, então, o direito, procurando alcançar um verdadeiro equilíbrio contratual na sociedade de consumo moderna, caracterizada pela massificação produtiva, destacará o papel da lei como limitadora e verdadeira legitimadora da autonomia da vontade. Nessa nova perspectiva a cláusula que prevê a exigência de apresentação da lâmina de pagamento para realização de exames e consultas é ao mesmo tempo ilegal e abusiva.

B.1) Ilegalidade da cláusula que obriga a apresentação da última lâmina de pagamento por violação ao direito básico do consumidor de igualdade nas contratações.

A análise cuidadosa dos contratos apreendidos na ação cautelar apensa, demonstrou que das seis operados de planos de saúde Rés dessa ação, apenas duas – PORTO SEGURO e UNIMED, previram, nos instrumentos contratuais que disponibilizaram para o juízo ou o Ministério Público, cláusula de exigência da apresentação da última lâmina de pagamento como condição para acesso aos serviços que oferecem. A Golden Cross e Bradesco Saúde também o fazem, mas apenas nos contratos firmados a partir de finais 1999.


Nada obstante a previsão dessa cláusula, a mesma é nula e de nenhum efeito jurídico por violentar a letra e o espírito do Código de defesa do Consumidor. Assim dispõe o artigo 6º, inciso II da lei nº 8.078/90:

"Art. 6º. São direitos básicos do consumidor

I – omissis

II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações". (grifou-se)

Por igualdade nas contratações, dentre as inúmeras significações que o texto legal permite extrair, deve-se entender que o fornecedor dos serviços e produtos, além de, em decorrência do princípio da transparência, informar o consumidor sobre todos os seus produtos em todas as suas especificidades, tem o dever legal de tratar isonomicamente os consumidores de produtos ou serviços similares, sendo-lhe vedado, por exclusão arbitrária destituída de razoabilidade, oferecer tratamento diferenciado a produtos/serviços e consumidores similares.

Nessa linha de obrigação legal, quando se observa que as Rés (todas sem exceção) oferecem os mesmos serviços/produtos através de expedientes diversos, via individual ou via grupal, à toda evidência que ressuma cristalino o seu dever de tratar ambas as hipóteses de forma contratual isonômica.

Em outro dizer: em um primeiro momento da dinâmica consumeirista, é direito básico do consumidor ser informado de todos o produtos do fornecedor e de todas as modalidades de oferta desse produto. Em um segundo momento, cabe ao consumidor livremente escolher o produto/serviço, e para garantir-se essa liberdade, a lei assegura a igualdade nas contratações para os produtos/serviços similares.

Especificamente quanto as Rés, novamente através da análise dos contratos apreendidos, elas oferecem inúmeros tipos de planos (básico, superior, hospitalar etc…), que podem ser contratados pelos regimes individual ou coletivo (empresa), ou seja, o mesmo plano básico ou superior, etc.., pode ser contratado individual ou em grupo (empresa), sem que as características essenciais que o qualificam sejam alteradas. Nesse sentido, o princípio da igualdade nas contratações de produtos/serviços iguais, garante que o contratante singular não seja agravado em suas condições de contração e vice versa.

Ocorre que a cláusula que ora se impugna – de exigência de apresentação da lâmina de pagamento ou documento que o valha – só se refere às modalidades de contratos firmados a título individual, estando os contratantes dos mesmos tipos de planos oferecidos pelo regime coletivo (por empresa) isentos dessa abusiva exigência, desequilibrando a relação contratual em desfavor dos associados ou segurados individuais.

A missiva da Ré BRADESCO SEGUROS aos seus agentes credenciados, cuja cópia segue anexa, é esclarecedora quanto a esse ilegal tratamento discriminatório quando expressamente dispõe: " a partir de 01/01/2000, ao atender clientes dos planos Bradesco Saúde, cujos cartões de identificação contenham os dizeres ‘Individual’ ou ‘Multi Saúde’ , sejam adotados os seguintes procedimentos: 1. Solicitar sempre do cliente, junto com a apresentação do cartão, o último carnê ou aviso de débito em conta corrente (original ou cópia), relativo a mensalidade do seguro".

O gravame, portanto, é imposto apenas aos segurados/associados vinculados ao regime de contratação individual ou familiar, o que é vedado terminantemente pelo artigo 6º, inciso II do CDC.


Com efeito, o produto é o mesmo apenas o regime ou tipo de contratação é que varia, já que pode assumir as formas de a) individual ou familiar, b) coletivo empresarial ou c) coletivo por adesão (cfe. Art. 16, inciso VII da lei 9.656/98). Ora, exatamente para obviar condutas abusivas por parte dos fornecedores foi que o CDC previu igualdade nas contratações, que não podem prejudicar alguns apenas em função do tipo de contratação que a própria lei assegura, quando os produtos são, em sua essência, idênticos.

Isso tanto se mostra de clareza solar, quando a própria lei que rege a atividade das Rés – 9.656/98, na redação da MP 1.976-29, de 28 de julho de 2000, expressamente vedou esse tipo de tratamento discriminatório ao dispor em seus artigos 30 e 31, verbis:

"Art. 30. Ao consumidor que contribuir para produtos de que tratam o inciso I e o §1º do art. 1º desta Lei, em decorrência de vínculo empregatício, no caso de rescisão ou exoneração do contrato de trabalho sem justa causa, é assegurado o direito de manter sua condição de beneficiário, nas mesmas condições de cobertura assistencial de que gozava quando da vigência de contrato de trabalho, desde que assuma seu pagamento integral"

"Art. 31. Ao aposentado que contribuir para produtos de que tratam o inciso I e §1º do art. 1º desta Lei, em decorrência de vínculo empregatício, pelo prazo mínimo de dez anos, é assegurado o direito de manutenção como beneficiário, nas mesmas condições de cobertura assistencial de que gozava quando da vigência do contrato de trabalho, desde que assuma o seu pagamento integral.

Tais normas concretizam o comando inserto no artigo 6º, inciso II do CDC, na medida em que, vedam o agravamento do status do associado/segurado, pelo simples fato de migrar de um plano coletivo empresarial para um plano individual em virtude seja da perda de seu emprego, seja de sua aposentadoria.

A admitir-se a legalidade da cláusula, seria possível às Rés determinarem ao associado que migrou do plano coletivo empresa – onde não existe a obrigatoriedade de apresentação de lâmina de pagamento – passasse a portá-la, já que agora vinculado ao mesmo plano só que no regime individual, o que anda às testilhas com cogente preceito legal de ordem pública supratranscrito.

