Efeito cascata

Caráter vinculante é competência exclusiva do STF

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30 de maio de 2005, 19h12

A vinculação obrigatória da constitucionalidade ou não de lei federal só é possível quando a decisão for do Supremo Tribunal Federal. Com esse argumento, os advogados Paulo Sérgio Leite Fernandes e Rogério Seguins Martins Júnior conseguiram liminar para suspender acórdão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, que declarou o foro privilegiado para ex-prefeitos inconstitucional e impôs o entendimento a todo os processos em trâmite no tribunal.

Assim, desde 2003, todas as ações em que ex-prefeitos eram processados criminalmente foram remetidas monocrátricamente pelos desembargadores do TJ-SP à primeira instância da Justiça — ao contrário do que dispõe o parágrafo primeiro do artigo 84 do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei 10.628, de 24 de dezembro de 2002. Segundo o dispositivo, o foro privilegiado persiste mesmo depois de o prefeito deixar o cargo e as ações devem ser julgadas pela segunda instância do Judiciário.

A suspensão do caráter vinculante do acórdão do tribunal de Justiça paulista foi dada pelo Superior Tribunal de Justiça, em Habeas Corpus impetrados em favor dos ex-prefeitos de Cajuru, Benedita Maria do Nascimento, e Barretos, Uebe Rezek. Os pedidos (HCs 43.995 e 44099) tiveram relatoria dos ministros Paulo Medina e Gilson Dipp, que entenderam, em caráter liminar, que a remessa das ações ao primeiro grau deve ser suspensa até o julgamento final dos pedidos de Habeas Corpus. Em São Paulo, uma média de 10% dos ex-prefeitos do estado sofrem algum tipo de processo criminal.

Leia a íntegra das iniciais

Excelentíssimo Senhor Doutor Ministro Presidente do Superior Tribunal de Justiça:

O advogado Paulo Sérgio Leite Fernandes, brasileiro, casado, inscrito na Secção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil sob número 13.439, mais o advogado Rogério Seguins Martins Júnior, brasileiro, casado, inscrito na mesma Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil sob número 218.019, ambos com escritório na rua Mário Guastini número 380, em São Paulo-SP, fundamentando-se no artigo 5.º, inciso LXVIII, da Constituição, impetram “Habeas Corpus” em favor de Benedita Margarida do Nascimento, brasileira, viúva, ex-prefeita do Município de Cajuru, Estado de São Paulo.

Aponta-se como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, cujo Presidente há de prestar as informações adequadas (Ação Penal Originária número 390.952.3).

Síntese dos Fatos e Requerimento de Liminar

1) – A paciente foi prefeita do Município de Cajuru-SP, exercendo seu mandato na gestão 2001/2004. Na condição de prefeita, foi denunciada em 02 de julho de 2002, referindo-se a acusação ao artigo 10 da Lei número 7.347, de 1985 (Doc. I). Em seqüência, a paciente foi notificada, por carta de ordem, a oferecer resposta escrita (Doc. II). A defesa foi apresentada (Doc. III), ressaltando-se que a pretensão punitiva não foi levada a delibação coletiva, respeitando-se, se e quando tal acontecesse, o disposto no artigo 6.º da Lei 8.038, de 1990.

Visa-se, porque excepcionalmente autorizada pelas circunstâncias, a concessão de medida liminar. Aliás, a pretensão inaugural é simples e cômoda, até. Há fatores recomendando imediata intervenção dessa Corte, mormente quando se percebe a enormidade do desrespeito a letra de Lei Federal em plena vigência, privando-se a paciente, no meio tempo, da manutenção da competência especial gerada por prerrogativa de função prevista na Constituição Federal (artigo 29, inciso X) e no Código de Processo Penal (artigo 84, parágrafo 1.º). Realmente, consubstanciado em inconstitucional artigo do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (artigo 658, parágrafo 2.º – Doc. IV), o relator, Desembargador Oliveira Ribeiro, em decisão monocrática, determinou a remessa da ação penal originária em questão ao juízo de primeira instância (Doc. V), subtraindo do órgão colegiado, juiz natural do feito, a condição de dizer se toma ou não como impositivo, na hipótese vertente, o decisório advindo do Órgão Especial que, às tantas, decretou a inconstitucionalidade da Lei Federal número 10.684, 2002 (Doc. VI).

