Defesa prévia

Detran não pode cobrar multa sem permitir defesa prévia

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21 de novembro de 2005, 11h49

A administração pública não pode cobrar multa de trânsito sem dar ao motorista a possibilidade de defesa prévia. Com esse entendimento, o juiz Álvaro Luis de A. Ciarlini, da 2ª Vara da Fazenda Pública do Distrito Federal, mandou o Detran suspender a cobrança de multas de dez motoristas.

O juiz determinou que as multas ficarão suspensas até que o Detran expeça a notificação das autuações dirigidas aos proprietários dos veículos. Cabe recurso. Segundo os autos, os condutores receberam as notificações informando sobre a penalidade e entraram na Justiça com a alegação de que o procedimento ofendeu o princípio da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.

Os motoristas solicitaram a suspensão provisória dos registros de multas e da pontuação na carteira de habilitação, para que pudessem pagar o licenciamento e o seguro nacional dos veículos sem o recolhimento prévio das multas.

Para se defender, o Detran alegou que o princípio da legítima defesa não foi violado, pois a exigência de notificação da penalidade, prevista no artigo 282 do Código de Trânsito Brasileiro, dá oportunidade aos infratores o direito de defesa perante o próprio Detran.

O juiz não acolheu o argumento. “Esse procedimento não se caracteriza como defesa prévia, pois a oitiva do infrator é posterior à fixação da penalidade”, considerou. De acordo com o juiz, a pena de multa foi aplicada de plano, sem que os autores pudessem exercer sua defesa.

Processo 2004.01.1.084679-3

Leia a íntegra da decisão

Circunscrição: 1 — BRASILIA

Processo: 2004.01.1.084679-3

Vara: 112 — SEGUNDA VARA DA FAZENDA PUBLICA DO DF

Autores: Ricardo Figueiredo Lisboa e outros

Réu: Departamento de Trânsito do Distrito Federal-Detran

Autos n.º 784679-3/04

S e n t e n ç a

Vistos etc.,

Trata-se de ação sob o rito ordinário ajuizada por Ricardo Figueiredo Lisboa, Mônica Cova Gama, Fernanda Magalhães Lamego, Empresa Santo Antonio Póstomos, Rosangela de Fátima Rocha, Rogério Toledo da Silva, Francisco Pereira da Silva, Eliane Rodrigues da Cunha e Valdir Ribeiro da Silva, qualificados na petição inicial, em desfavor do Departamento de Trânsito do Distrito Federal – Detran, pleiteando a declaração de nulidade de autos de infração de trânsito.

Em breve relato, os autores aduzem que foram notificados pelo réu sobre a imposição de penalidades referentes a diversas infrações de trânsito, sem que lhes fosse assegurada a defesa prévia. De acordo com os autores, a ausência de notificação do cometimento da infração de trânsito ofende os princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.

Postulam, em sede de liminar, a suspensão provisória dos registros das multas e da pontuação na carteira nacional de habilitação dos autores, a fim de que possam efetuar o pagamento do licenciamento e do seguro nacional dos veículos sem o recolhimento prévio das multas de trânsito. No mérito, requerem que seja determinada a sustação dos efeitos dos autos de infração impugnados.

Acompanham a inicial os documentos acostados às fls. 24/297.

A tutela de urgência pleiteada foi indeferida à fl. 300.

Em sua resposta às fls. 331/342, o réu argúi a preliminar de falta de pressuposto processual de regularidade formal da demanda. Sustenta ainda que o princípio da ampla defesa não restou violado, pois a exigência de notificação da penalidade, prevista no art. 282 do CTB, oportuniza aos infratores o direito de defesa perante a JARI. Pugna pela improcedência do pedido inicial.

Réplica às fls. 358/363.

Sem outras provas, vieram os autos para sentença nos moldes do art. 330, inciso I, do CPC.

É o relatório.

Decido.

Descabida a preliminar de irregularidade formal da demanda, uma vez que o litisconsórcio formado pelos autores não compromete a rápida solução do litígio, motivo pelo qual rejeito a preliminar suscitada.

No mais, o aspecto controvertido do caso em comento reside na virtual necessidade de garantir ao pretenso infrator a possibilidade de defesa em procedimento administrativo destinado à aplicação de multa por infração de trânsito.

Em verdade, a emissão conjunta das notificações de autuação e de imposição de penalidade constitui prática corrente das autoridades de trânsito.

De acordo com o réu, o procedimento adotado não ofende o princípio da ampla defesa, pois o acusado, insatisfeito com a penalidade aplicada, pode recorrer ao órgão de trânsito, nos termos do art. 285 do CTB.