A exigência da apresentação da última lâmina de pagamento ou documento que o represente prevista em cláusula contratual apenas para os segurados individuais é ilegal e, portanto, balda de força jurígena, não se podendo ainda olvidar que vem em prejuízo exatamente daqueles de menor poder nas relações de consumo, que por não possuírem força de barganha que um grupo empresarial detém, estão mais suscetíveis a pressões ilegais e, portanto, são merecedores de um maior amparo judicial.

B.2) A abusividade da cláusula por importar em indevida transferência do risco da atividade econômica.

Toda atividade econômica gera riscos. Riscos que a própria atividade econômica causa em prejuízo de terceiros e riscos que o exercício dessa atividade sofre em função de comportamentos fraudulentos de terceiros. Esses riscos profissionais, não se discute, devem, dentro dos princípios fundamentais que subjazem ao nosso sistema jurídico, serem suportados por aquele que exerce tais atividades.

Não obstante esteja assentado tanto doutrinária como jurisprudencialmente que os riscos que gera e sofre qualquer atividade econômica devam ser alocados para quem as exerce, o certo é que os detentores do poder econômico sempre buscam formas de burlar os naturais efeitos colaterais inconvenientes ou indesejados de sua atividade.


Para alcançar tais objetivos, valem-se de vários expedientes, dentre os quais o da transferência desses riscos para o contratante mais fraco. Essa questão assume especial relevância nos atuais contratos de massa que permeiam a moderna sociedade de consumo.

Se na concepção tradicional a relação contratual seria obra de dois parceiros em posição de igualdade perante o direito e a sociedade, os quais discutiriam individual e livremente as cláusulas de seu acordo de vontade, hoje o que se observa é uma realidade completamente diversa onde prevalecem os contratos de adesão, ou seja, contratos adrede preparados pelo fornecedor, cujas cláusulas são preestabelecidas pelo parceiro contratual mais forte, sem prévio debate do conteúdo do contrato, restando ao parceiro economicamente mais fraco (in casu o consumidor) a mera alternativa de aceitar ou rejeitar o contrato, não podendo modificá-lo de maneira relevante.

A realidade de um mundo econômico complexo como é o atual conduz ao forçoso reconhecimento de que este tipo de técnica contratual é indispensável ao moderno sistema de produção em massa, sendo impensável eliminá-la da realidade social. É um mecanismo importante para o fortalecimento do mercado produtivo, na medida em que traz vantagens evidentes para as empresas, tais como celeridade, segurança, previsão de riscos, etc…, mas ninguém duvida nem subestima seus inegáveis perigos para os vulneráveis contratantes consumidores.

Atento a essa realidade o Legislador instituiu como princípio básico o da "equidade contratual", instituindo normas imperativas impeditivas da utilização de cláusulas abusivas, entendidas tais como aquelas que "dão origem a uma situação de desequilíbrio entre as partes, absolutamente repudiada pelo Código de Defesa do Consumidor, que, expressamente reconhece no inciso I do art. 4º a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo" (Arruda Alvim e outros, Código de Defesa do Consumidor Comentado, 2ª edição, RT, p.250).

Assim, na dicção de legal, são consideradas abusivas todas e quaisquer cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas ou coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou equidade, presumindo-se exagerada a vantagem que ofenda os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence ou restrinja direitos fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto.

Não é preciso muita força de argumentação para se reconhecer como abusiva a cláusula contratual que transfere os riscos da atividade exercida pelas Rés – parte contratante mais forte – para os consumidores – parte contratante mais fraca. Que a cláusula objurgada busca transferir os riscos de fraude contra a atividade econômica que as operadoras de planos de saúde exercem são elas mesmas que o afirmam.

Com efeito, na missiva que a Bradesco Saúde encaminhou a seus segurados, cópia anexa, consta como justificativa para adoção da medida, reconhecidamente inconveniente:

"Essa medida está sendo tomada em benefício de todos os segurados, uma vez que inibe o uso indevido do seguro, contribuindo para a contenção de custos" (grifou-se)

No mesmo diapasão, A Ré Golden Cross, em depoimento prestado por seu representante no inquérito civil público que apurava a ilegalidade da exigência, afirmou que: "no entender da Golden Cross o maior problema causado pela não apresentação da lâmina se referem aos associados que não efetuaram o pagamento".

O objetivo expresso da exigência é reduzir os riscos de fraude contra o sistema operado pelas Rés. Entretanto, ao invés do otimizarem seus sistemas de controles, as Rés, em função de sua nítida superioridade contratual, optaram por, de modo muito mais simples, embora ilegal e abusivo, repassar esse risco aos seus consumidores.


A abusividade da cláusula exsurge cristalina na medida em que coloca o consumidor em exagerada desvantagem. A uma, porque a transferência desse risco para o consumidor, que deve ser suportado pelas operadoras de planos saúde, ofende os princípios fundamentais do nosso sistema jurídico (CDC art. 51, inciso IV, §1º, inciso I).

A duas, porque essa cláusula implica inúmeras vezes, em restrição de direito fundamental inerente à natureza do contrato que, não só ameaça, como até mesmo inviabiliza o próprio objeto do contrato (CDC art. 51, inciso IV, §1º, inciso II).

Tome-se como exemplo a ocorrência com o consumidor que representou para a instauração do inquérito civil público que culminou com a propositura da presente ação. Embora estivesse em com suas obrigações perante uma das Rés; embora tivesse em mão seu cartão de segurado dentro do prazo de validade e documento de identidade; embora tenha entrado em contato com a sua seguradora informando-lhe da resistência do credenciado em lhe atender, ainda assim, embora tenha cumprido com todas as suas obrigações e até algo mais, não conseguiu realizar a consulta médica que era o objeto de seu contrato de seguro, pelo simples fato de não ter em mãos o boleto de pagamento.

Diante da insensibilidade das Rés para com seus clientes consumidores e consumidores de produtos relativos à saúde, resta ao Judiciário responder ao desesperado questionamento do consumidor, repita-se à exaustão, cumpridor de todas as suas obrigações para com as Rés e assim formulada: Será que não nos é permitido sentir dor e procurar um médico independentemente de portarmos uma boleta de pagamento?

À toda evidência que a resposta há de ser positiva. É direito do consumidor que está em dias com suas obrigações perante as Rés; que porta seu cartão de associado/segurado dentro do prazo de validade; que porta seu documento de identidade, auferir a contraprestação contratual a que se obrigaram as Rés, independentemente de portarem uma boleta de pagamento.