Fundamento Único da Impetração

3) – A Lei número 10.628, de 24 de dezembro de 2002, modificou a redação do artigo 84 do Código de Processo Penal, incluindo o parágrafo: “A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública”. Correta a opção do legislador, pois a competência para processar e julgar determinadas pessoas, em razão do cargo, não pode ser modificada depois do fato. Verdadeiramente, cometida a infração durante o exercício funcional, é incabível, por exemplo, que um Ministro do Supremo Tribunal Federal, deixando o cargo, seja processado e julgado perante um juiz de 1.º Grau, comumente não afeito a questões complexas. Assim, é natural, pela nobreza da função exercida, que o Ministro continue a ter o foro diferenciado. Daí a prerrogativa ser da função e não da pessoa, realçando-se que a competência privativa para julgar determinados servidores públicos em razão da função é exercida em única instância, não existindo duplo grau de jurisdição. Não se trataria, então, de benesse processual, como muitos propagam, mas até de prejuízo, pois privado o agente de procedimento recursal.


3.1) – Na hipótese vertente, a paciente foi denunciada perante o Tribunal de Justiça por infração penal, em tese, cometida durante o exercício funcional. Era prefeita. Foi processada nessa exclusiva condição pelo Ministério Público do Estado de São Paulo. No início da ação penal, o eminente relator profere o seguinte despacho: “No dia 13 de agosto de 2003 o Egrégio Órgão Especial desta Colenda Corte, ao apreciar os incidentes de inconstitucionalidade nas ações penais públicas n. 65.288-0/9, relator o eminente desembargador Paulo Shintate, e n. 102.930-0/8, relator o desembargador Flávio Pinheiro, por votação unânime, em ambos os casos, declarou inconstitucional o parágrafo 1.º do artigo 84, do Código de Processo Penal, cuja redação havia sido dada pela Lei n. 10.684, de 24 de dezembro de 2002. Assim sendo, como Benedita Margarida do Nascimento não mais exerce o cargo de prefeita municipal de Cajuru, determino a remessa dos presentes autos ao R. Juízo de Primeira Instância, que agora é o competente para julgar o processo (Doc. VII).

3.2) – Embora o relator não haja fundamentado a extravagante remessa, transcreva-se, a título de elucidação, o artigo 658 do Regimento Interno do Tribunal paulista: “Proclamada a constitucionalidade do texto legal ou do ato normativo questionado, ou não alcançada a maioria prevista no dispositivo constitucional, a argüição será julgada improcedente”. § 1º – Publicadas as conclusões do acórdão, os autos serão devolvidos ao órgão judicante que suscitou o incidente, para apreciar a causa, de acordo com a decisão da matéria prejudicial. § 2º – A decisão declaratória ou denegatória da inconstitucionalidade, se for unânime, constituirá, para o futuro, decisão vinculativa para os casos análogos, salvo se o órgão judicante, por motivo relevante, considerar necessário provocar nova manifestação do Órgão Especial sobre a matéria”.

3.3) – Ressalte-se, em seqüência, a propositura de ação direta de inconstitucionalidade pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, perante o Supremo Tribunal Federal, atacando a constitucionalidade da Lei 10.684, de 2002 (ADIN número 2797). Havia pedido de liminar. A providência cautelar foi indeferida pela Suprema Corte (Doc. VIII).

4) – A eficácia da decisão de inconstitucionalidade de lei federal, advinda do Tribunal de Justiça, não pode vincular o entendimento da Corte. Aqui, vê-se o relator solitariamente a decidir o destino da ação penal originária em andamento, remetendo-a ao primeiro grau extravagantemente, sem qualquer consulta ao juiz natural daquele procedimento, a 6.ª Câmara Criminal. O permissivo constante do artigo 658 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça é inconstitucional. Não existe decisão vinculativa no ordenamento pátrio, com exceção das proferidas pela Suprema Corte enquanto exerce o controle concentrado de constitucionalidade, relembrando-se igualmente a discussão sobre a súmula vinculante, sabendo-se que tal instituto é de construção jurisprudencial exclusiva do Supremo Tribunal Federal. Ressalte-se que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, enquanto fazendo ementar proibição a que suas Câmaras examinassem questões similares, se põe contra posição que se vem avolumando nesse Superior Tribunal de Justiça. Exemplo disso é julgamento, ainda não convertido em Acórdão, proveniente da 2.ª Turma dessa Corte. O voto da eminente relatora, Ministra Eliana Calmon, foi acompanhado quase à unanimidade, vencido o Ministro Peçanha Martins. Destaque-se daquele voto a rejeição de sustação do trâmite do procedimento no tribunal “a quo”, mas com fundamento no fato de se manter a presunção de constitucionalidade da lei vigente, viajando a ação penal, portanto, livremente no berço natural. Eis a certidão do julgamento:

CERTIDÃO DE JULGAMENTO

SEGUNDA TURMA

Número Registro: 2004/0123242-O RESP 693290 / RS

Números Origem: 10200002945 262 70006163976 70008101750

PAUTA: 26/0412005 JULGADO: 26/04/2005

Relatora

Exma. Sra. Ministra EMANA CALMON

Presidente da Ses~ão

Exmo. Sr. Ministro JOÃO OTAVIO DE NORONHA

Subprocurador-Geral da República

Exmo. Sr. Dr. BRASILINO PEREIRA DOS SANTOS

Secretária

Bela. VALÉRIA ALVIM DUSI

AUTUAÇÃO

RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE SUL

RECORRIDO: NERCI DA SILVADUTRA

ADVOGADO: CARLINHOS TONET E OUTRO

INTERES.: MUNICÍPIO DE AMETISTA DO SUL

ADVOGADO: ANTÔNIO LUIZ PINHEIRO

ASSUNTO: Ação Civil Pública – Improbidade Administrativa – Prefeito / Ex-Prefeito CERTIDÃO

Certifico que a egrégia SEGUNDA TURMA, ao apreciar o processo em epigrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

“A Turma, por maioria, conheceu do recurso e lhe deu provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra-Relatora. Vencido o Sr. Ministro Francisco Peçanha Martins.’


Os Srs. Ministros João Otávio de Noronha e Casto Meira votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Franciulli Netto.

Brasília, 26 de abril de 2005

Transcreva-se parte do voto: “Se assim é, aplicando-se a Lei nº 10.628/02, temos que deve prevalecer o foro especial do prefeito municipal, nos termos do artigo 29, inciso X, da Constituição Federal, sem que haja a ruptura da demanda diante da conexão subjetiva e objetiva presente” (Recurso Especial 693290).

4.1) – Relembre-se, então, que o controle de constitucionalidade no Brasil é inscrito na Constituição Federal, sabendo-se que o mecanismo jurídico diz respeito, essencialmente, à rigidez, elencada na Magna Carta, votada à proteção dos Direitos Fundamentais e à soberania da Constituição. Leia-se Alexandre de Morais: “Em primeiro lugar, a existência de escalonamento normativo é pressuposto necessário para supremacia constitucional, pois, ocupando a Constituição a hierarquia do sistema normativo é nela que o legislador encontrará a forma de elaboração legislativa e o seu conteúdo” (Direito Constitucional, página 577, 13.ª edição, Editora Atlas).

A importância do controle de constitucionalidade advém da preponderância da Constituição sobre as demais normas jurídicas, consistindo na análise da adequação das normas infraconstitucionais à Lei Maior. Um dos controles previstos na Constituição é o difuso, a mesma hipótese encontrada no “Writ”. Não se censure, então, a possibilidade dos Tribunais de Justiça exercerem o denominado controle difuso de constitucionalidade. Leia-se o artigo 97 da Constituição Federal: “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.

Realmente, no modelo difuso, todos os juízes e tribunais têm competência para o conhecimento e o julgamento de questão constitucional. Compete originariamente, no entanto, ao Tribunal Constitucional (Supremo Tribunal Federal) o controle abstrato de constitucionalidade das leis. A delimitação é importante, pois relativiza a presunção de constitucionalidade das leis e dos atos jurídico-constitucionais em todos os níveis da Jurisdição, o que torna esse modelo de fiscalização peculiar.

