Revolta anunciada

Pesquisadores franceses já alertavam para situação de risco

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14 de novembro de 2005, 11h41

A tecnologia científica aplicada à atividade produtiva é uma das principais fórmulas do sucesso do sistema capitalista, destruindo continuamente mais e mais postos de trabalho para produzir mais e mais bens com menos e menos trabalhadores. Todos os dias, boa parte dos habitantes do planeta vão se tornando desnecessários á produção e outros tantos chegam ao mercado de trabalho e não encontram vagas. Aqueles que não são mais necessários e os que não encontraram lugar vão se acumulando em partes apodrecidas das grandes cidades, em grandes bolsões de desesperançados.

A periferia transforma-se em imenso depósito de indivíduos destituídos de serviços públicos condignos e sem lugar na esfera produtiva. O capitalismo lhes permite olhar para a imensa massa de fascinantes bens da vida gerada pelo século XX, mas este grande espetáculo está alcance apenas de seus olhos. Excluídos deste mundo tão colorido em razão da falta de renda, vão acumulando imensas marés de ódio, submersas na invisibilidade.

Esta descrição pode ser aplicada às periferias de São Paulo, Rio de Janeiro ou de Paris, moldadas de forma semelhante pelos ventos de globalização desta máquina de exclusão social. A similaridade deste traço é fator que multiplica o interesse pelas explosões de ódio que aconteceram recentemente nos subúrbios parisienses. Até porque a partir daquele epicentro, o terremoto andou se espalhando por muitas cidades européias que apresentam paisagens humanas bem parecidas.

O que ocorre, contudo, não é uma grande novidade. Estudos de pesquisadores franceses, elaborados em 1999, já davam conta de que o abandono sócio-econômico da periferia e, especialmente a exasperação do desemprego juvenil estavam a gerar um vulto invisível mas extremamente perigoso. Relatórios policiais da época registravam entre 1992 e 1998, 101 episódios de violência de massa envolvendo dezenas de jovens e 47 envolvendo centenas de insurgentes. Tudo isto se repete hoje em dia sem que sejam proclamadas quaisquer reivindicações, com ódio reprimido explodindo em violência de massa, queima de veículos e prédios públicos e enfrentamentos com a polícia.

Desta vez, o estopim do incêndio foi a eletrocução de dois jovens (Bouna e Zihed) que se esconderam no lugar errado quando tentavam escapar de perseguição policial tida pelo povo como indevida. No entanto, as análises de 1999 já mencionavam que a possibilidade de conflitos deste tipo nestes quarteirões. A avaliação dos chamados “93” 1 era no sentido de que cerca de quatrocentos quarteirões estavam em situação de “tensão suscetível de provocar uma chama de violência urbana”. E de que2 “mais de um terço deste quarteirões constituem ‘cidades interditadas’ ou ‘zonas de não direito’, expressões utilizadas para designar estes espaços de insegurança extrema nos quais sobrevivem mais de um milhão e meio de pessoas”.

Enquanto as chamas iam se avolumando, o poder público (como por aqui) vinha sempre desprezando o perigo abstendo-se de qualquer esforço no sentido de promover a inclusão destes grandes contingentes de excluídos. Como no Brasil, o neoliberalismo induziu o estado francês a reduzir as subvenções às entidades civis que operam projetos sociais nas áreas de conflito. Enterrados nas tumbas do esquecimento, o incendiário do subúrbio parisiense e o assaltante da favela paulistana, no fundo, com a explosão de violência, estão dizendo: “olhem para mim, eu estou aqui”. A existência dos miseráveis e dos desesperados é algo que a mídia capitalista não deseja lembrar e que o cidadão moldado pela ideologia do sistema deseja esquecer.

A ansiedade da classe média em não querer olhar para aqueles que estão fora do sistema é bem evidenciada pelo apoio de 73% que a opinião pública francesa, segundo as pesquisas, concedeu à medida de toque de recolher editada como parte da repressão às manifestações.

O governo francês está anunciando para 2006, a reserva orçamentária de cem milhões de euros para investir nas periferias, criando postos de trabalho diretos e indiretos através da instituição, inclusive, de zonas de benefício fiscal para a instalação de empresas geradoras de emprego. Por aqui, este tipo de promessa não causaria nenhum calafrio porque as verbas que constam do Orçamento da União para os programas sociais acabam sendo “contigenciadas”, ou seja, ficam no papel e os gastos previstos não são consumados. Na França, a opinião pública mais progressista repudia este pacote de vagas promessas e denuncia que não há como esperar pelo ano que vem, dizendo que, ao invés de toque de recolher, o governo deveria decretar o estado de emergência social.

Estas vagas de violência de massa vêm e vão como o movimento das marés. Para um governo às vésperas de ano eleitoral, tornou-se ponto de honra esmagar esta insurgência com todo o aparato repressivo possível. Em breve estes jovens vão ser expulsos das ruas e a classe média será convencida da ilusão de que pode dormir tranqüila. As causas de tudo isto, contudo, vão continuar a corroer as grandes cidades. O estado de emergência social continua a existir mas, não causando o incômodo de gerar ansiedades, deixa de merecer atenção.

Este tipo de relacionamento entre o Estado Neoliberal e os despossuídos é o fato gerador da massa crítica de pressão formada pelos movimentos sociais. O sindicalismo combativo e a esquerda tradicional deixam de constituir focos de tensão para o capitalismo e vão sendo atropelados por estes movimentos de força. Ao invés do proletariado, o palco é assumido por um sub-proletariado mais agressivo e que interrompe as calmarias sempre de modo inesperado.

O grande desafio das forças do progresso nestes tempos de globalização é construir o enlace entre os seres humanos tornados desnecessários e aqueles que estão na produção. O discurso de que um outro mundo é possível tornou-se muito difundido nos tempos recentes mas, não se caminhará para construir uma sociedade justa e solidária sem que a marcha acerte o passo com aqueles que não tem nada a perder.

Notas de rodapé

(1) Estes são os primeiros números do código postal dos subúrbios do norte de Paris, o que faz com a imprensa local refira-se ao cenário de violência com esta expressão.

(2) DIEU, François, “Politiques Publiques de Sécurité”, Edit. L’Harmattan, France, 1999.

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