Sinale-se, para que fique absolutamente claro o absurdo da situação, que o Ministério Público Federal não está agindo em defesa de consumidores relapsos ou inadimplentes, mas sim em defesa dos direitos dos consumidores dos produtos relacionados com a sua saúde cumpridores de todos os seus deveres e que, mesmo assim, no momento de dor, de fragilidade, de doença; no momento em que mais precisam, não conseguem obter o objeto de seu contrato que vem sendo pago na imensa maioria das vezes por anos a fio, em virtude de uma exigência que, a par de ilegal e abusiva, em grande parte dos casos não possui sequer amparo contratual.

Bem da verdade, a questão da injurídica e abusiva transferência do risco profissional para o consumidor por parte das operadoras de planos de saúde não é nova, tendo mostrado sua faceta mais cruel na questão das chamadas "doenças pré-existentes", cuja exclusão de cobertura por cláusula contratual deu margem a inúmeros procedimentos iníquos contra o consumidor, na medida em que as operadoras de planos de saúde, transferiam para os consumidores o ônus de provar que aquela doença, tardiamente classificada pelo fornecedor do serviço como pré-existente, de fato não o era.

Nítido expediente de transferência dos riscos a que se sujeita a atividade econômica exercida pelas Rés, posto que a não comunicação dessa circunstância ou a sua comunicação, alteram a realidade sobre a qual se estrutura a relação contratual. Esse expediente mereceu, inicialmente por parte do Judiciário, veemente repúdio, tendo sido declaradas ineficazes tais cláusulas, face à sua clara abusividade.

À resposta do Judiciário seguiu-se mais tardiamente como sói ocorrer, a do Legislativo. Assim, tratando especificamente quanto a essa modalidade de transferência de risco profissional do fornecedor para o consumidor, dispõe o artigo 11 da lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, na redação da Medida Provisória nº 1.976-29/2000, verbis:


"Art. 11. É vedada a exclusão de cobertura às doenças e lesões pré-existentes à data de contratação dos produtos dos produtos de que tratam o inciso I e §1º desta lei, após vinte e quatro meses de vigência do aludido instrumento contratual, cabendo à respectiva operadora o ônus da prova e da demonstração do conhecimento prévio do consumidor ou beneficiário." (grifos nossos)

Parágrafo único. É vedada a suspensão da assistência à saúde do consumidor ou beneficiário, titular ou dependente, até a prova de que trata o caput, na forma de regulamentação a ser editada pela ANS".

O espírito da lei – que no dizer do saudoso Hely Lopes forma com a sua letra um todo harmônico e indestrutível – é claro e inequívoco, ao expressamente afirmar que o risco de fraudes a que está sujeita a atividade das operadoras de planos de saúde, devem por elas ser suportado, na medida em que aos agentes econômicos compete o ônus de provar o fato que os isentaria de fornecer os serviços a que por contrato se obrigaram, sendo-lhes cogentemente vedado transferir esse ônus ao consumidor. Não cabe a este provar que não sabia ser portador de doença pré-existente e que, portanto, não fraudou a atividade econômica exercida pelas Rés, assim, como não cabe ao consumidor provar que está em dia, apresentando a última lâmina de pagamento, para provar que é inocente, que é honesto, que não é fraudador, que não é criminoso. Esse ônus é de exclusiva responsabilidade das Rés.

Nessa perspectiva, observa-se que a abusividade da cláusula contratual que impõe ao consumidor o dever de apresentar o último comprovante de pagamento para ter acesso aos serviços médicos, gera conseqüências iníquas que irradiam efeitos para além dos danos meramente patrimoniais em função do descumprimento do pactuado, atingindo o patrimônio moral dos consumidores, na medida em que, desrespeitando o princípio da dignidade humana e da presunção de inocência constitucionamente assegurados, parte da premissa de que aquele consumidor que se apresenta para a realização de consulta e/ou exame médico é um inadimplente contumaz, um potencial fraudador, um potencial criminoso. À dor física da doença, agregam as Rés aos seus consumidores a dor moral, a dor da alma, no dizer de Aguiar Dias, que merece reparação.

VI – Do dano moral coletivo

A atuação (rectius: omissão) da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS e das operadoras de planos/seguros de saúde, flagrantemente iníqua aos consumidores, provocou inúmeros danos.

A ilegalidade da omissão do dever jurídico de agir da ANS e a atuação das operadoras-rés, atingiram não só cada um dos associados/segurados-consumidores do serviço prestado, em sua existência individual, mas todo um grupo de consumidores. Isso porque a exigência de apresentação da última Lâmina de pagamento dirigiu-se a todos os eventuais consumidores cuja contratação se deu sob o regime Individual ou Familiar, ou seja, milhões de pessoas em todo o país.

Perpetradas as lesões patrimoniais através de contratos celebrados em massa, decorrente de prática respaldada pelo poder público representada pela omissão ilícita da ANS, atingiu-se o sentimento de confiança que os cidadãos mantêm, e devem manter, em face do Estado e da efetividade da ordem jurídica.

Por não ter restado incólume esse sentimento de confiança que deve permear o inter-relacionamento Estado/cidadão, violou-se interesse de titularidade de todo um grupo, e não somente dos indivíduos que o compõe.

Esse prejuízo — que segue paralelo ao dano material —, há de ser ressarcido, na modalidade de dano moral, conforme previsto no inciso V do artigo 1º da Lei n° 7.347/85:


"Art. 1º – Regem-se pelas disposições desta lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (grifamos)

O Código de Defesa do Consumidor, por seu turno, também contempla a indenização por dano moral, nos incisos VI e VII do artigo 6º, escudado pela previsão da nossa Carta de 1988, na dicção do inciso V do artigo 5º. Diz o citado artigo do Código de Defesa do Consumidor que:

"Art. 6.º. São direitos básicos do consumidor: VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais, morais, individuais, coletivos e difusos; VII – o acesso aos órgãos judiciários e administrativos, com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção jurídica, administrativa e técnica aos necessitados."