4.2) – O “Writ” versa sobre o caráter vinculativo da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal de Justiça em controle difuso de constitucionalidade, ressaltando-se que há ação direta de inconstitucionalidade em trâmite na Suprema Corte tratando do intricado problema e com pedido de concessão de medida liminar negado. O controle difuso, sabe-se bem, pode materializar-se em casos concretos. A declaração do vício constitucional é essencial ao deslinde da hipótese, não constituindo, todavia, o objeto principal do feito. Por outro lado, o controle concentrado de constitucionalidade é de competência exclusiva da Suprema Corte. As entidades assim legitimadas pleiteiam ao Supremo a análise da constitucionalidade de lei federal ou estadual. A declaração ou não da legitimidade constitucional da lei federal é a causa de pedir da ação.

5) – Conforme Paulo Brossard, “segundo axioma incontroverso, a lei se presume constitucional”, na medida em que cumprido o processo legislativo em sua totalidade. Apreciando reivindicações liminares em ações diretas de inconstitucionalidade, a Suprema Corte pode concedê-las com efeitos retroativos (artigo 11, §1., da Lei 9.868/99). Voltando-se ao “Writ”, ressalte-se que o Supremo Tribunal Federal não concedeu cautelar “initio litis” na ação direta de inconstitucionalidade já referida no intróito.

Isso não impede, repita-se, que o Tribunal de Justiça declare a inconstitucionalidade da Lei. Entretanto, a eficácia de tal decisão não pode vincular todo o Tribunal. O controle, aqui, é difuso e não concentrado. Portanto, em cada caso concreto, o juiz natural oficiante, no caso a Sexta Câmara Criminal, em sessão marcada para tanto, deve decidir o incidente. Cuida-se de decisão colegiada, por certo, não se admitindo que o relator decida solitariamente o destino da ação penal.

5.1) – Por outro lado, a declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal terá efeito retroativo (até as medidas cautelares podem tê-lo) e atingirão todos os casos (erga omnes). A lei declarada inconstitucional pela Augusta Corte é destituída de qualquer potencialidade. Daí o Supremo Tribunal Federal ser o guardião da Constituição. Não é possível, tocante à geratriz do “Writ”, o controle concentrado de constitucionalidade pelo Tribunal de Justiça, mormente pela eficácia da decisão no exercício de tal controle, ou seja, contra todos. A vinculação obrigatória da declaração de inconstitucionalidade ou não de lei federal ocorrerá exclusivamente em decisões advindas do Supremo Tribunal Federal, no caso em ação direta de inconstitucionalidade (RTJ 82/791 e 89/367).


Acrescente-se a isso o artigo 27 da Lei número 9.868/99: “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. Perceba-se a ilegalidade do despacho questionado: “…constituem decisão vinculativa para os casos análogos, não se podendo julgar, por conseguinte, em sentido contrário” (Doc III). Não concedida a medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade número 2.797, presume-se a constitucionalidade da norma.

Certamente, no entretempo, surgirão decisões a respeito da constitucionalidade da Lei 10.684/02 em ambos os sentidos, conforme faz prova o voto minoritário de desembargador do próprio Tribunal de Justiça em caso análogo (Doc. V). Cuida-se de controle difuso, exercitado em cada caso concreto. A decisão incidental da constitucionalidade tem eficácia restrita àquela decisão. Portanto, não poderia o relator exercer jurisdição na ação penal em desbaste, decidindo, sozinho, o destino da ação penal. A paciente, ex-prefeita municipal, tem obrigação de zelar pelas prerrogativas do cargo que exerceu. A prerrogativa foi desnutrida pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, principalmente quando impediu o juiz natural de analisar a constitucionalidade.

Conclusão

6) – Considera-se autoridade coatora, para efeito da impetração, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. No fim de tudo, vem aquela usurpação de competência em prejuízo da paciente, que tem o direito incontestável de ser julgado por seu juiz natural. Vale a impetração, portanto, para que essa Corte, dando-lhe provimento, determine a suspensão da ordem, constante do despacho exibido no documento VII, que proibiu a 6.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de continuar exercendo jurisdição no processo criminal epigrafado. Assim, a impetração visa, liminarmente, a sustação dos efeitos da determinação emitida pelo eminente relator, sobrestando-se o andamento da ação penal já remetida à 1.ª Instância. Depois, mantida a liminar, aguardar-se-á a devolução da ação penal à 6.ª Câmara Criminal, para a finalidade de prosseguimento na apreciação da questão preliminar, com obediência ou não à decisão do órgão especial, adiantando-se a análise do mérito, se a tanto chegar o Colegiado.

7) – Prestará informações o Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Ação Penal Originária número 390.952.3).