Com a devida vênia, não concordo com tal entendimento, uma vez que a possibilidade de manifestação do condutor, disposta no art. 285 do CTB, é concedida somente após a imposição da pena pecuniária. Desse modo, não é garantida a defesa prévia do acusado, pois a oitiva do infrator é posterior à fixação da penalidade.


No caso em exame, os documentos acostados retratam que a pena de multa foi aplicada de plano, sem que os autores pudessem exercer sua defesa, em manifesta afronta aos corolários constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

Na realidade, a instauração de processo administrativo deve observar o rito imposto no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal, de modo que seja assegurado previamente aos acusados o direito de defesa sobre a infração cometida.

Cabe lembrar ainda que a Lei nº 9.784/99, disciplinadora do processo administrativo federal, em seu art 2.°, incisos I e VIII, amplamente recepcionada pela Lei Distrital nº 2.834/01, garante a ampla defesa e o contraditório na espécie em julgamento.

Ademais, descabida a alegação de ausência de previsão legal da defesa prévia no procedimento adminitrativo de infração de trânsito, uma vez que o Código de Trânsito Brasileiro, no capítulo XVIII, prevê tanto a notificação referente ao cometimento da infração quanto a notificação relativa à penalidade aplicada, ipsis litteris:

”Art. 281 – A autoridade de trânsito, na esfera da competência estabelecida neste Código e dentro de sua circunscrição, julgará a consistência do auto de infração e aplicará a penalidade cabível.

Parágrafo único — O auto de infração será arquivado e seu registro julgado insubsistente:

I — se considerado inconsistente o irregular;

II — se, no prazo máximo de trinta dias, não for expedida a notificação da autuação.

Art. 282 — Aplicada a penalidade, será expedida notificação ao proprietário do veículo ou ao infrator, por remessa posta ou por qualquer outro meio tecnológico hábil, que assegure a ciência da imposição da penalidade”.

Nesse sentido, cumpre transcrever ementa de julgado do Egrégio Superior Tribunal de Justiça em caso semelhante, in verbis:

“ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. PENALIDADE. PRÉVIA NOTIFICAÇÃO. AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.

1. O sistema de imputação de sanção pelo Código de Trânsito Brasileiro prevê duas notificações: a primeira referente ao cometimento da infração e a segunda relativa à penalidade aplicada.

2. A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento sobre a necessidade de dupla notificação do infrator para legitimar a imposição da penalidade de trânsito.

3. Recurso especial improvido.” (RESP 618411 / RS ; RECURSO ESPECIAL 2003/0228749-2 Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA (1123) T2 – SEGUNDA TURMA04/05/2004)

Acrescente-se, outrossim, que a Resolução nº 568/80, do Conselho Nacional de Trânsito, foi recepcionada pelo art. 314, parágrafo único, do CTB, cabendo, desse modo, à autoridade de trânsito, antes de julgar o auto de infração e aplicar a penalidade, assegurar a prévia notificação do condutor.

A matéria ora em exame já foi examinada pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em especial, no que se refere à eficácia da Resolução nº 568/80, do Conselho Nacional de Trânsito, senão vejamos:

Ementa

“DIREITO ADMINISTRATIVO. AÇÃO ANULATÓRIA. MULTAS DE TRÂNSITO. RESOLUÇÃO N. 568/80. NOTIFICAÇÃO PARA DEFESA PRÉVIA. DIREITO À AMPLA DEFESA. DEVIDO PROCESSO LEGAL. ESTRITA LEGALIDADE. RECURSO PROVIDO.

1) a resolução n. 568/80, do Contran, foi recepcionada pelo atual código de trânsito brasileiro, nos termos do art. 314, § único, desse diploma legal.

2) há necessidade de dupla notificação do infrator para legitimar a imposição de penalidade de trânsito: a primeira por ocasião da lavratura do auto de infração (ctb, art. 280, vi), e a segunda quando do julgamento da regularidade do auto de infração e da imposição da penalidade (ctb, art. 281, caput).

3) constitui ofensa aos princípios constitucionais da ampla defesa e devido processo legal a não concessão de prazo para defesa prévia na hipótese de imposição de multa de trânsito.

4) a atividade da administração pública submete-se à estrita legalidade, ex vi art. 37, caput, cf. (APELAÇÃO CÍVEL 20020110862850APC DF, ACORDÃO NÚMERO : 191913 DATA DE JULGAMENTO: 03/05/2004, 2ª TURMA CÍVEL,RELATOR : Des. WALDIR LEÔNCIO JUNIOR,PUBLICAÇÃO NO DJU: 26/05/2004)”

Nesse diapasão, cumpre transcrever encunciado nº 312 da Súmula do Colendo Superior Tribunal de Justiça, sobre o tema, in verbis:

“No processo administrativo para imposição de multa de trânsito, são necessárias as notificações da autuação e da aplicação da pena decorrente da infração.”