A doutrina também apoia a tese da reparação do dano moral. Como lembra o estudioso Carlos Alberto Bittar Filho:

" …chega-se a conclusão de que o dano moral coletivo é a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico: quer isso dizer, em última instância , que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial." (ver in " Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro, Direito do Consumidor, vol. 12- Ed. RT)

No mesmo diapasão André de Carvalho Ramos, que, analisando o dano moral coletivo, concluiu que:

"Assim, é preciso sempre enfatizar o imenso dano moral coletivo causado pelas agressões aos interesses transindividuais. Afeta-se a boa-imagem da proteção legal a estes direitos e afeta-se a tranqüilidade do cidadão, que se vê em verdadeira selva, onde a lei do mais forte impera" ("A ação civil pública e o dano moral coletivo" Direito do Consumidor, vol. 25- Ed. RT, p. 83)

Continua o citado autor, dizendo:

"Tal intranqüilidade e sentimento de desapreço gerado pelos danos coletivos, justamente por serem indivisíveis, acarretam lesão moral que também deve ser reparada coletivamente. Ou será que alguém duvida que o cidadão brasileiro, a cada noticia de lesão a seus direitos não se vê desprestigiado e ofendido no seu sentimento de pertencer a uma comunidade séria, onde as leis são cumpridas? A expressão popular ‘o Brasil é assim mesmo’ deveria sensibilizar todos os operadores do Direito sobre a urgência na reparação do dano moral coletivo" ("A ação civil pública e o dano moral coletivo" Direito do Consumidor, vol. 25- Ed. RT, p. 83)

No suporte dessa responsabilidade também pelo o Poder Público comparece novamente nossa Constituição Federal, quando, no seu artigo 37, § 6°, estabelece a responsabilidade civil do Estado por ato de seus agentes. E diz o douto José Afonso da Silva que:

"Responsabilidade civil significa a obrigação de reparar os danos ou prejuízos de natureza patrimonial (e, às vezes, moral) que uma pessoa cause a outrem." ("Curso de Direito Constitucional Positivo", RT, 6a. ed., pág. 567).


Nessa ordem de considerações, a coletividade formada pelos consumidores do serviço de planos/seguros de saúde prestado pelas operadoras-rés inevitavelmente sentiram a falta de efetividade de uma ordem jurídica justa em face da predisposição, por longo período de tempo, de cláusulas abusivas em contratos por adesão ou o que é mais grave exigências abusivas desprovidas de amparo contratual, sem que nenhuma fiscalização administrativa fosse realizada em contrário.

Assim, esse sentimento de desapreço por seus direitos mais elementares, o sentimento de frustração, de impotência frente aos poderosos; esse sentimento de sujeição indevida a uma relação de poder e não uma relação de direito, os constrangimentos a que foi submetida parcela considerável dos consumidores dos produtos das Rés, essa verdadeira dor da alma, esse dano moral da coletividade deve ser reparado por todos aqueles que por ação deram causa a ele ou por injurídica omissão, embora não o tenham causado diretamente, permitiram sua causação em virtude de inação quando o ordenamento jurídico lhe atribuiu um verdadeiro e inafastável poder-dever de agir.

VII – Inconstitucionalidade e ineficácia da limitação dos efeitos da coisa julgada aos limites da competência territorial do órgão prolator (Art. 16 da Lei 7.347/85, alteração introduzida pela Lei 9.494/97) na tutela jurisdicional dos interesses e direitos difusos coletivos e individuais homogêneos

A novel redação do artigo. 16 da LACP (Lei da Ação Civil Pública), que procurou restringir os efeitos da sentença aos "limites da competência territorial do órgão prolator" é ineficaz e inconstitucional pelos seguintes fundamentos.

Restringir a amplitude dos efeitos da coisa julgada nas ações coletivas a uma pequena parcela (ocorridas dentro de determinado território) das relações entre autor (sociedade) e réu contraria frontalmente a política constitucional de defesa dos interesses e direitos difusos, além de ofender o princípio constitucional da universalidade da jurisdição e do acesso à justiça.

Sobre o tema, muito bem aduziu André de Carvalho Ramos:

" (…). Esta é a sistemática da tutela coletiva em nosso país, que traduziu-se pela adoção da teoria da coisa julgada secundum eventum litis.

"A eficácia ultra partes e erga omnes da coisa julgada relacionam-se com os limites subjetivos desta, já que os interesses tratados pela ação coletiva são em geral indivisíveis pela sua natureza ou pela política legislativa favorável a uma efetiva tutela de direitos.

"Tal teoria da coisa julgada, adotada pelo legislador infraconstitucional (CDC e LACP), dá substância ao princípio constitucional da universalidade da jurisdição e do acesso à justiça.

"E a decorrência do tratamento coletivo das demandas é o sistema de substituição processual (ou legitimação adequada, concorrente e disjuntiva), que possibilita a tutela destes interesses transindividuais por entes como Ministério Público.

"Se o autor é substituto processual de todos os interessados, não se pode limitar os efeitos de sua decisão judicial àqueles que estejam domiciliados no estrito âmbito da competência territorial do Juiz.


"Como salienta o douto Ernane Fidélis dos Santos, ‘nas hipóteses de substituição processual, sujeito da lide é o substituído, sofrendo as conseqüências da coisa julgada’.

"Isso pois o caso de limitação seria não de competência, mas de jurisdição. Se o Juiz de 1º Grau pode conhecer da ação de um substituto processual como o Ministério Público, deve sua decisão valer para todos os substituídos.

"Isso pois, como esclarece a douta Juíza Federal Marisa Vasconcelos, ‘não é critério determinante da extensão da eficácia da coisa julgada material, na ação civil coletiva, a competência territorial do órgão julgado, mas o contrário, o critério determinante dessa extensão reside na amplitude e na indivisibilidade do dano ou ameaça de dano que se pretende evitar’.

"Nas lides coletivas fica patente que o Juiz, ao prolatar decisão benéfica, atinge com isso todos que se encaixem na situação objetiva analisada. Destarte, a real extensão da aplicação da decisão judicial, seja ela definitiva, seja ela provisória, não deve limitar-se ao âmbito regional de competência territorial do órgão prolator. Tal competência territorial só é utilizada para fixar qual Juiz deve conhecer e julgar a causa.

(…)

"Assim, o efeito erga omnes da coisa julgada é conseqüência da aceitação da forma coletiva de se tratar litígios macrossociais. Não pode ser restringido tal efeito por lei ou por decisão judicial sob pena de ferirmos a própria Constituição do Brasil.

(…)

"Com isso, fica demonstrado que se a Constituição Brasileira, dentro do modelo do Estado Democrático de Direito abraçado, busca, antes de tudo, o acesso à justiça, sendo decorrência disso o tratamento coletivo das demandas. Nada mais certo que a ampliação dos efeitos benéficos de decisão judicial para todos os interessados.