De São Paulo para Brasília, 17 de maio de 2005

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Advogado

Rogério Seguins Martins Júnior

Advogado

Excelentíssimo Senhor Doutor Ministro Presidente do Superior Tribunal de Justiça:

O advogado Paulo Sérgio Leite Fernandes, brasileiro, casado, inscrito na Secção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil sob número 13.439, mais o advogado Rogério Seguins Martins Júnior, brasileiro, casado, inscrito na mesma Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil sob número 218.019, ambos com escritório na rua Mário Guastini número 380, em São Paulo-SP, fundamentando-se no artigo 5.º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, impetram “Habeas Corpus”, com pedido de concessão de liminar, em favor de Uebe Rezeck, brasileiro, casado, médico, ex-prefeito do Município de Barretos, Estado de São Paulo.

Aponta-se como autoridade coatora o Desembargador 2.º Vice-Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Ação Penal Originária número 366.719.3/2).

Síntese dos Fatos

1) – O paciente foi prefeito do Município de Barretos-SP, exercendo mandato na gestão 2001/2004. Naquela condição, foi denunciado perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo como incurso nas sanções do artigo 1.º, inciso XIV, segunda parte, do Decreto-Lei número 201/67, por nove vezes, em concurso material (Doc. I).

2) – A denúncia foi recebida em 08 de agosto de 2002, conforme Acórdão proferido pela 6.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça já nomeado (Doc. II). Esclareça-se que o feito está em fase final, com a instrução já encerrada.

Visa-se, porque excepcionalmente autorizada pelas circunstâncias, a concessão de medida liminar. Aliás, a pretensão inaugural é simples e cômoda, até. Pleiteia-se, rusticamente, o estancamento da remessa da ação penal ao 1.º Grau. Conhecem os impetrantes que tal despacho monocrático (a liminar) esbarra em prudente resistência, porque sempre existe o receio, provindo do destinatário, de interferência no Colegiado. Todavia, há fatores recomendando imediata intervenção, mormente quando se percebe a enormidade do desrespeito a letra de Lei Federal em plena vigência, privando-se o paciente, no meio tempo, da manutenção da competência especial gerada por prerrogativa de função prevista na Constituição Federal (artigo 29, inciso X) e no Código de Processo Penal (artigo 84, parágrafo 1.º). Realmente, consubstanciada em inconstitucional artigo do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (artigo 658, parágrafo 2.º), a 2.ª Vice-Presidência, em decisão solitária, determinou a remessa da ação penal originária em questão ao juízo de primeira instância, subtraindo o procedimento após constatação da não reeleição do paciente.


Fundamento Único da Impetração

3) – A Lei número 10.628, de 24 de dezembro de 2002, alterou a redação do artigo 84 do Código de Processo Penal, incluindo o seguinte parágrafo: “A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública”. Agiu bem o legislador, pois a competência para processar e julgar determinadas pessoas, em razão do cargo, não pode ser alterada depois do fato. Realmente, cometida a infração durante o exercício funcional, é incabível, por exemplo, que um Ministro do Supremo Tribunal Federal, deixando o cargo, seja processado e julgado perante um juiz de 1.º Grau. É natural, pela nobreza da função exercida, que o Ministro continue a ter o foro diferenciado. Daí a prerrogativa ser da função e não da pessoa, realçando-se que a competência privativa para julgar determinados servidores públicos em razão da função é exercida em única instância, não existindo duplo grau de jurisdição. Não se trataria, então, de benesse, mas até de prejuízo, pois privado o agente de procedimento recursal.

3.1) – No presente feito, o paciente foi denunciado perante o Tribunal de Justiça por infração penal, em tese, cometida durante o exercício funcional. Era prefeito municipal. Foi processado nessa exclusiva condição pelo Ministério Público do Estado de São Paulo. No apagar das luzes da ação penal, a 2.ª Vice-Presidência profere o seguinte despacho: “No dia 13 de agosto de 2003 o Egrégio Órgão Especial desta Colenda Corte, ao apreciar os incidentes de inconstitucionalidade nas ações penais públicas n. 65.288-0/9, relator o eminente desembargador Paulo Shintate, e n. 102.930-0/8, relator o desembargador Flávio Pinheiro, por votação unânime, em ambos os casos, declarou inconstitucional o parágrafo 1.º do artigo 84, do Código de Processo Penal, cuja redação havia sido dada pela Lei n. 10.684, de 24 de dezembro de 2002. E nos termos do parágrafo 2.º, do artigo 658, do Regimento Interno deste Tribunal, os vv. Acórdãos acima mencionados, porque foram julgados por unanimidade constituem decisão vinculativa para os casos análogos, não se podendo julgar, por conseguinte, em sentido contrário. Assim sendo, determino a remessa dos presentes autos ao Juízo da primeira Instância, que é o competente para julgar o presente processo” (Doc. III – respeitada a grafia original).