Portanto, não sobeja dúvida de que a ausência de notificação da autuação dos autores para fins de defesa prévia torna o procedimento de aplicação das multas de trânsito ilegal, uma vez que é vedado à Administração Pública, ainda que no exercício de poder de polícia, impor aos administrados sanções que repercutem em seu patrimônio, sem a preservação da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.


Por outro lado, embora o ato impugnado pelos autores não atenda ao procedimento previsto em lei, como necessário para garantir aos infratores o devido processo legal, o vício relativo à forma do ato administrativo é passível de convalidação, suprindo, desse modo, a ilegalidade que o vicia.

Nesse particular, cabe lembrar a breve lição de José Santos Carvalho Filho, in Manual de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 12ª Edição, 2005, p. 155, sobre o tema, in verbis:

“Nem todos os vícios do ato permitem seja este convalidado. Os vícios insanáveis impedem o aproveitamento do ato, ao passo que os vícios sanáveis possibilitam a convalidação. São convalidáveis os atos que tenham vício de competência e de forma, nesta incluindo-se os aspectos formais dos procedimetnos administrativos.”

Afinal, não seria razóavel invalidar todo o processo adminitrativo instaurado, permitindo, desse modo, que as infrações de trânsito cometidas não se submetam à punição cabível. A conduta dos motoristas deve ser apurada e apenada, assegurando-lhes a ampla defesa e o contraditório, como já exaustivamente abordado.

Em virtude do princípio da legalidade, a Administração, em face do ato contaminado por vício sanável relativo à forma, tem o dever de proceder a sua convalidação, a fim de que o ato impugnado seja ratificado com a adoção da forma legal.

Assim sendo, entendo que, apesar da penalidade imputada aos autores não ter ainda eficácia jurídica, não é necessária nova notificação referente ao cometimento das infrações de trânsito, uma vez que a comunicação da lavratura do auto de infração já foi efetuada com a expedição realizada.

Aproveitando-se os efeitos já produzidos, as notificações noticiadas nos autos cumprem a diretriz do art. 280 do CTB, ficando facultado aos autores que apresentem defesa relativamente à autuação efetuada, assegurando-se, dessa maneira, o devido processo legal, nos moldes da Resolução do CONTRAN n. 149, de 19.09.2003, in verbis:

“Art. 3º. À exceção do disposto no § 5º do artigo anterior, após a verificação da regularidade do Auto de Infração, a autoridade de trânsito expedirá, no prazo máximo de 30 (trinta) dias contados da data do cometimento da infração, a Notificação da Autuação dirigida ao proprietário do veículo, na qual deverão constar, no mínimo, os dados definidos no art. 280 do CTB e em regulamentação específica).

§ 1º. Quando utilizada a remessa postal, a expedição se caracterizará pela entrega da Notificação da Autuação pelo órgão ou entidade de trânsito à empresa responsável por seu envio.

§ 2º. Da Notificação da Autuação constará a data do término do prazo para a apresentação da Defesa da Autuação pelo proprietário do veículo ou pelo condutor infrator devidamente identificado, que não será inferior a 15 (quinze) dias, contados a partir da data da notificação da autuação.(grifo nosso)

(…)

Art. 9º. Interposta a Defesa da Autuação, nos termos do § 2º do Art. 3º desta Resolução, caberá à autoridade de trânsito apreciá-la.

(…)

§ 2º. Em caso do não acolhimento da Defesa da Autuação ou de seu não exercício no prazo previsto, a autoridade de trânsito aplicará a penalidade, expedindo a Notificação da Penalidade, da qual deverão constar, no mínimo, os dados definidos no art. 280 do CTB, o previsto em regulamentação específica e a comunicação do não acolhimento da defesa, quando for o caso. (grifo nosso)

(…)

Art. 12. Da imposição da penalidade caberá, ainda, recurso em 1ª e 2 ª Instâncias na forma dos art. 285 e seguintes do CTB.

Parágrafo único. Esgotados os recursos, as penalidades aplicadas nos termos deste Código serão cadastradas no RENACH”.(re) PAUTAAnte o exposto, julgo procedente, em parte, o pedido inicial, apenas para o fim de suspender a exigibilidade das multas de trânsito acostadas aos autos até que réu expeça a notificação prevista no art. 282 do CTB.

O réu arcará com os honorários advocatícios fixados em R$ 500,00 (quinhentos reais), nos termos do art. 20, §4º, do CPC, devendo reeembolsar os valores das custas adiantada pelos autores, conforme o disposto no art. 20 do CPC.

Sentença sujeita ao reexame necessário, tendo em vista o previsto no art. 475, inciso I, do CPC.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Brasília-DF, 21 de outubro de 2005.

Alvaro Luis de A. Ciarlini

Juiz de Direito

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