"Ainda são atendidos outros princípios constitucionais, em virtude da identidade de prestação jurisdicional a indivíduos que se encontram em condições iguais, respeitando-se, então, o princípio da isonomia.

"Assim sendo, a Lei 9.494/97, que converteu em lei a MedProv 1.570 é inócua. A competência territorial serve apenas para fixar a competência do juízo. Os efeitos da decisão do Juiz são limitados somente, como frisei, pelo objeto do pedido, que quando for relativo aos interesses transindividuais, atingem a todos os que se encontram na situação objetiva em litígio, não importando onde o local de seu domicílio.

"Competente o juízo, então, devem os efeitos da decisão espalharem-se para todos os substituídos, tendo em vista todos os argumentos acima expostos.

(…)


"Urge, então, a desconsideração do art. 2º da Lei 9.494/97, para a preservação da tutela coletiva de direitos no Brasil."

(…)"

O autor desse luminar artigo arrola dois importantes precedentes jurisprudenciais. Vejamos.

O primeiro, de lavra do Ministro Ilmar Galvão na Reclamação nº 602-6/SP, através do qual o reclamante alegava que não poderia o Tribunal de Alçada paulista decidir sobre jurisdicionados domiciliados em todo o território nacional sem ofender a competência do Excelso Pretório, reafirmou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que decisão da justiça local pode beneficiar consumidores de todo o país (julgamento em 03.09.1997, já na vigência da Medida Provisória nº 1.570/97, depois convertida na Lei nº 9.494/97):

"O Banco Mercantil de São Paulo S/A ajuizou a presente reclamação, alegando que, na Ação Civil Pública 580.262-2, que lhe moveu o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor-IDEC, o 1º TACivSP, pela sua 11ª Câm., declarou a inconstitucionalidade, em relação a alguns aspectos da Lei 7.730/89, com efeito erga omnes, para todo o território nacional, ampliando, assim, a competência da Justiça local e dando-lhe a possibilidade de fixar normas para todo o Brasil em matéria de inconstitucionalidade de lei.

(…)

"Afastadas que sejam as mencionadas exceções processuais — matéria cujo exame não tem aqui cabimento — inevitável é reconhecer que a eficácia da sentença, no caso, haverá de atingir pessoas domiciliadas fora da jurisdição do órgão julgador, o que não poderá causar espécie, se o Poder Judiciário, entre nós, é nacional e não local. Essa propriedade, obviamente, não seria exclusiva da ação civil pública, revestindo, ao revés, outros remédios processuais, como o mandado de segurança coletivo, que pode reunir interessados domiciliados em unidades diversas da federação e também fundar-se em alegação de inconstitucionalidade de ato normativo, sem que essa última circunstância possa inibir o seu processamento e julgamento em Juízo de primeiro grau que, entre nós, também exerce controle constitucional das leis."

O segundo, proferido pelo Juiz Newton de Lucca, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que, na qualidade de Relator de Agravo de Instrumento, negou pedido de concessão de efeito suspensivo ao agravo interposto contra decisão do Juízo da 18ª Vara Federal de São Paulo que, desconsiderando a novel redação do art. 16 da Lei nº 7.347/85, concedeu alcance nacional à decisão liminar proferida em ACP proposta pelo Ministério Público Federal contra a TELEBRÁS e em defesa dos consumidores do serviço público de telefonia:

"Entretanto, há que ser analisadas quais seriam as conseqüências da alteração legislativa engendrada pelo Poder Executivo por intermédio da Lei n. 9.494/97, que alterou o art. 16 da Lei n. 7.347/85, para limitar seu poder de ação aos limites de competência territorial do órgão prolator. (…)

"Não há dúvida que, em certos casos, tal restrição aos limites objetivos da coisa julgada em ação civil pública traduz-se em flagrante retrocesso, especialmente quando se tem em mente que esse tipo de processo é essencial à manutenção da Democracia e do Estado-de-direito. Por outro lado, ele tem o condão de evitar que decisões conflitantes surjam ao redor desse país continental, inviabilizando políticas públicas relevantes, tomadas no centro do poder.


(…)

"No caso em exame, entretanto, não me parece que esteja havendo abuso na concessão da liminar ora atacada. É preciso ter em mente que o interesse em jogo é indivisível, difuso, não sendo possível limitar os efeitos da coisa julgada a determinado território.

"Perceba-se que a portaria impugnada foi editada por autoridade com competência nacional e sua área de ação também pretende ser nacional. Por sua vez, ou autor da demanda é o Ministério Público Federal, que é uma entidade una, cuja área de atuação, por sua vez, também abrange todo o território nacional.

"Assim, não me parece atender aos encômios da boa jurisdição exigir-se a propositura de tantas ações civis públicas quantas forem as subsidiárias da TELEBRAS.

"Isso posto, recebo o presente recurso em seu efeito meramente devolutivo.

A lei não pode impor vedações ou restrições à ação civil pública, cujos limites, como os do mandado de segurança, decorrem exclusivamente do texto constitucional. Assim, se o dano ou a ameaça de dano a interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos tiver abrangência nacional, a decisão do juízo competente para conhecer a causa em primeiro grau de jurisdição terá que ter a mesma amplitude, sob pena de tornar ineficaz a prestação jurisdicional desses interesses e direitos nos termos pretendidos pela Constituição.

A indignação com o malsinado dispositivo fez vibrar a pena de Ada Pellegrini Grinover que, ao afirmar que o Executivo foi infeliz em editar a Medida Provisória nº 1.570/97 (convertida na Lei nº 9.494/97), destacou que "limitar a abrangência da coisa julgada nas ações civis públicas significa multiplicar demandas, o que, de um lado, contraria toda a filosofia dos processos coletivos, destinados justamente a resolver molecularrmente os conflitos de interesses, ao invés de atomizá-los e pulverizá-los; e, de outro lado, contribui para a multiplicação de processos, a sobrecarregarem os tribunais, exigindo múltiplas respostas jurisdicionais quando uma só poderia ser suficiente. No momento em que se o sistema brasileiro busca saídas até nos precedentes vinculantes, o menos que se pode dizer do esforço redutivo do Executivo é que vai na contramão da história".

Conseqüência inevitável da restrição dos efeitos da coisa julgada nas ações coletivas ao limite da competência territorial do juiz é a multiplicação das demandas judiciais por tantas vezes quantas for o número de comarcas no país, trazendo inúmeras soluções judiciais ao mesmo caso, abalando não somente os princípios constitucionais da isonomia, da universalidade da jurisdição e do acesso à justiça, mas também o princípio do efeito integrador, pelo qual "na resolução dos problemas jurídicos-constitucionais deve dar-se primazia aos critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política".