3.2) – A título de elucidação, transcreva-se o artigo 658 do Regimento Interno do Tribunal paulista: “Proclamada a constitucionalidade do texto legal ou do ato normativo questionado, ou não alcançada a maioria prevista no dispositivo constitucional, a argüição será julgada improcedente”. § 1º – Publicadas as conclusões do acórdão, os autos serão devolvidos ao órgão judicante que suscitou o incidente, para apreciar a causa, de acordo com a decisão da matéria prejudicial. § 2º – A decisão declaratória ou denegatória da inconstitucionalidade, se for unânime, constituirá, para o futuro, decisão vinculativa para os casos análogos, salvo se o órgão judicante, por motivo relevante, considerar necessário provocar nova manifestação do Órgão Especial sobre a matéria”.

3.3) – Ressalte-se, em seqüência, a propositura de ação direta de inconstitucionalidade pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, perante o Supremo Tribunal Federal, atacando a constitucionalidade da Lei 10.684, de 2002 (ADIN número 2797). Havia pedido de liminar. A providência cautelar foi indeferida pela Suprema Corte (Doc. IV).

4) – A eficácia da decisão de inconstitucionalidade de lei federal, proferida por Tribunal de Justiça, não pode vincular o entendimento da Corte. Aqui, vê-se a 2.ª Vice-Presidência do Tribunal Estadual Paulista a avocar ação penal originária em andamento, remetendo-a ao primeiro grau extravagantemente, sem qualquer consulta ao juiz natural daquele procedimento, a 6.ª Câmara Criminal. O permissivo constante do artigo 658 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça é inconstitucional. Não existe decisão vinculativa no ordenamento pátrio, com exceção das proferidas pela Suprema Corte, embora igualmente se discuta sobre a súmula vinculante, sabendo-se que tal instituto é de construção jurisprudencial exclusiva do Supremo Tribunal Federal.

4.1) – Relembre-se, então, que o controle de constitucionalidade no Brasil é inscrito na Constituição Federal, sabendo-se que o mecanismo jurídico diz respeito, essencialmente, à rigidez, elencada na Magna Carta, votada à proteção dos Direitos Fundamentais e à soberania da Constituição. Leia-se Alexandre de Morais: “Em primeiro lugar, a existência de escalonamento normativo é pressuposto necessário para supremacia constitucional, pois, ocupando a Constituição a hierarquia do sistema normativo é nela que o legislador encontrará a forma de elaboração legislativa e o seu conteúdo”(Direito Constitucional, página 577, 13.ª edição, Editora Atlas). A importância do controle de constitucionalidade advém da preponderância da Constituição sobre as demais normas jurídicas, consistindo na análise da adequação das normas infraconstitucionais à Lei Maior. Um dos controles previstos na Constituição é o difuso, a mesma hipótese encontrada no “Writ”. Não se censure, então, a possibilidade dos Tribunais de Justiça exercerem o denominado controle difuso de constitucionalidade. Leia-se o artigo 97 da Constituição Federal: “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.


4.2) – O “Writ” versa sobre o caráter vinculativo da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal de Justiça em controle difuso de constitucionalidade, ressaltando-se que há ação direta de inconstitucionalidade em trâmite na Suprema Corte tratando do intricado problema e com pedido de concessão de medida liminar negado. O controle difuso, sabe-se bem, pode materializar-se em casos concretos. A declaração do vício constitucional é essencial ao deslinde da hipótese, não constituindo, todavia, o objeto principal do feito. Por outro lado, o controle concentrado de constitucionalidade é de competência exclusiva da Suprema Corte. As entidades assim legitimadas pleiteiam ao Supremo a análise da constitucionalidade de lei federal ou estadual. A declaração ou não da legitimidade constitucional da lei federal é a causa de pedir da ação.