Além de ofender a todos esses princípios constitucionais, a restrição do alcance da coisa julgada das ações civis públicas ao limite da competência territorial do juiz ofende ao princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade que, segundo Paulo Bonavides, "trata-se daquilo que há de mais novo, abrangente e relevante em toda a teoria do constitucionalismo contemporâneo, (…), é na qualidade de princípio constitucional ou princípio geral do direito, apto a acautelar do arbítrio do poder o cidadão e toda a sociedade, que se faz mister reconhecê-lo já implícito e, portanto, positivado em nosso Direito Constitucional".


Assim, as condicionantes dotadas pela lei à amplitude dos efeitos da coisa julgada da ação civil pública na proteção dos interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, que possuem sede constitucional, hão de ser de tal natureza que não aportem lesão ao princípio da razoabilidade, projeção concreta do substantive due process of law. Isso porque o Poder Público não possui legitimidade para legislar de modo arbitrário ou irrazoável.

A combatida norma introduzida pela Lei nº 9.494/97, ao contrário de conferir ordem e exiqüibilidade ao conteúdo da franquia maior, impôs-lhe verdadeira restrição.

No julgamento da medida liminar requerida na ADIn. 1.158-8, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, em 19.12.94, ratificou a tese de que a norma legal deve se justificar a partir dela mesma, em obediência ao critério da razoabilidade. Naquela ocasião, o Ministro Celso de Mello, Relator do processo, explicitou o fundamento jurídico de seu voto no seguinte trecho:

"(…)Todos sabemos que a cláusula do devido processo legal – objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição – deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só no aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário ou irrazoável.

"A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou, como no caso, destituída do necessário coeficiente de razoabilidade."

Assim, submetida ao crivo do citado princípio constitucional, a norma da Lei nº 9.494/97 aparece incompatível com a Carta Maior, por se tratar de norma que estabelece restrição imoderada, cuja observância restringe sobremodo, e até mesmo inviabiliza, o exercício dos direitos difusos e da ação civil pública na forma prescrita constitucionalmente.

Não bastasse esbarrar em inconstitucionalidade, a alteração introduzida pela Lei nº 9.494/97 na norma do art. 16 da Lei nº 7.347/85 fracassa também por restar, no sistema em que se insere, reduzida à ineficácia, como tão bem demonstram Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery:

"A MedProv 1570/97, art. 3º, que modificou a redação da LACP 16, para impor limitação territorial aos limites subjetivos da coisa julgada, não tem eficácia e não pode ser aplicada às ações coletivas. Confundiram-se os limites da coisa julgada "erga omnes", isto é, quem são as pessoas atingidas pela autoridade da coisa julgada, com jurisdição e competência, que nada têm a ver com o tema. Pessoa divorciada em São Paulo é pessoa divorciada no Rio De Janeiro. Não se trata de discutir se os limites do juiz de São Paulo podem ou não ultrapassar seu território, atingindo o Rio de Janeiro, mas quem são as pessoas atingidas pela sentença paulista. O equívoco da MedProv 1570/97 demonstra que quem a redigiu não tem noção, mínima que seja, do sistema processual das ações coletivas. De outra parte, continuam em vigor os arts. 18 da LAP e 103 do CDC , que se aplicam às ações fundadas na LACP, por expressa disposição do CDC 90 e da LACP 21. Este é o segundo fundamento para a ineficácia do errado e inócuo art. 3º da MedProv 1570/97. Enquanto não modificados, também, os artigos 18 da LAP e 103 do CDC, o art. 16 da LACP não produzirá o efeito que o Presidente da República pretendeu impor. Foi negada liminar na ADIn ajuizada contra a MedProv. 1570 3º, que modificou a redação da LACP 16 ( STF, Pleno, ADIn 1576-1, relator Ministro Marco Aurélio, j. 16.4.1997, m.v., DJU 24.4.97, pag. 14914)"


Por fim, Importante e recente decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região sufraga este entendimento:

"ADMINISTRATIVO. SERVIÇOS DO SUS. TABELAS DE REMUNERAÇÃO. ACRESCIMO DE 9,56%. AÇÂO CIVIL PÚBLICA. LIMINAR. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EFEITO SUSPENSIVO DENEGADO. AGRAVO REGIMENTAL.

A modificação da redação do art. 16 da Lei nº 7.347/85 pela Lei nº 9.494/97, desacompanhada da alteração do art. 103 da Lei n’ 8.078/90, por parcial restou ineficaz, inexistindo por isso limitação territorial para a eficácia "erga omnes" da decisão prolatada em ação civil pública, baseada quer na própria Lei nº 7.347/85, quer na Lei nº 8.078/90.

Decisão recorrida que se mantém por ausência de razões que determinem sua reforma" (AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 1999.04.01.091925-5/RS, Relator Juiz VALDEMAR CAPELETTI).

Diante de todo o exposto, impõe-se o afastamento do limite territorial introduzido pela inconstitucional e ineficaz Lei nº 9.494/97 aos efeitos da coisa julgada nesta ação civil pública.

VIII – Do pedido de tutela antecipada

A Lei n.º 8.952, de 13 de dezembro de 1994, conferiu nova redação ao artigo 273 do Código de Processo Civil, no sentido de possibilitar a antecipação dos efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, verbis:

"Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e:

I – haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou

II – fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu." (grifos nossos)

Comentando o instituto, o processualista Cândido Rangel Dinamarco sintetiza a contribuição essencial e qualitativa da antecipação de tutela ao nosso direito processual:

"O novo art. 273 do Código de Processo Civil, ao instituir de modo explícito e generalizado a antecipação dos efeitos da tutela pretendida, veio com o objetivo de ser uma arma poderosíssima contra os males do tempo no processo." ( in "A Reforma do CPC", 2ª ed., ver. e ampl., São Paulo, Malheiros Editores, 1995)

Trata-se, como se vê, de realização imediata do direito, pois dá ao autor o bem da vida por ele pretendido, possibilitando a efetividade da prestação jurisdicional. Com a possibilidade de antecipação da tutela, presente prova inequívoca e convencido o Juiz da verossimilhança do alegado, a prestação jurisdicional poderá ser adiantada sempre que haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou, ainda, quando fique caracterizado abuso no direito de defesa, de regra mediante expedientes meramente protelatórios à conclusão do processo.


Os dois critérios gerais eleitos pelo legislador para a antecipação de tutela são, portanto, como dispõe a lei processual: prova inequívoca e verossimilhança do alegado. Comentando esses requisitos, o Juiz Federal Teori Albino Zavascki pondera que:

"Atento, certamente, à gravidade do ato que opera restrição a direitos fundamentais, estabeleceu o legislador, como pressupostos genéricos, indispensáveis a qualquer das espécies de antecipação da tutela, que haja (a) prova inequívoca e (b) verossimilhança da alegação. O fumus boni iuris deverá estar, portanto, especialmente qualificado: exige-se que os fatos, examinados com base na prova já carreada, possam ser tidos como fatos certos. Em outras palavras: diferentemente do que ocorre no processo cautelar (onde há juízo de plausibilidade quanto ao direito e de probabilidade quanto aos fatos alegados), a antecipação da tutela de mérito supõe verossimilhança quanto ao fundamento de direito, que decorre de (relativa) certeza quanto à verdade dos fatos. Sob esse aspecto, não há como deixar de identificar os pressupostos da antecipação da tutela de mérito, do art. 273, com os da liminar em mandado de segurança: nos dois casos, além da relevância dos fundamentos (de direito), supõe-se provada nos autos a matéria fática. (…) Assim, o que a lei exige não é, certamente, prova de verdade absoluta, que sempre será relativa, mesmo quando concluída a instrução, mas uma prova robusta, que, embora no âmbito de cognição sumária, aproxime, em segura medida, o juízo de probabilidade do juízo de verdade" (Antecipação da Tutela, editora Saraiva, São Paulo, 1997, fls. 75-76, destacamos).

O conceituado processualista mineiro José Eduardo Carreira Alvim, ao examinar o juízo de delibação empreendido pelo Magistrado frente a verossimilhança dos fatos por ele apreciados, assim disserta:

"A constatação da verossimilhança e demais condições que autorizam a antecipação da tutela dependerá, sempre, de um juízo de delibação, nos moldes análogos ao formulado para fins de verificação dos pressupostos da medida liminar em feitos cautelares ou mandamentais. Esse juízo consiste em valorar os fatos e o direito, certificando-se da probabilidade de êxito na causa, no que pode influir a natureza do fato, a espécie de prova (prova pré-constituída), e a própria orientação jurisprudencial, notadamente a sumulada.

"Esse juízo de delibação pode ter lugar prima facie e inaudita altera parte, em face da natureza do dano temido, ou num momento posterior, como, por exemplo, após a contestação, como acontece com a liminar no mandado de segurança, em que pode ser deixada para depois das informações. Essa possibilidade vem sendo pacificamente reconhecida pelos tribunais." (Código de Processo Civil Reformado, editora Del Rey, 2ª edição, Belo Horizonte, 1995, pp. 103/105).

Na ação civil pública a possibilidade de antecipação de tutela ganha relevo na medida em que com este instrumento processual visa-se a tutela de interesses difusos, coletivos e coletivos lato sensu, bens de vida para toda a sociedade, como no presente caso. Neste sentido, tem-se pronunciado a doutrina de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, em seu monumental Código de Processo Civil Comentado:

"3. Antecipação da tutela. Pelo CPC 273 e 461, § 3°, com a redação dada pela L 8952/94, aplicáveis à ACP (LACP 19), o juiz pode conceder a antecipação da tutela de mérito, de cunho satisfativo, sempre que presentes os pressupostos legais. A tutela antecipatória pode ser concedida quer nas ações de conhecimento, cautelares e de execução, inclusive de obrigação de fazer. V. coment. CPC 273, 461, § 3° e CDC 84, § 3° ." (3ª edição, revista e ampliada, Revista dos Tribunais, 1997, p. 1.149)


No caso ora posto sub judice, todos os requisitos exigidos pela lei processual para o deferimento da tutela antecipada encontram-se reunidos.

De fato, não há que se questionar sobre a efetiva realidade dos fatos, posto que é notória a exigência por parte das operadoras de planos de saúde Rés, de que grande contingente de seus clientes portem a última lâmina de pagamento para a realização de consultas e/exames.. De outro lado, as próprias Rés reconhecem em depoimentos ou informações prestadas perante o Ministério Público Federal a adoção de tais condutas, sempre sob o pálido argumento de benefício ao consumidor, conforme documentos anexos.

A verossimilhança da alegação decorre da própria certeza relativa aos fatos. O fumus boni iuris encontra-se igualmente presente, assentado sobre os argumentos jurídicos anteriormente deduzidos, que rapidamente podem ser sumariados a) na exigência de comportamento gravoso aos consumidores, sem cláusula contratual que a autorize, na imensa maioria das hipóteses; b) quando presente referida cláusula, na sua ilegalidade por ofender o direito de igualdade nas contratações previsto no artigo 6º, inciso II do CDC, bem como na sua abusividade por estabelecer obrigação iníqua de transferência do risco que sofre a atividade econômica exercida pelas Rés, que coloca o consumidor em desvantagem exagerada na medida em que essa transferência ofende os princípios fundamentais do nosso sistema jurídico, além de ameaçar e em vários casos denegar o próprio objeto do contrato.

O perigo do dano irreparável também existe. Diz o artigo 84 da lei 8.078/90, aliás, nos mesmos termos do artigo 461 do Código de Processo Civil, que havendo justificado receio de ineficácia do provimento final pode o juiz conceder a tutela antecipada. Ora, o periculum in mora é notório, na medida em que inúmeros consumidores dos serviços da saúde prestados pelas operadoras Rés não estão conseguindo obter o objeto de seu contrato, embora estejam quites com suas obrigações contratuais, sendo que a grande maioria, em virtude da própria fragilidade emocional que a doença lhes acarreta sequer promovem qualquer tipo de ação na defesa de seus direitos, cujo stress pode lhe causar ainda o agravamento de seu quadro clínico.

O exemplo do consumidor representante é emblemático, pois, embora tenha ele mesmo conseguido entrar em contato com seu plano de saúde, que lhe informou de sua plena regularidade contratual, não conseguiu ser atendido pelo médico/hospital credenciado, porque tanto este quanto seu próprio plano se recusaram a formalizar contato telefônico entre si, deixando o doente ao completo desamparo por simplesmente não estar portando a sua última lâmina de pagamento. Esse não é o único caso. Os representantes da clínica Prof. José Kós, em depoimento prestado perante o Ministério Público reconheceram que outros casos na mesma situação receberam o idêntico tratamento.