5) – Conforme Paulo Brossard, “segundo axioma incontroverso, a lei se presume constitucional”, na medida em que cumprido o processo legislativo em sua totalidade. Apreciando reivindicações liminares em ações diretas de inconstitucionalidade, a Suprema Corte pode concedê-las com efeitos retroativos (artigo 11, §1., da Lei 9.868/99). Voltando-se ao “Writ”, ressalte-se que o Supremo Tribunal Federal não concedeu cautelar “initio litis” na ação direta de inconstitucionalidade já referida no intróito. Isso não impede, repita-se, que o Tribunal de Justiça declare a inconstitucionalidade da Lei. Entretanto, a eficácia de tal decisão não pode vincular todo o Tribunal. O controle, aqui, é difuso e não concentrado. Portanto, em cada caso concreto, o juiz natural oficiante, no caso a Sexta Câmara Criminal, em sessão marcada para tanto, deve decidir o incidente. Cuida-se de decisão colegiada, por certo, não se admitindo o abstruso avocamento da ação penal.

5.1) – Por outro lado, a declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal terá efeito retroativo (até as medidas cautelares podem tê-lo) e atingirão todos os casos (ergas omnes). A lei declarada inconstitucional pela Augusta Corte é destituída de qualquer potencialidade. Daí o Supremo Tribunal Federal ser o guardião da Constituição. Não é possível, tocante à geratriz do “Writ”, o controle concentrado de constitucionalidade pelo Tribunal de Justiça, mormente pela eficácia da decisão no exercício de tal controle, ou seja, contra todos.

A vinculação obrigatória da declaração de inconstitucionalidade ou não de lei federal ocorrerá exclusivamente em decisões advindas do Supremo Tribunal Federal, no caso em ação direta de inconstitucionalidade (RTJ 82/791 e 89/367). Acrescente-se a isso o artigo 27 da Lei número 9.868/99: “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.

Perceba-se a ilegalidade do despacho questionado: “…constituem decisão vinculativa para os casos análogos, não se podendo julgar, por conseguinte, em sentido contrário” (Doc III). Não concedida a medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade número 2.797, presume-se a constitucionalidade da norma. Certamente, no entretempo, surgirão decisões a respeito da constitucionalidade da Lei 10.684/02 em ambos os sentidos, conforme faz prova o voto minoritário de desembargador do próprio Tribunal de Justiça em caso análogo (Doc. V). Cuida-se de controle difuso, exercitado em cada caso concreto. A decisão incidental da constitucionalidade tem eficácia restrita àquela decisão. Portanto, não poderia a 2.ª Vice-Presidência exercer jurisdição na ação penal em desbaste, decidindo solitariamente o destino da ação penal. O paciente, ex-prefeito municipal, tem obrigação de zelar pelas prerrogativas do cargo que exerceu. A prerrogativa foi desnutrida pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, principalmente quando se afastou o juiz natural do feito da análise da constitucionalidade. A 2.ª Vice-presidência não tinha competência para exercer jurisdição no feito. Intrometeu-se abstrusamente na ação penal.

Conclusão

6) – Considera-se autoridade coatora, para efeito da impetração, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, cujo 2.º Vice-Presidente é apontado a título de recipiendário da requisição de informações. No fim de tudo, vem aquela usurpação de competência em prejuízo do paciente, que tem o direito incontestável de ser julgado por seu juiz natural. Vale a impetração, portanto, para que essa Corte, dando-lhe provimento, determine a suspensão da ordem, constante do despacho exibido no documento III, que proibiu a 6.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de continuar exercendo jurisdição no processo criminal epigrafado. Assim, a impetração visa, liminarmente, a sustação dos efeitos da determinação emitida pelo 2.º Vice-Presidente do órgão já mencionado. Depois, mantida a liminar, aguardar-se-á a devolução da ação penal à 6.ª Câmara Criminal, para a finalidade de prosseguimento na apreciação da questão preliminar, com obediência ou não à decisão do órgão especial, adiantando-se a análise do mérito, chegando-se a tanto.

7) – Prestará informações o 2.º Vice-Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Ação Penal Originária número 366.719-3/2).

De São Paulo para Brasília, 16 de maio de 2005

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Advogado

Rogério Seguins Martins Júnior

Advogado

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