Está-se falando de uma única empresa conveniada. Agora multiplique-se pelo número de conveniados e ter-se-á uma idéia de quantos consumidores, neste exato momento, em todo o Brasil estão sendo vilipendiados em seus direitos. Milhares, talvez milhões.

Impor a esses consumidores, cuja doença já lhes acarreta extremo gravame e sofrimento, o término da ação judicial para o gozo de seu direito seria manter, por prazo indefinido, a situação de injustiça e de violação aos seus direitos fundamentais.

De outro lado não existe a mínima possibilidade de irreversibilidade do provimento jurisdicional antecipatório e também não se apresenta o periculum in mora inverso, na medida em que todas as operadoras de planos de saúde Rés possuem instrumentos eficazes para coibir práticas fraudulentas contra a sua atividade, através de sistema 0800 ou URA – unidade de resposta autônoma, que, sinalem-se já são utilizados pelas mesmas para consultas e autorizações de exames mais complexos e dispendiosos e internações.


A ausência do periculum in mora inverso se mostra mais evidente, na medida em que se leva em consideração o dado de que as Seguradoras de Saúde Rés, possuem a relação média de 70% de segurados pelo regime de plano empresa e 30% pelo regime individual/familiar, situação que se inverte relativamente aos planos de saúde de menor potencial numérico e econômico, que possuem a relação de 60% a 80% de clientes no regime individual e que, portanto, seriam os mais seriamente atingidos, porém, paradoxalmente, foram exatamente os que firmaram termo de compromisso de ajustamento de conduta para cessar essa exigência.

Destarte, em face de todo o exposto nesta exordial, e com supedâneo no art. 273 e §§ 1º e 2º e art. 461 e §§ 3º e 4º do CPC, c/c os arts. 12 e 19 da Lei n.º 7.347/85 e 84 do Código de Defesa do Consumidor, REQUER o Ministério Público Federal se digne Vossa Excelência a conceder, decisão liminar inaudita altera pars, de abrangência nacional, determinando:

I) Para as operadoras de planos de saúde Rés que, no prazo de 05 (cinco) dias a contar da intimação da concessão da medida, sob pena de multa diária de R$30.000,00 (trinta mil reais) em caso de descumprimento:

a. Se abstenham (obrigação de não fazer) de exigir de seus associados/segurados, que atualmente estão submetidos a tal exigência, a apresentação da última lâmina/boleto de pagamento ou documento que lhe faça às vezes, quando da realização de qualquer procedimento relativo aos serviços oferecidos pelas Rés, diretamente ou por seus credenciados/referenciados;

b. Informem (obrigação de fazer) a todos os seus referenciados/credenciados que os mesmos estão impedidos de exigir de qualquer de seus associados/segurados e por qualquer motivo, a apresentação da última lâmina de pagamento ou documento que lhe faça às vezes, para ter acesso a qualquer procedimento médico/hospitalar;

c.

d. Comuniquem (obrigação de fazer) a todos os seus associados/segurados que os mesmos estão desobrigados de portar a última lâmina de pagamento ou documento que lhe faça às vezes, quando da realização de qualquer procedimento assegurado por seu plano/seguro de saúde;

e.

f. Faça publicar, em pelo menos dois jornais de circulação nacional por três dias seguidos, bem como no Diário Oficial da União, os termos desta decisão judicial, itens ‘a’, ‘b’ e ‘c’.

g.

h. Promovam, no prazo 5 dias, a contar do término do prazo previsto no pedido para as alíneas ‘a’ ‘b’ e ‘c’, a comprovação de sua adoção e, da data da última publicação, encaminhem ao juízo cópias da mesmas, alínea ‘d’;

i.

II) Para a Agência Nacional de Saúde Suplementar:

f. Fiscalize e multe em caso de descumprimento, (obrigação de fazer) se as operadoras-Rés estão cumprindo com a determinação judicial;


g.

IX – Dos pedidos finais

Diante o exposto, requer o Ministério Público Federal:

1. a citação da Agência Nacional de Saúde Suplementar, na pessoa de seu Procurador Autárquico representante, e as demais Rés, nas pessoas de seus representantes legais, nos endereços que constam de suas qualificações, para, querendo, contestar a presente ação e acompanhá-la em todos os seus termos, até final procedência, sob pena de revelia e confissão;

2. seja julgada procedente a pretensão ora deduzida, declarando-se a ineficácia das cláusulas contratuais que exigem como requisito para acesso aos procedimentos de saúde a apresentação da última lâmina de pagamento, quando tais cláusulas existirem, confirmando-se, em definitivo, todos os pedidos requeridos em sede de tutela antecipada, condenando-se as operadoras de planos de saúde Rés e a Agência Nacional de Saúde Suplementar nas obrigações ali descritas;

3.

4. A condenação das Rés ao pagamento de danos morais coletivos, a serem fixados ao prudente arbítrio do juízo, levando em conta o poderio econômico das Rés, a fragilidade extremada do consumidor doente, de forma a coibir novas condutas injurídicas similares, tudo em conformidade com a teoria do desestímulo a ser revertido para o fundo previsto no artigo 13 da lei nº 7.347/85, bem como ao pagamento das verbas de sucumbência;

5.

Protestando por todo gênero de prova em direito admitido, com expresso requerimento de concessão do direito de inversão ao ônus da prova a favor do consumidor, nos termos do artigo 6º, inciso VIII do CDC, dá-se à causa o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Rio de Janeiro, 04 de setembro de 2000

CELSO DE ALBUQUERQUE SILVA

Procurador da República

(Trabalho supervisionado pela professora de Responsabilidade Civil, do Curso de Direito do Unifoa, Volta Redonda, Lenita Maria Leite Alckmin)

Bibliografia:

1) Página oficial da ANS — www.ans.gov.br;

2) Texto: A responsabilidade civil do Estado por conduta omissiva por João Agnaldo Donizeti Gandini – Juiz de Direito em Ribeirão Preto (SP), mestrando pela Unesp, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Ribeirão Preto, disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4365;

3) Lei 9961/2000 – cria a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS e dá outras providências;

4) Texto: A responsabilidade civil por atos da administração pública no direito brasileiro por Érico Rodolfo Abreu de Oliveira; fornecido pela docente da disciplina;

5) Direito Civil: Responsabilidade Civil / Silvio e Salvo Venosa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. (Coleção direito civil; v. 4)

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